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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Um querer divino

Foto: Dimitri Conejo Sanz
Sétimo artigo da série “Como as mãos de Deus”, com textos da pregação de São Josemaria sobre a família.

Tradução de textos da pregação de São Josemaria sobre a família publicados no livro “Como las manos de Dios” de Antonio Vázquez (Ed. Palabra).

Não havia passado nenhum ano do falecimento de São Josemaria quando, em um ato in memoriam celebrado na Universidade de Navarra, o Bem-aventurado Álvaro del Portillo, a pessoa que conheceu o Fundador mais de perto, ao descrever a sua condição de instrumento de Deus, começou dizendo: Duas profundíssimas convicções emolduram a personalidade humana e sobrenatural de Mons. Escrivá: uma renovada e verdadeira humildade – a consciência plena de todo dom que vem de Deus – e, ao mesmo tempo, uma clara percepção da sua vocação. Dois conceitos intimamente unidos de forma permanente.

O Fundador da obra detalha a gratuidade desses dons em uma homilia sobre a vocação cristã: Realmente, na base da nossa vocação está o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as luzes que iluminam a alma  a fé  o amor com que amamos  a caridade  e o desejo que nos mantém  a esperança  são dons gratuitos de Deus. Tudo o que somos e temos é obra de Deus.

Antes de aproximar-nos à compreensão do que é o amor humano, é urgente colocar as coisas no seu devido lugar. Tudo o que o homem possui, recebeu de Deus: inclusive a capacidade de amar. Sem esse conceito bem estabelecido, é possível introduzir tal desvio na origem das coisas, que nos enganemos sobre o nosso destino e, portanto, sobre a trajetória de nossas vidas.

Voltando ao texto da homilia de São Josemaria no campus da Universidade de Navarra, em outubro de 1967, sobre o qual fiz uma glosa no capítulo anterior, evidencia-se a ideia de que todo dom que sai das mãos de Deus é santo. Neste contexto, não é surpreendente que, quando o Fundador do Opus Dei se referisse ao amor humano, qualificasse essa realidade como algo particularmente entranhável da vida ordinária. Refiro-me – foram as suas palavras – ao amor humano, ao amor limpo entre um homem e uma mulher, ao noivado, ao matrimônio. Devo dizer uma vez mais que esse santo amor humano não é algo permitido, tolerado, ao lado das verdadeiras atividades do espírito, como poderiam insinuar os falsos espiritualismos. Mais adiante, acrescentou: eu encomendei os amores de todos a Santa Maria, Mãe do Amor Formoso.

Santo amor humano. Ou seja, se não é santo, é um amor passageiro, incompleto, fraco, empobrecido, mutilado, também humanamente, porque desconhece a sua origem e seu fim. Nem o amor humano nem o casamento foram inventados pelos homens. Somente Deus é seu autor. Deus, que criou o homem por amor, também o chamou para o amor, vocação fundamental e inata de todo ser humano (...).Tendo-os Deus criado homem e mulher, seu amor mútuo se torna uma imagem do amor absoluto e indefectível de Deus pelo homem[1].

E, para que não caibam dúvidas, o Catecismo da Igreja Católica ressalta que este amor é bom, muito bom, aos olhos do Criador.

Pode-se pensar que, para descrever como deve ser o amor entre os cônjuges, foi estabelecido um modelo muito sublime, intransponível, mas exato: amar o outro como Deus os ama. Porque a medida do amor cristão não está no coração do homem, mas no coração de Deus.

Quando um casal quer abordar seu amor nas dimensões que lhe correspondem, deve esforçar-se por aprender a amar-se, dentro dos seus limites, com um amor que se assemelhe, nas suas qualidades, ao amor de Deus: isto é, que exista “uma razão de similaridade”. A partir dessa abordagem, superam-se qualquer monotonia, estagnação ou rotina. Sempre é possível mais. Não importam as circunstâncias, o passar dos anos ou os obstáculos que com certeza virão, de dentro e de fora.

Enfrentamos um desafio de dimensões cada vez maiores. São Josemaria oferecia, sobre esta possibilidade, múltiplas sugestões em encontros com milhares de pessoas. Eram encontros familiares, nos quais, apesar do número de participantes e da variedade de condições, se estabelecia uma comunicação pessoal simples e natural. Ao mesmo tempo, essas palavras poderiam ser traduzidas com significado próprio por cada um dos presentes. Que vocês se amem muito”, exortava aos casais em São Paulo. O amor dos cônjuges cristãos – sobretudo se são filhos de Deus no Opus Dei –, é como o vinho, que melhora com os anos e ganha valor… Porque o seu amor é muito mais importante que o melhor vinho do mundo. É um tesouro esplêndido que o Senhor quis conceder a vocês. Conservem-no bem. Não o joguem fora!”

Este é o elixir da juventude eterna que todos nós buscamos para nossos amores. Um anseio que somente o nosso excesso de cobiça e a nossa falta de ambição puderam diminuir. Não devemos permitir que os atritos cotidianos reduzam nosso amor a algo raquítico e anêmico, quando se espera que alcancemos uma estatura de maior dimensão.

São Josemaria foi um mestre na difícil arte de amar, enquanto se esforçava por nos ensinar a colocar o nosso coração no amor a Deus. Visto assim, quanto vale um pequeno ato, feito por Amor! Muitas vezes, com certa perspicácia, ele sugeria aos casais exemplos de amor simples, mas eloquentes. Assim, quando uma mulher lhe perguntou como manter vivo o amor ao marido, além de outras considerações de ordem sobrenatural, não deixou de lhe oferecer um detalhe tão natural quanto prático: tentar cuidar da comida de uma maneira especial quando sabia que seu esposo retornaria para casa especialmente cansado. Não são receitas, são parábolas, que servem para reter uma ideia. Mais tarde será uma imagem que, guardada na memória, aparecerá contra a luz, convertida em flash, ante uma situação semelhante. Não é arriscado afirmar que, de seu amor transbordante, sem efeitos facilmente emocionais, surgia todo o valor significativo e atraente de seus ensinamentos.

Tudo entra em jogo nessa constante aprendizagem de amor. O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente[2]. O plano de Deus para o casamento foi feito à medida do Seu amor, e não dos nossos limites. Aprofundar e ampliar horizontes é uma tarefa que não tem fronteiras. Para realizá-la, é essencial segurarmos na mão de Deus que é o Único que conhece as possibilidades e fragilidades do coração humano, e perguntar-nos a cada passo, na intimidade do nosso relacionamento com Ele, o que espera de nós. Como devemos fazer isso? Em que? De que maneira podemos atravessar nossa vida por aquele nervo substancial de onde tudo se enraíza e se expande? Dessa perspectiva, uma nova luz aparece para avaliar até os menores detalhes de nossa caminhada diária. Não são nuvens de algodão, nem enfeites cor de rosa: são fatos. Fatos que exigem esforço, às vezes heroico. O fundador do Opus Dei referia-se a eles ao insistir que é missão muito nossa transformar a prosa desta vida em decassílabos, em poesia heroica. Heroica – porque requer luta e esforço, mas poesia: porque é a única forma de expressar o inefável. O amor assim entendido gera a força transformadora e criativa que prolonga o poema até o crepúsculo de uma existência sem rotinas, nem desvios, embora não faltem dor e cansaço. Venha o que vier e aconteça o que acontecer, porque cada episódio será apenas uma passagem, um recomeçar em um caminho com um fim esperado.

São inúmeras as tentativas humanas, recolhidas pela literatura de todas as épocas, de tentar apresentar o amor humano honesto das maneiras mais multifacetadas. Bem-vindas sejam, pois todas são fagulhas instantâneas que saem da mesma fogueira e algumas fazem vibrar a alma ao mostrar a variedade de registros que o ser humano entesoura. Junto com isso, muitas vezes, essas impressões brilhantes transmitidas limitam-se a contar-nos o anseio de satisfação e a nostalgia do infinito, quando não revelam como é fácil que nos enganemos em nossas aspirações mais elevadas terminando em degradantes escoadouros. Não há mais amor do que aquele que vem do Amor. O resto, no máximo, converte-se em pseudo-amores ou aventuras românticas, por mais ruídos que produzam nos alto-falantes. Ao aprofundar nisso, devemos nos remeter a Santo Agostinho: Como é então, Senhor, que eu Te procuro? De fato, quando Te procuro, ó meu Deus, é a vida feliz que eu procuro. Faz com que Te procure, para que a minha alma viva! Porque tal como o meu corpo vive da minha alma, assim a minha alma vive de Ti[3].

Em última análise, o amor é um mistério, que nunca acabamos de compreender e o amor humano mostra claramente essa evidência. Por que me apaixonei por essa pessoa? Por que devo entregar parte da minha vida a um ser com essas qualidades e limitações? Como é possível que eu ame esta criatura, apesar do seu nada, por causa de seu nada, e a ame com um amor mais forte do que tenho por mim mesmo e por minha felicidade? Isso só é possível se o amor humano estiver combinado e amalgamado com o amor eterno. Não são devaneios românticos. É preciso compreender e aceitar que o que o amor humano tem de plenitude e de limitação, não é obstáculo para chegar a Deus. Muito pelo contrário: é a ocasião para se aproximar Dele. Assim nos fazia ver o fundador do Opus Dei ao recordar que o matrimônio cristão é sinal sagrado que santifica, ação de Jesus que se apossa da alma dos que se casam e os convida a segui-Lo, transformando toda a vida matrimonial em um caminhar divino sobre a terra.

Foi Deus quem, na criação, antecipando-se a todo amor humano imaginável, disse: “Eu quero que você seja ... é muito bom que você exista” (cfr. Gen 1,31) (...), Portanto, se Deus amou essa criatura a ponto de dar-lhe existência ... que posso fazer senão repetir e tentar imitar esse amor divino? Em virtude da sua própria natureza e irreversivelmente, o amor humano não pode ser mais do que uma imitação, uma espécie de repetição desse amor de Deus. Temos certeza de que nunca o conseguiremos, mas na determinação por alcançá-lo já existe um valor agregado de felicidade para a pessoa que amamos, e um olhar compassivo de Deus que recompensa até um copo de água que dermos em Seu nome.

Amar o cônjuge como Deus ama. Aqui está uma tarefa sugestiva o suficiente para preencher toda a vida e mil vidas que tivéssemos. Verdadeiramente, é curto o nosso tempo para amar, para dar, para desagravar repetia o fundador do Opus Dei na última etapa de sua vida terrena.

Uma das qualidades desse amor é a totalidade. Deus nos ama como somos, não prescinde de aspectos ou parcelas de nossa personalidade. Ainda que tenhamos o rosto sujo e o coração desgrenhado, Ele continua amando cada um de nós com um amor de predileção, como se os outros não existissem. Aceita-nos como somos, ainda que nos prefira melhores. Por isso, São Josemaria insistia muitas vezes que amássemos os defeitos de nossos cônjuges, quando não são ofensa a Deus. E se fossem, seria com o exemplo e o carinho que conseguiríamos fazê-los mudar:

Além disso, independentemente dessas fraquezas, contribuirás para remediar as grandes deficiências dos outros, sempre que te empenhares em corresponder à graça de Deus. Reconhecendo-te tão fraco como eles – capaz de todos os erros e de todos os horrores – serás mais compreensivo, mais delicado.

Nada pode nos surpreender ou assustar. Nem o amor de Deus nem o amor humano são uma enteléquia. Não amamos um ente ideal, nem um produto de fantasia resplandecendo luzes e cores. O objeto do nosso amor são criaturas de carne e osso. O amor humano está enervado com realidades que são vistas, ouvidas e tocadas. É uma dedicação total a alguém, no que é grande e pequeno, na presença e na lembrança. É um amor intuitivo e racional, inteligente, criativo e tão madrugador que se antecipa. Mas acima de tudo é operacional, se cristaliza em obras.

Se realmente pretendemos viver de amor, se queremos superar a confusão ou as desorientações teóricas e práticas que podem surgir ao tornar realidade esta vocação fundamental do ser humano, devemos aprender a amar.

(Extraído do livro de Antonio Vázquez “Como las manos de Deus”, edições Palabra, Madri)

Tradução: Mônica Diez

[1] Catecismo da Igreja Católica, 1604.

[2] São João Paulo II, Redemptor Hominis,10.

[3] Santo Agostinho, Confissões, 10, 20, 29: CCL 27, 170 (PL 32, 791).

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF