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quarta-feira, 7 de abril de 2021

ESPIRITUALIDADE: A Grande Passagem

Crédito: Expedia

«A Grande Passagem»

Conversa com o Irmão João

Trad.: monges da Comunidade Monástica
São João o Teólogo - São José, SC.

A Santa Montanha é uma república monástica integrada no território da Grécia; em seu pico resplandece o Monte Athos (2033m) que domina o Mar Egeo, revolto neste lugar. Conta uma tradição que a Virgem Maria, acompanhada do apóstolo São João, foi surpreendida por uma violenta tempestade e que o barco encalhou próximo de Iviron. Encantada com a extraordinária beleza do Monte Athos, pediu a seu Filho que lhe concedesse sua soberania. Ouviu-se uma voz celestial que dizia: “Que este lugar seja teu jardim e um porto de salvação para todo aquele que aspira ser salvo.”

Desde a fundação do primeiro monastério (A Grande Laura) no ano de 963 por Santo Atanásio, o Athonita, a influência espiritual do Monte Athos tem sido imensa, tanto na arte como no pensamento ou na teologia. Verdadeiro farol da ortodoxia! Atualmente, 1600 monges ortodoxos de todas as nacionalidades (gregos, russos, búlgaros, ucranianos, sérvios, romenos ...) vivem nos vinte monastérios sob uma assembléia e um presidente (Protos) eleito por um ano com residência em Karyes, a capital administrativa.

Olivier, um jovem peregrino ocidental a quem vamos acompanhar, teve que conseguir um visto especial (diamonitirion) para entrar no território da Santa Montanha. Cruzou a fronteira como se atravessasse por um espelho. Aqui não há eletrecidade, é outro calendário (treze dias a menos em relação ao calendário vigente em todo mundo) outra hora, é meia noite quando o sol se põe; os deslocamentos são feitos a pé ou por embarcações... Depois de várias horas de marcha, nosso peregrino chega à porta de um monastério onde o Pe. Iannis (João) o acolhe com suas longas barbas, sua skouffa (toca ou barrete) e seu amplo manto monástico negro. Este monge parece ter saído do fundo dos tempos. Após as apresentações como de costume: nome, lugar de origem, filiação ou religião, o diálogo começa com uma expressão de sorriso e uma xícara de chá.

— (Olivier) Padre, o que significa a Festa da Páscoa?

Páscoa significa, em hebreu, “passagem”; para os cristãos esta festa simboliza a Ressurreição de Cristo, que passa da existência à Vida tendo vencido a morte pela morte.

“Porque é preciso que o corruptível se revista de incorrupção e que este ser mortal se revista de imortalidade. E, quando este ser corruptível se revestir de incorruptibilidade e este ser mortal se revestir de imortalidade, então se cumprirá o que está escrito: A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória?” (ICor. XV 53-54)

— Eu concebo, temo, porém, não entendê-lo bem.

Antes de tentar compreender o insondável mistério da Ressurreição, intentemos simplesmente penetrar o significado das palavras em sua raiz:

Páscoa significa “passagem”. Passagem da existência à Vida eterna pelo portal da morte. Ressurreição significa “endereçar-se”. O homem, mediante a Cruz vivificante, passa do horizontal do homem rasteiro ao estado vertical, isto é, de Homem Novo. A Cruz é uma chave de vida colocada acima do crânio (Gólgota), é um instrumento de transfiguração que ordena o espaço-tempo e que se abre, em seu coração, à eternidade, ao infinito. Não é um patíbulo com um cadáver cravado.

Páscoa significa “ungido de Deus”, a unção confere a dignidade. É aquele que manifesta o Pai celeste e realiza o Caminho, a Verdade e a Vida.

A Luz é um Fogo Vivificante que transmuta a matéria opaca e inerte em poder, força espiritual. Este Fogo penetra sem dissolver-se nele, o fogo da Gehena, o qual, por sua parte, queima tudo o que é corruptível: nossos pensamentos nossas emoções, nossas paixões são corpos.

Assim pois, Páscoa simboliza a passagem de um estado velho, corruptível a um estado novo, incorruptível, o do “corpo glorioso”. O Homem é reintegrado, pela Misericórdia divina, a sua dignidade primordial.

Dizia a todos: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me. Porque, quem quiser ganhar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim, salvá-la-á” (Lc IX 23-24). Se a morte é o fim, então a vida é vã.

— Explique também isso, padre!

Moisés (Êxodo XIII), quando das dez pragas do Egito, instaura a Páscoa Judia pelo sangue do Cordeiro. Mediante o sinal posto sobre o umbral da porta das casas, salva o primeiro menino varão do povo judeu e condena o primogênito dos animais e dos meninos varões dos egípcios. Logo, leva a cabo, com o povo eleito, a primeira “passagem” pelo Mar Vermelho. Os judeus abandonam uma terra de servidão (estrangeira) para entrar no deserto do Sinai onde permanecerão durante quarenta anos, passando por provas, tentações ilusões (o bezerro de ouro) ... e alegrias, a de receber, por exemplo, as Tábuas da Lei, que lhes revelam o caminho a trilhar para regressar a Deus.

Pelo Jordão se cumpre a segunda “passagem”. O povo abandona o deserto para entrar na Terra Prometida, onde flui leite e mel. Vale observar que, nenhum ancião, nem Moisés nem Aarão ... penetra no Jardim. O homem velho serve de degrau para o Homem Novo. Nunca o corruptível penetrará o sutil.

Você sabe que a Páscoa cristã vem precedida de quarenta dias de jejum rigoroso, acompanhado de leituras apropriadas para o grande combate no deserto interior.

— Sim, compreendo tudo o que você diz, porém não vejo como integrá-lo em minha vida.

Porque escutas as palavras como um relato histórico, e não como um acontecimento intemporal que deveria viver cada dia em teu coração.

— Como?

Tomando consciência de que vives, cada minuto, a passagem vertiginosa para uma nova vida inspirada, surgida de uma morte transitória, a expiração. Ponha, por exemplo, no alento, a Presença Divina. Ha uma morte que dá à luz a Vida. A morte do ego revela o Ser.

— Significa a morte do ego, a negação do corpo? Pergunta Olivier com humor e inquietude.

Nada disso! Não há que negar o corpo, mas transfigurá-lo. “... que não é nossa luta contra o sangue e a carne, senão contra os principados, contra as potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos maus que andam pelos ares” (Ef. VI 12). “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (I Cor. III 16)

A renúncia é uma superação interior por integração, um alegre soltar presa, não uma negação. Este giro se cumpre por implosão, porém, o que não é assumido não pode ser transfigurado.

O Padre Iannis cala, logo em seguida apresenta um exemplo para não ficar no conceito, apenas.

Imaginemos uma semente que um camponês planta no inverno (mistério da Encarnação e da Natividade). Depois de um certo período de maturação no subsolo, produz-se um acontecimento incrível: a casca dura se desgarra, se decompõe misturando-se à Mãe-Terra para dar nascimento ao terno gérmen. Para o jardineiro, esta degradação é o processo de vida.

Todo o homem que vem ao mundo é portador de um fagulha desta Luz Divina. Eu sou a Terra que a acolhe. A dissolução do ego, que não é uma negação, permite a alma eclodir-se, manifestar-se. Aquele que se apóia na degradação de seu “eu”, cai na revolta, no sofrimento, no sem sentido, na loucura... Aquele, porém, que contempla mais além desta prova, a evolução de seu próprio destino, entra numa alegria inefável. Não pedimos ao ego que compreenda o mistério da vida, mas que obedeça a sua vocação, a de servir de matriz ao Espírito. “Enquanto nosso homem exterior se desfaz, nosso homem interior se renova dia após dia.” (II Cor. IV 16).

O intelecto, inclusive, está ligado à matéria. A sabedoria infinita de Deus está limitada pela razão. Só a inteligência do coração pressente o mistério.

Quarenta dias depois da Páscoa, a Ascensão, a semente deve viver uma nova passagem, a da terra para o céu. As raízes rompem a superfície terrestre para elevar-se, mediante o tronco, o vazio, a pirâmide invertida dos ramos acolhe a luz do sol. O poder, a força da Cruz, como instrumento de passagem, parece aqui evidente.

“Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar todo o universo” (Ef. IV 10).

Dez dias depois, cinqüenta dias depois da Páscoa, Pentecostes, festa das colheitas dos judeus. A árvore dá frutos, os apóstolos recebem a luz do Espírito Santo. Cristo deveria abandonar a Terra para enviar as “línguas de fogo” sobre cada apóstolo sentado todos juntos naquele mesmo lugar. Cada etapa corresponde a uma mudança de consciência, que vem determinada em função da experiência do estágio anterior.

São João, porém, no Apocalipse (Ap. XX 14), fala da “segunda morte”: aquele que recusa, em seu tempo, levar sua cruz, morrer na Terra-mãe, asfixiará o Espírito que o habita. O gérmen se resseca ainda na semente, o ovo apodrece ainda em sua casca. Esta “segunda morte” é um suicídio espiritual, um assassinato do espírito que só eu mesmo posso provocar.

— Como viver esta “passagem interior”?

Você é o caminho! Recorre-se ao mundo em busca de um método para alcançar a Verdade, porém, não há técnica para elevar-se até Deus. O asceta utiliza a humildade, a obediência e a paciência para escalar suas próprias profundidades até as profundidades divinas (I Cor. II 10) animado pela luz do Paráclito; do mesmo modo que não há técnica para tornar-se um gênio, ainda que o artista utilize-se de técnicas para expressar seu gênio. A arte é, antes de tudo, uma projeção do espírito; o artista encarna sua inspiração na matéria e a fecunda com seu poder. É o domínio interior, a pureza do olhar, a precisão do gesto, a autenticidade do coração... o que distingue os criadores dentre eles. Façamos de nossa vida nossa primeira criação!

— Dado que não há método, e que devemos fazer de nossas vidas uma obra de arte, o que você me aconselha?

Primeiro, distinguir a Meta, o fim dos meios. A Meta suprema do homem é Deus! Um Deus vivo, pessoal, não um ídolo abstrato. O meio é você!

Não há nada exterior que acrescentar ao homem, tudo está inscrito em gérmen nele. A Tradição ensina àqueles que tem fé o caminho interior a levar a cabo para participar na própria deificação. A via passa por exigências: vigilância, perseverança, obediência, fidelidade, alegria, escuta... Utiliza métodos para verificar a autenticidade do discípulo, métodos que provocam reposicionamentos transfigurantes. Comprometem sempre nossa liberdade: o jejum, a vigília, a ascese, as preces, o louvor.

— Falaste de métodos?

Sim, se se inspiram nos Evangelhos e foram elaborados, como uma estrada, pelos padres no decorrer dos séculos e experimentados por milhares de ascetas.

Dado que estamos no ciclo pascal, vamos aprofundar naqueles que vivemos neste momento.

Os cinco domingos que precedem a Quaresma ensinam através de cinco relatos dos Evangelhos, as virtudes que se há de adquirir antes de lançar-se ao grande combate interior, cada qual encontra esta luta universal e eterna da alma humana.

O primeiro domingo, o de Zaqueu (Lc XIX 1-10), descreve a história de um publicano que, sendo de baixa estatura, sobe a um sicômoro para ver passar Jesus por Jericó. O primeiro movimento para Deus é o desejo. Desejo de superar-se, de elevar-se por sobre a própria natureza, pois a Meta do Homem não é o humano, como já disse, senão que a Meta última do Homem é o supra-humano. Não é um desejo que sai de nós mesmos, horizontal, senão um desejo que nos faz descobrir a Presença do Ser Amado em um mais além, no mais profundo de nós mesmos.

Zaqueu logo convida Cristo a compartilhar sua comida. O alimento é aqui espiritual: mediante um ato ritual, oferecemos a Deus nossa carne e nosso sangue em oferenda cruenta. A obra se baseia em sua própria substância; como um artista "se dá" inteiro em sua arte sem por isso esgotar-se. Multiplica-se por este dom sutil de si mesmo.

O segundo domingo é o do publicano e o Fariseu (Lc XVIII 10-14). O primeiro está orgulhoso de suas práticas religiosas, instalado na comodidade de uma prática rotineira; o outro, o publicano, simplesmente reconhece suas próprias faltas e pede humildemente a Deus que o ajude a apaziguá-las. A evolução não pode cumprir-se sem uma revisão sincera orientada para a unidade.

O terceiro domingo é o do Filho Pródigo (em grego "o Pai Misericordioso") (Lc XV 11-32). Depois do desejo, a tomada de consciência, eis aqui o regresso ao Pai. O Filho dilapidou toda a sua herança com pessoas de má vida. Volta pobre, se acha sozinho, exilado em uma terra distante, não podendo sequer comer a comida dos porcos. Decide voltar ao seu pai, que o acolhe com alegria. Cada palavra aqui, ao nível espiritual, é de uma riqueza incomensurável. "Que foi feito com o talento que te dei? (Mt XXV 14-30). "...porque, ao que tem ser-lhe-á dado e em abundância; porém, a quem não tem, ainda o pouco que tem ser-lhe-á tirado. Diante de Deus, sou responsável pelo mal que fiz, porém, também pelo bem que não fiz. E, temos, nesta parábola, a imagem da segunda morte. O ego encerrado em uma terra estrangeira não vive sua vocação de homem: imagem de Deus que deve alcançar Sua semelhança, desfruta da existência sem dar frutos.

O quarto domingo é o do Juízo Final (Mt. XXV 31-46). Todas as nações estão reunidas na presença do Filho do Homem que separa as ovelhas dos cabritos. Não é o dia da condenação, mas o do amor infinito.

Para expressar melhor todo este paradoxo da "sabedoria de Deus que é loucura para os homens", a Igreja escolhe para celebrar o Dia do Juízo o mesmo dia do Carnaval. Cada qual leva a máscara de seu escárnio, de sua verdadeira natureza reprimida, de sua ambição decepcionada ou impossível... Mediante este exorcismo o homem encontra de novo o humor fabuloso do justo que, penetrando em suas trevas, vê suas próprias debilidades como ilusões ou como o espantalho da glória efêmera do mundo, dizendo-se: "sim, sou rei por um tempo, vivendo eternamente". Seu riso está mesclado com lágrimas, pois o fantasma, cuja causa é ele mesmo, lhe ocultam a presença de Deus.

O quinto domingo é o do grande Perdão. Depois do desejo, a tomada de consciência, o regresso a própria origem e a radiante tristeza. Chega o tempo em que, cada qual, com seu perdão, liberta seu irmão do peso de sua dívida. Misericórdia que o torna parecido com a Misericórdia divina, a qual o permite entrar em ressonância com o poder infinito do perdão divino, que liberta o homem da queda. “O semelhante atrai o seu semelhante”.

Todas estes relatos apresentam, em cinco semanas, as condições necessárias para participar com um espírito [...] desperto no grande combate interior da Grande Quaresma. Durante este longo período de quarenta dias, o fiel provoca, involuntariamente, incidentes nele, mediante o jejum, a vigília, as longas preces, com o fim de despertar a besta e descobrir seus desertos, seus pontos débeis ou seus conflitos. Não se trata aqui de morais castradoras, nem de culpabilidades inúteis, nem de retrocessos ou hipocrisias, cada qual permanece somente diante de si mesmo e de Deus. Pede a seu pai espiritual ou a seu confessor que o acompanhe na tomada de consciência sincera de sua própria natureza. O fiel leva a cabo, por graça de Deus, uma espécie de “poda” vivificante no bosque verde de seu corpo com o fim de transfigurar as paixões em virtudes, fazendo, do que está escondido, de um costa-à-costa, um face-a-face silencioso, complementar.

Estes quarenta dias de ascese no espírito preparam o cristão para a Páscoa, e a Páscoa vivida no seio da Igreja o torna partícipe da Ressurreição de Cristo vivo hoje em nós, aqui no coração, tornando-nos novamente “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”. (Rm VIII 17).

“Por que buscais entre os mortos Aquele que está vivo?” (Lc XXIV,5)

— Como fazer?

Um bailarino aprende a dançar dançando e não meditando nos livros. O primeiro movimento para entrar na dança é interior, é o desejo. Não se pode obrigar ninguém a que dê seu ser, a arte é um dom de si que corresponde ao transbordamento da própria natureza, uma expansão interior que se manifesta harmoniosamente na obra. A arte não alivia o ego reproduzindo sua própria imagem.

Tomando consciência de seus limites a respeito de seu desejo, o bailarino solicita a um mestre que lhe inicie no rigor da técnica com o fim de integrar e de adquirir a maestria interior . Trabalha diariamente cada gesto , descobrindo todas as suas debilidades, busca a cada instante tornar-se mais rápido e poderoso numa harmonia justa e purificada. Não há nesta aproximação interior nenhuma violência, nenhum masoquismo;, o sofrimento se acha sublimado pelo amor que tem pela arte. Com este exemplo pretendi interpretar, em outra linguagem, as qualidades que precedem a quaresma. O bailarino é um servo enamorado de sua arte, entregando-lhe todo o seu corpo para que a música, através dele, revele-se em toda a sua magnificência. Deixa-se eclipsar para que melhor resplandeça a coreografia. Com sua obediência ativa, é testemunho de um hálito maior que sua própria natureza. Torna-se a encarnação viva, visível, da música que, sem ele, permanece invisível.

A Tradição ensina o caminho interior que leva a cabo, da cabeça ao coração, porém ela não dará nenhum passo em seu lugar. Estudar a Tradição ao pé da letra não significa ter conhecimento, senão conhecer a doutrina. Negar a teoria é absurdo, pois se rechaça a experiência dos padres que levaram a cabo o caminho para a deificação, encontrando as mesmas provas e cujos exemplos nos servem de guia. O caminho se vive livremente no Espírito, no maravilhar-se do cotidiano, na escuta dos antigos e na relação silenciosa com o Deus vivo em nós. A Páscoa simboliza o renascimento de toda o criado em "corpo glorioso", de Homem restaurado em sua unidade ontológica.

— Assim pois, a arte pode ser religiosa?

Religiosa, certamente, porém não pode substituir a religião que necessita uma total participação do Ser: corpo, alma, espírito e uma superação em direção ao divino. A música não é mais que uma parte da Tradição. É perigoso tomar uma parte do Todo e fazer dela uma verdade plena.

A salmodia, a iconografia, a teologia, a ascese, o jejum, as preces, a vigília, os votos de pobreza, de obediência, de castidade, de trabalho diário, o acolhimento aos hóspedes, o ano litúrgico... não podem pretender tampouco circunscrever a plenitude da divindade, porém, todos participam, em seus limites e vocação, à purificação do coração que é o "órgão" da inteligência, e na construção do corpo como templo da carne, o receptáculo da Graça.

A luz do sol, por exemplo, brilha sobre todos, justos e injustos, porém, só aqueles que se detêm para contemplar seu resplendor poderão sentir sua beleza e seu poder; Se eu sou o receptáculo da Luz, nem por isso sou o sol que se dá a conhecer por suas energias, senão que um abismo me separa de sua natureza.

— Poderíamos contemplar o ícone da crucifixão?

O padre se inclina diante do ícone e logo o venera com um beijo.

O ícone não é uma pintura, não se o examina como um quadro, senão com o olhar da fé se deixa que a imagem nos fale ao coração o que se traduz pela perspectiva inversa. O ponto de fuga se situa no homem, o conduz a seu centro. Para acolher as Presenças Espirituais, a iconografia obedece a leis muito estritas; por exemplo, três dias de jejum antes de esboçar alguns traços que manifestam movimentos de vida, como no caso do olhar. Estes gestos devem estar purificados de toda emoção e pensamentos pessoais, pois são portadores de Outra natureza apaixonada. O ícone torna visível o invisível, revela o Rosto interior de um santo, da Virgem ou de Cristo. Quando você olha a fotografia de um amigo, é a pessoa o que se vê no papel; no ícone, é a Presença a que se venera através da imagem, e não o objeto em si mesmo, pois esta Presença real, dinâmica, viva, desperta, por analogia, um estremecimento interior que faz do fiel um participante no mistério da vida que é movimento. O ícone é uma prece visível e nos situa em ressonância com o transcendente, com a eternidade.

Neste ícone da crucifixão, que representa uma das Doze Festas do ano litúrgico, temos: um céu dourado para significar que a luz é de outra natureza que a luz visível do sol e da lua representados em ambos os lados da Cruz. O tempo é intemporal, é espaço mais além do criado; a Cruz transpassa o espaço-tempo e nos eleva. Cristo não bendiz nenhum sofrimento mórbido senão que o corpo, fixado à madeira, parece o de um recém-nascido de pele rosada. Para ressaltar que esta morte não é inútil, um anjo recolhe num cálice, o sangue e a água que brotam da Fonte. O novo Adão sela a Nova Aliança de Deus com sua Criação. O primeiro Adão é representado sob a forma de um crânio sobre uma cruz horizontal de ossos ao pé da cruz erguida. O homem antigo serve de supedâneo, de base ao Homem Novo. Maria, Mãe da humanidade de Jesus, matriz de Deus, está de pé com o bem-amado apóstolo João, com a expressão dos sofrimentos, das dores de um parto. Ao fundo, a Jerusalém celeste que se eleva em relação a terra verde, expressa a promessa dos bens vindouros. Não há nesta crucifixão nenhuma dramatização, senão a eclosão para uma nova Vida.

— Esta crucifixão não se parece em nada ao Cristo sofredor de nossas igrejas do Ocidente.

Para a Tradição ortodoxa, a Paixão se reveste de um caráter de vitória real e não de sofrimentos. As humilhações, a crucifixão, a descida ao sepulcro, são testemunhos do caráter triunfal da majestade divina. Este paradoxo transluz nos hinos de quaresma. "Arrancaram minhas vestes e me cobriram de púrpura, colocaram sobre minha cabeça uma coroa de espinhos e, em minha mão, um cetro de junco". A veste de escárnio aparece como o manto de luz do Rei que vem para julgar o mundo.

Cristo veio dar testemunho sobre a terra de que o contrário da morte não é a Vida, senão que, o contrário da morte é o nascimento e de que o homem, durante sua existência pode alcançar sua Vida, realizando nela uma conversão, vivendo voluntariamente o mistério da redenção que se identifica com a obra da Criação. O homem transfigurado conhece as razões essenciais de todas as coisas, até mesmo sua finalidade. Se torna, pela Graça, em co-criador e participa na transfiguração do universo até a Parusia.

— Antes de me despedir, padre, poderia dizer-me algumas últimas palavras?

Sim. Não envelheça tua existência sem dar à luz a tua vida, não banalizes cada dia com temores sem fundamento ou vãs ambições. Que cada dia seja para ti uma festa, um maravilhar-se, que teus gestos sejam os de louvor, tua vida uma alegre dança, que estale por toda a tua pele em parcelas de luz e, atreva-te a gritar ao mundo adormecido a beleza da vida com hinos de alegria.

«Cristo ressuscitou!»

ECCLESIA

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF