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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Captar o essencial com clareza

Nesta página, Giotto, detalhes dos afrescos da Capela dos
Scrovegni, Pádua; acima, A última Ceia | 30Giorni
Arquivo 30Dias - 12/2005

Captar o essencial com clareza

Uma reflexão do arcebispo emérito de Florença sobre a encíclica do papa Bento XVI

do cardeal Silvano Piovanelli

Quando as carmelitas descalças do mosteiro de Santa Teresa em Florença tiveram notícia do título e do tema da primeira encíclica do papa Bento XVI, exclamaram quase em coro: “É ele!”.
Sim, é ele! Papa Bento gosta de captar com clareza o essencial. E captá-lo não catedraticamente e por meio de discursos difíceis, mas com profundidade e simplicidade ao mesmo tempo, de modo a ser compreendido por todos.
A maneira de prenunciar a publicação também foi insólita, quase familiar. Ele falou dela de improviso com os quase dez mil fiéis da audiência geral da quarta-feira, dando a entender que a redação do texto, a sua elaboração, as traduções requereram mais tempo do que o previsto (“finalmente, em 25 de janeiro será publicada a minha primeira encíclica!”), e reconhecendo que o atraso foi providencial, pois fez coincidir a publicação da encíclica com a festa da conversão de São Paulo e a conclusão da semana de oração pela unidade dos cristãos.
É ele! Numa conferência no “Meeting pela Amizade entre os Povos” de 1990, dizia corajosamente: “Está disseminada hoje, aqui e ali, mesmo em ambientes eclesiásticos elevados, a idéia de que uma pessoa é tanto mais cristã quanto mais está empenhada em atividades eclesiais. A pessoa é levada a uma espécie de terapia eclesiástica da atividade, do ter o que fazer: procura-se assinalar um comitê para cada um ou, em todo caso, ao menos um grande compromisso dentro da Igreja. De certa forma, pensa-se, deve haver sempre uma atividade eclesial, deve-se falar da Igreja, deve-se fazer alguma coisa por ela ou nela. Mas um espelho que reflete apenas a si mesmo não é mais um espelho. Uma janela que, em vez de permitir um olhar livre para o horizonte distante, se interpõe como uma tela entre o observador e o mundo, perdeu o seu sentido. Pode acontecer que alguém exerça ininterruptamente atividades associativas, eclesiais, e todavia não seja realmente um cristão. Pode acontecer, em vez disso, que algum outro viva simplesmente apenas da Palavra e do Sacramento e pratique o amor que provém da fé, sem nunca ter comparecido a comitês eclesiásticos, sem nunca ter-se ocupado das novidades da política eclesiástica, sem ter feito parte de Sínodos e sem ter votado neles, e todavia é um verdadeiro cristão. Não é de uma Igreja mais humana que precisamos, mas de uma Igreja mais divina; só então ela será também verdadeiramente humana... Quanto mais aparatos construímos, ainda que sejam os mais modernos, menos espaço há para o Espírito, menos espaço para o Senhor, menos liberdade há. Eu penso que deveríamos, deste ponto de vista, começar na Igreja um exame de consciência em todos os níveis, sem reservas”.
A coisa mais importante para a Igreja, portanto, não é o fazer, mas o ser: escolher, como Maria de Betânia, a parte melhor, que é sentar-se aos pés do Amado e beber sua palavra com alegria. Não certamente para viver um intimismo solitário e dobrado sobre si mesmo, mas para dar um testemunho forte desse Amor, que por nosso intermédio quer alcançar a todos.
É ele! Ele, que reconhece o seu mestre em Santo Agostinho. O qual, comentando as cartas do apóstolo João, escrevia: “‘Deus é amor’: uma frase breve, de um só período, mas que peso de significado ela contém” (In Ep. Io., 1). “O que podia dizer mais, ó irmãos? Se não houvesse em toda essa Epístola e em todas as páginas da Escritura nenhum louvor da caridade fora dessa única palavra que entendemos da boca do Espírito, ou seja, que Deus é caridade, não deveríamos mais crer” (In Ep. Io., 7, 4).
“Busca saber como é possível ao homem amar a Deus: de modo algum saberás como, a não ser no fato de que ele nos amou em primeiro lugar. Ele nos deu a si mesmo como objeto a ser amado, nos deu os recursos para amá-lo. O que ele nos deu com a finalidade de poder amá-lo, ouve-o de maneira mais explícita do apóstolo Paulo, que diz: ‘A caridade de Deus está espalhada em nossos corações’. Mas como? Acaso por obra nossa? Não. Mas então como? ‘Pela ação do Espírito Santo que nos foi dado’” (Sermo 34, 2).
“Se todos se marcassem com a cruz, se respondessem ‘Amém’ e cantassem todos ‘Aleluia’; se todos recebessem o batismo e entrassem nas igrejas, se fizessem construir as paredes das basílicas, restaria o fato de que somente a caridade permite distinguir os fi­lhos de Deus dos filhos do diabo. Os que têm a caridade nasceram de Deus, os que não a têm não nasceram de Deus. É esse o grande critério de discernimento. Se tivesses tudo, mas te faltasse essa única coisa, de nada te aproveitaria o que tens; se não tens as outras coisas, mas possuis esta, cumpriste a lei” (In Ep. Io., 5, 7).
Numa passagem belíssima, Agostinho esclarece como a caridade não consiste principalmente e simplesmente num “fazer”, que poderia ser também expressão de um amor egoísta e soberbo, que deseja ser louvado pelos homens: “Vede as grandes obras que a soberba realiza: dai bastante atenção a como elas são semelhantes e quase iguais às da caridade. A caridade oferece alimento a quem tem fome, mas o faz também a soberba: a caridade faz isso para que o Senhor seja louvado, a soberba o faz para dar louvor a si mesma. A caridade veste um nu e o faz também a soberba; a caridade jejua mas o faz também a soberba; a caridade sepulta os mortos, mas o faz também a soberba... A divina Escritura nos convida a sair dessa ostentação e a voltar a nós mesmos, a voltar ao nosso íntimo saindo dessa superficialidade que se ostenta diante dos homens. Volta ao íntimo de tua consciência, interroga-a. Não olha para o que floresce exteriormente, mas vê qual é a raiz que está oculta na terra”.
“Deus não te proíbe de amar as criaturas, mas te proíbe de as amar com a finalidade de obter delas a felicidade” (In Ep. Io., 2, 11).

O lava-pés | 30Giorni

É ele! Quantas vezes a palavra amor ou algo correspondente ressoou em seus lábios!
Na homilia da missa de início do ministério petrino, exclamou: “Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem [...]. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho [...]. Rezai por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos”. “Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a Sua amizade.”
Às crianças da Primeira Comunhão, que recebeu na praça de São Pedro em 15 de outubro, explicou: “Adorar é dizer: ‘Jesus, eu sou teu e sigo-te na minha vida, nunca gostaria de perder esta amizade, esta comunhão contigo’. Poderia também dizer que a adoração na sua essência é um abraço com Jesus, no qual eu digo: ‘Eu sou teu e peço-te que estejas também tu sempre comigo’”.
Na abertura do Congresso da Diocese de Roma sobre a Família, sublinhava: “A vocação para o amor é aquilo que faz com que o homem seja a autêntica imagem de Deus: ele torna-se semelhante a Deus na medida em que ama”.
Em Bari, concluindo o Congresso Eucarístico Nacional, o Papa lembrava que Agostinho ini­cialmente teve dificuldades para aceitar a perspectiva do “repasto eucarístico”, que lhe parecia indigna de Deus: nos repastos comuns, de fato, o homem é o mais forte, na medida em que é ele quem assimila o alimento, fazendo deste um elemento da sua realidade corpórea. Mas num segundo tempo, Agostinho entendeu que na Eucaristia as coisas caminhavam no sentido exatamente contrário: o centro é Cristo, que nos atrai para si, nos faz uma só coisa com ele e, dessa forma, nos insere também na comunidade dos irmãos... Não podemos comungar com o Senhor se não comungamos entre nós.

Noli me tangere | 30Giorni
Aos jovens peregrinos em Colônia disse com força: “Não são as ideologias que salvam o mundo, mas unicamente dirigir-se ao Deus vivo, que é o nosso criador, a garantia da nossa liberdade, a garantia do que é deveras bom e verdadeiro. A verdadeira revolução consiste unicamente em dirigir-se sem reservas a Deus, que é a medida do que é justo e ao mesmo tempo é o amor eterno. E o que nos pode salvar a não ser o amor?”.
O mal e o sofrimento, sobretudo o sofrimento dos inocentes, mas também o ódio e a crueldade gratuita de tantas pessoas continuam a ser o escândalo que torna difícil a esperança. Hoje, para muitos, a vida não tem sentido. Saber que Deus tem um amor sem limites por todos nós, homens e mu­lheres, e por toda a criação, e que entregou seu Filho único para salvar o mundo, dá um sentido à vida.
É ele! Tenho a encíclica em minhas mãos, mas ainda não cortei as páginas. Tudo o que disse até agora me foi sugerido pela expressão certeira de uma comunidade de carmelitas descalças. Lerei com atenção esta primeira encíclica do papa Bento XVI, não esquecendo que - como diz a raposa do Pequeno Príncipe no conto de Saint-Éxupery - “nós só vemos bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade. Você não a deve esquecer”.
Tenho confiança de que todas as pessoas às quais a carta é endereçada - os bispos, os presbíteros, os diáconos, as pessoas consagradas e todos os fiéis leigos -, lendo com o coração as palavras do papa Bento, tornarão programa de sua vida o que o novo Papa declarou solenemente no início de seu serviço petrino: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir idéias mi­nhas, pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor, e deixando-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história”.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF