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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O profeta da liberdade católica

Antonio Rosmini | Wikipedia
30Dias - Extraído do número 09 - 2007

O profeta da liberdade católica

Ele dialogou com os grandes homens de sua época; travou a batalha por aquele catolicismo liberal que mais tarde venceria a guerra na democracia ocidental típica da segunda metade do século XX; escreveu milhares de páginas de filosofia. Mas nada disso o teria salvo da censura, se não fossem os rosminianos

de Giuseppe De Rita

O frontispício do ensaio Das cinco chagas da
Santa Igreja
, obra publicada pela primeira vez
por Rosmini em 1846, que seria inserida
no Índice em junho de 1849

O frontispício do ensaio Das cinco chagas da Santa Igreja, obra publicada pela primeira vez por Rosmini em 1846, que seria inserida no Índice em junho de 1849

Um mestre que só seus discípulos salvaram de ser censurado na cultura e na Igreja. Esse foi o misterioso mecanismo que, um século e meio depois, levou a Igreja a decidir beatificar Antonio Rosmini.
Ao longo de sua vida, ele dialogou com os grandes homens de sua época, de Carlos Alberto a Pio IX, passando por Manzoni; travou com vigor a batalha pelo catolicismo liberal que mais tarde venceria a guerra na democracia ocidental típica da segunda metade do século XX; e, especialmente, escreveu milhares de páginas de filosofia, de cultura religiosa, de reflexão social. Mas nenhuma dessas três presenças (a amizade dos grandes homens, o fato de ter profetizado a “liberdade católica”, de ter escrito milhares de páginas) teria salvo Rosmini do esquecimento e da rejeição. Ele teve muitos inimigos, especialmente dentro da Igreja; era muito difícil, e continua a ser, entender seu pensamento; muitos, estudiosos e membros do clero, preferiram considerá-lo inteligente demais para as pobres mentes dos fiéis. Além de tudo isso, o Santo Ofício o pôs de castigo, uma circunstância que acabou por ser um bom álibi para todos.
Se ele se salvou da censura generalizada e coletiva, deve-o principalmente aos rosminianos, a seus discípulos do Instituto da Caridade, que ele criou, tenazmente fiéis a sua maneira de ser Igreja, contra todo tipo de ostracismo. Foram os rosminianos que, com suas escolas, formaram dezenas de milhares de jovens usando uma filosofia de formação de cunho personalista e liberal, implicitamente contraposta à pedagogia estatal totalizante ou à pedagogia jesuítica militante (à qual, de resto, devo minha maneira de pensar). Foram os rosminianos que continuaram com constância, durante décadas, mas sem um protagonismo público, a levantar o problema da qualidade estrutural da Igreja, propondo a leitura de As cinco chagas e, mais ainda, afirmando o primado espiritual de sua liberdade sobre o poder temporal. Foram os rosminianos que escolheram dialogar com aquela parte da elite cultural italiana que durante décadas cultivou um espírito democrático, um senso de convivência coletiva, um fôlego cotidiano de caridade espiritual; posso dar testemunho do prestígio “elitista” que cercava padre Bozzetti nos anos do pós-guerra, e muitos podem testemunhar a forte influência que Clemente Riva teve sobre uma parte importante da mais recente classe dirigente italiana.
Foram os rosminianos, portanto, teimosamente convencidos de que estavam certos, mesmo nos períodos de maior frustração, que salvaram Rosmini de um potencial (e por muitos desejado e provocado) esquecimento. Palmas, portanto, para eles. Mas palmas também para seu fundador, se é verdade que os líderes são reconhecidos por seus seguidores: no fundo, foi a profundidade de seu pensamento (inesgotável, para quem teve contato com ele) que tornou poderosa a vontade dos rosminianos de dar testemunho dele. Como dizia Buber, “é a raiz que sustenta”.
Escolher quais dos componentes dessa “raiz” têm maior importância relativa é uma coisa difícil, mas, como “diletante agregado” do mundo rosminiano, parece-me que Rosmini e os rosminianos tiveram razão a respeito de quatro grandes temas, primeiramente ao insistir neles contra tantos adversários e, além disso, fazendo que pouco a pouco penetrassem na consciência coletiva, mesmo sem um protagonismo público e midiático próprio.
O primeiro tema é o da liberdade religiosa. Depois do Concílio Vaticano II, parece uma opção óbvia. Mas olhemos para os tempos de Rosmini, quando o Estado da Igreja e o pontífice soberano ainda existiam, e ninguém certamente se escandalizava com isso, já que estava escrito no Estatuto Albertino que o catolicismo era “religião de Estado”. O único que reagiu duramente contra isso foi Rosmini, que escreveu: “A religião católica não precisa de proteções dinásticas, mas de liberdade. Precisa de que sua liberdade seja protegida, nada além disso”. A Igreja, sendo sociedade natural e espontânea, não se condensa no poder, mas infiltra-se e penetra por toda parte, como o ar e a água; só necessita não ser coagida. A fé entra nos corações sem passar por poderes de cúpula. Não foram muitos os que, nas décadas marcadas pelo Vaticano I, tiveram a coragem de fazer afirmações desse tipo.
O segundo grande tema rosminiano foi a liberdade do papado ante seu poder temporal. Em outra oportunidade lembrei uma carta de Rosmini ao cardeal Castracane, de 1848, na qual ele escrevia: “Se ocorresse a unidade federativa da Itália, o sumo pontífice seria um príncipe totalmente pacífico, e enviaria núncios para as questões espirituais; e os enviaria, ainda por cima, não aos príncipes, mas às Igrejas do mundo todo”. Ele enxergou bem, e os fatos lhe deram razão, pois correspondem hoje a essa opção, feita por ele, repito, em 1848, ou seja, mais de vinte anos antes da unificação nacional de 1870.
Os dois temas para os quais chamei a atenção até aqui (liberdade religiosa e afastamento do poder temporal) ligam-se subterraneamente a outro grande tema rosminiano: a recusa a estar sob o domínio do poder político, a grande opção que fez de Rosmini o porta-bandeira italiano do catolicismo liberal, e – se o termo não perturbar a ninguém – do catolicismo democrático. Sempre apreciei muito sua recusa a estar sob uma “autoridade que não cria sociedade, mas domínio e servidão”, até porque ligo essa frase a uma outra, que diz que “a construção da sociedade é um conjunto de ações e uma pluralidade de pessoas”, na qual se percebe o início da temática do pluralismo cultural e político e do “desenvolvimento do povo” que caracterizou a democracia italiana nas últimas décadas.

O primeiro tema é o da liberdade religiosa. Depois do Concílio Vaticano II, parece uma opção óbvia. Mas olhemos para os tempos de Rosmini, quando o Estado da Igreja e o pontífice soberano ainda existiam, e ninguém certamente se escandalizava com isso, já que estava escrito no Estatuto Albertino que o catolicismo era “religião de Estado”

Para mim, é natural e espontâneo ligar essa fé no desenvolvimento realizado por uma pluralidade de pessoas à consideração de que uma sociedade com muitos sujeitos só pode crescer, só pode explorar com serenidade todas as suas possibilidades se respeita e faz respeitar todos os direitos, que cultiva a segurança de todos os direitos, o uso livre de todos os direitos. Este, simplesmente, é o liberalismo de Rosmini, que depois criou muitos problemas a ele e a sua Congregação: a sociedade deve ser construída de modo tal que todos possam fazer uso livremente de seus direitos. E este é o conceito de bem comum que sua complexa reflexão sócio-política deixa transparecer: a subjetividade, na medida em que permanece fechada em si mesma, não é vital, mas passa a sê-lo quando entra em relação com os outros, “conspira com os outros para a criação de uma sociedade que tenha como finalidade comum o uso livre dos direitos”.
Nesta altura, dá para imaginar o quanto eu gostaria de me embrenhar pelos outros percursos que essas temáticas abrem: o valor da subjetividade individual como grande motor social, quando não se deixa tentar pelo subjetivismo ético; o valor da relação como percurso de vidas que não se fecham pondo-se a si mesmas como centro, de maneira narcisista e/ou por lendo-os e levando-os, com o tempo, a serem temas não de uma minoria rejeitada, mas de uma ala da Igreja que marcha em sua evolução histórica nos últimos cento e sessenta anos. Foram humildemente fiéis à Igreja e a seu fundador e profeta; merecem todos eles, mesmo os que já não estão entre nós, sentir como uma vitória sua o fato de terem chegado à meta da beatificação.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF