De coração a coração: Evangelizar numa época de mudanças
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Esta é a missão que o Senhor nos confia: levar aos outros o contato com alguém vivo, deixar entrever, em nossa vida concreta, que Cristo é real, que ele pode realmente estar presente em nossa história, em nossas relações e em nossas fraquezas.
21/11/2025
De coração a coração
São Josemaria considerava a amizade o caminho principal da
vida do apóstolo e percebia a força das relações interpessoais. O apostolado de
“amizade e confidência”[12] implica
querer o bem do outro, querer o bem que é o outro, construir
relações autênticas e falar com o coração. “Quando te falo de ‘apostolado de
amizade’, refiro-me à amizade ‘pessoal’, sacrificada, sincera; de tu a tu, de
coração a coração”[13].
Em 2019, o Padre escreveu uma carta mais extensa para
lembrar que a amizade não é apenas uma parte do apostolado de um cristão comum,
mas está no núcleo de sua missão. A amizade não é algo que se pratica, mas algo
que se é: sou amigo, sou uma mão aberta, um rosto que busca o
encontro em tudo. “Quando uma amizade é assim, leal e sincera, ela não pode ser
instrumentalizada: simplesmente um amigo deseja transmitir ao outro o bem que
experimenta em sua vida. Normalmente faremos isso sem perceber, por meio do exemplo,
da alegria e de um desejo de servir que se expressam em mil pequenos gestos. No
entanto, ‘o valor do testemunho não significa que se deve manter em silêncio a
palavra. Por que é que não havemos de falar de Jesus, contar aos outros que Ele
nos dá a força de viver, que é bom conversar com Ele, que nos faz bem meditar
as suas palavras?’ A amizade desemboca assim, naturalmente, na confidência
pessoal, cheia de delicadeza e respeito à liberdade”[14].
Este estilo apostólico não faz barulho; costuma passar
despercebido nos jornais, nos congressos e nos planos pastorais. Sua discrição
não nasce de uma tendência ao secretismo, mas de uma realidade mais profunda: o
fato inevitável de que uma parte essencial da verdadeira história se forja na
vida diária. Uma grande escritora do século XIX intuiu isso: “o bem crescente
do mundo depende em parte de atos não históricos; e que as coisas não estão tão
ruins para você e eu como deveriam estar, é em parte devido ao número que viveu
fielmente uma vida oculta, e descansou em tumbas não visitadas”[15].
Este estilo apostólico, do qual a Igreja necessita cada vez
mais, transforma o mundo de dentro para fora. Ele vai devagar, é verdade, mas
chega mais fundo. Ele toca o coração. E o coração tocado pela graça pode se
desorientar, pode se desviar, mas fica marcado profundamente. É assim que os
verdadeiros cristãos normalmente fazem: transmitem de coração a coração. Cor
ad cor loquitur, o coração fala ao coração, como dizia o lema
cardinalício de São John Henry Newman. Assim nasceu a Igreja, com poucos homens
e mulheres transformados pelo encontro com Jesus. Assim renasce tantas vezes
hoje também, por meio de conversas simples entre amigos, palavras sinceras e
gestos autênticos, que indicam uma Presença viva.
Este lento, mas poderoso fluir da vida de uma pessoa para a
outra deve adaptar seu curso a cada circunstância. Como em cada época ao longo
da história, temos a apaixonante tarefa de procurar o modo de “transmitir, de
acordo com os tempos – adaptando-se à linguagem dos homens, compreendendo sua
mentalidade – a mensagem cristã a todas as almas”[16].
Quase sempre se tratará de uma transmissão pessoal, sem a necessidade de
grandes ações ou manifestações. “Acredita em mim: o apostolado, a catequese, de
ordinário, tem de ser capilar: um a um. Cada homem de fé com seu companheiro
mais próximo. Aos que somos filhos de Deus, importam-nos todas as almas, porque
nos importa cada alma”[17].
Os primeiros cristãos “não tinham, em virtude de sua vocação
sobrenatural, programas sociais nem humanos a realizar; estavam, porém,
penetrados por um espírito, por uma concepção da vida e do mundo, que não podia
deixar de ter consequências na sociedade em que viviam”[18].
No fundo, esta é a missão que o Senhor nos confia: ser testemunhas, não apenas
mestres. Mais do que transmitir uma série de ensinamentos e princípios morais,
devemos proporcionar aos outros o contato com alguém vivo. Deixar entrever, em
nossa vida concreta, que Cristo é real. Que Ele pode realmente estar presente
em nossa história, em nossas relações e em nossas fraquezas. É esse contato com
Cristo vivo, com Cristo ressuscitado que levará uns e outros a perguntar, como
na manhã de Pentecostes: “O que devemos fazer” (At 2, 37), o que devo que mudar
em minha vida? Onde posso conhecer mais sobre Deus? Como posso conhecê-lo
melhor? Então será o momento de falar, de ensinar, de orientar.
São John Henry Newman, recém declarado doutor da Igreja por
Leão XIV, dirigia-se assim ao Senhor: “Fica comigo, e começarei a resplandecer
como Tu, a brilhar tanto, que possa ser luz para os outros. A luz, Jesus, virá
toda de Ti, nada dela será minha; serás Tu quem resplandecerá sobre os outros
através de mim. Brilhando sobre os que me rodeiam, permite-me louvar-te como te
agrada. Permite-me pregar-te sem pregar, não com palavras, mas por meio do meu
exemplo, da força de atração, da influência harmônica de tudo o que eu fizer da
inefável plenitude do amor que existe por Ti em meu coração”[19].
É chamativo que quem escreveu e pregou tanto sobre a fé
rezasse dessa forma. Assim, fica claro que não se trata de ficar em silêncio:
Deus quer que estejamos preparados para dar a razão de nossa esperança (cfr. 1
Pd 3, 15); nossas palavras e nossas obras só serão eficazes se nosso coração
estiver cheio do fogo de Cristo (cfr. Lc 24, 32). Quem for apóstolo deste modo
talvez não veja os frutos imediatamente, ou não os veja de forma espetacular.
Mas Santa Maria e São João ao pé da cruz tampouco os viram, nem São Paulo no
cárcere, assim como muitos cristãos ao longo da história. E, no entanto,
transformaram o mundo. Porque a Igreja não renasce por meio de movimentos de
massa, mas pela ação silenciosa e paciente do fermento, pela transmissão da
vida que temos dentro de nós. Essa é a grande responsabilidade que Deus coloca
em nossas mãos. A Igreja, e esta parte da Igreja que é a Obra, somos cada um de
nós. Por isso, São Josemaria perguntava aos primeiros: “Se eu morrer, você
continuará com a Obra?”[20].
[12] São
Josemaria costumava referir-se assim ao apostolado neste contexto de amizade
que proporciona a abertura mútua do coração. Cfr. L. Flamarique, ‘Amizade’,
em Diccionario de San Josemaria Escrivá de Balaguer, Monte Carmelo,
Burgos 2013.
[13] São
Josemaria, Sulco, n. 191
[14] F.
Ocáriz, Carta
pastoral, 1/11/2019, n. 18. Cfr. Francisco, Christus vivit, n. 176.
[15] Eliot,
George. Middlemarch: Um Estudo da Vida Provinciana (p. 705).
Edição do Kindle.
[16] São
Josemaria, Carta 6, n. 30.
[17] São
Josemaria, Sulco, n. 943
[18] São
Josemaria, Carta 29, n. 22.
[19] São
John Henry Newman, Meditations and Devotions, Longmans Green &
Co, Nova York – Londres 1907, p. 365.
[20] S.
Bernal, Salvador Bernal, Salvador Bernal, Perfil do Fundador do
Opus Dei, p. 414.

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