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sexta-feira, 9 de julho de 2021

A doutrina católica sobre o sacerdócio ministerial, antes, durante e depois do Concílio Vaticano II (Parte 4/5)

Presbíteros
Padre Mauro Gagliardi – Pontifício Ateneu Regina Apostolorum, Roma
  1. Tendências teológicas pós-conciliares

Na década de 1970, o presbiterato viveu uma crise de proporções talvez nunca antes vistas na história da Igreja. O fato de isso ter acontecido pouco depois da conclusão do Vaticano II nos leva a dizer com certeza post hoc, mas não podemos afirmar com igual segurança também o propter hoc. A sucessão temporal nem sempre indica uma relação de causalidade e, por conseguinte, o fato de uma “crise de identidade do presbítero”[33] generalizada ter sido experimentada depois do último Concílio não significa que a única explicação plausível seja que essa crise surgiu por causa do Vaticano II. É preciso, isto sim, reconhecer que esta se manifestou não apenas por razões culturais e sociais, mas também porque cedo nos afastamos do texto conciliar, para desenvolver outras visões do sacerdócio. A crise de identidade do presbítero – que de muitos pontos de vista perdura até hoje – fez surgir uma série de perguntas entre os teólogos e os pastoralistas, e produziu um desvio nas publicações sobre o ministério ordenado: a bibliografia sobre o sacerdócio orientou-se, entre o final da década de 1970 e a de 1980, não mais aos textos conciliares, a não ser in obliquo, mas, sim, ao tema dos ministérios do Novo Testamento e ao estudo sobre a razão de ser do ministério ordenado na Igreja[34].

De modo geral, os estudos teológicos sobre o presbiterato se polarizaram em torno de dois núcleos: o cristológico e o eclesiológico[35]. Os estudos da primeira série (a cristológica) se desenvolveram em duas linhas principais: uma que sublinha sobretudo o caráter cultual do ministério ordenado, entendendo-o principalmente como sacerdócio; e outra que desenvolve mais a categoria de representação, numa reflexão que se apoia no caráter missionário e pastoral do presbiterato. Detendo-nos na leitura que fizemos da LG e do PO, com base na tradição bimilenar da Igreja, o primeiro modelo parece ser mais adequado, ainda que seja preciso evitar alguns erros em que podemos incorrer, se este é mal aplicado. No modelo “sacral-sacerdotal”, o presbítero é compreendido com base no sacerdócio que Cristo instituiu e transmitiu em primeiro lugar aos apóstolos e depois, a partir destes, a seus sucessores. Nessa ótica está fundamentalmente o texto da Carta aos Hebreus, cujo valor, no que diz respeito à teologia do sacerdócio cristão, foi muitas vezes contestado em nossos tempos, mas – como vimos – é afirmado com clareza pela tradição magisterial e teológica. É claro que nessa ótica a identidade do sacerdote católico é compreendida em relação a Cristo[36]. O limite observado por diversos estudiosos recentes consiste no fato de alguns representantes dessa orientação teológica entenderem o munus sanctificandi como o “ser” do presbítero e os munera docendi et regendi apenas como o “fazer”, pondo em risco a unidade entre os tria munera. Essa aplicação do modelo sacral ou sacerdotal da teologia do presbiterato não coincide perfeitamente com os textos sobre o presbiterato do Vaticano II, que falam da supremacia do munus sanctificandi, mas não o separam claramente dos outros dois munera.

Assim, outros teólogos, mesmo permanecendo no polo interpretativo cristológico, preferiram desenvolver a teologia do presbiterato católico segundo o modelo da representação (modelo missionário-pastoral), que – como vimos – era utilizado já no Catecismo Tridentino[37]. Entre esses autores, desponta o nome de Joseph Ratzinger[38]. Ele assumiu a categoria da “missão de Cristo” como ponto de partida de sua teologia do sacerdócio ministerial. O ministro deve ser compreendido em primeiro lugar como enviado. A missão constitui a natureza do ministério ordenado, e essa missão é sempre entendida a partir do polo cristológico: é Cristo, o Enviado do Pai, que está presente no ministro (representação vicária) e continua, por intermédio dele, sua missão. Dessa forma é evitada também a alternativa entre aspectos ontológicos e funcionais do sacerdócio católico. É extremamente relevante que Ratzinger tenha reapresentado essa linha interpretativa também como Pontífice, na Audiência Geral da quarta-feira seguinte à abertura solene do Ano Sacerdotal. Nela, o Papa chamou a atenção explicitamente também para seus estudos sobre a matéria enquanto teólogo particular, dizendo:

“Num mundo em que a visão conjunta da vida abrange cada vez menos o sagrado, em cujo lugar a ‘funcionalidade’ se torna a única categoria decisiva, a concepção católica do sacerdócio poderia correr o risco de perder a sua consideração natural, às vezes inclusive no interior da consciência eclesial. Não raro, quer nos ambientes teológicos, quer também na prática pastoral concreta e de formação do clero, confrontam-se e por vezes opõem-se dois conceitos diferentes de sacerdócio. A este propósito, salientei há alguns anos que existe ‘por um lado uma concepção social-funcional que define a essência do sacerdócio com o conceito de serviço: o serviço à comunidade, no cumprimento de uma função. […] Por outro lado, existe a concepção sacramental-ontológica, que, naturalmente, não nega a índole de serviço do sacerdócio, mas, ao contrário, a vê ancorada no ser do ministro e considera que esse ser é determinado por um dom concedido pelo Senhor pela mediação da Igreja, cujo nome é sacramento’ (Ratzinger, J. “Ministero e vita del Sacerdote”. In: Elementi di Teologia Fondamentale. Saggio su fede e ministero. Bréscia: 2005, p. 165). Também a passagem terminológica da palavra ‘sacerdócio’ para os termos ‘serviço, ministério e encargo’ é sinal dessa concepção diferente. Além disso, à primeira, a ontológico-sacramental, está vinculado o primado da Eucaristia, no binômio ‘sacerdócio-sacrifício’, enquanto à segunda corresponde o primado da palavra e do serviço do anúncio.

Considerando bem, não se trata de duas concepções opostas, e a tensão que, contudo, existe entre elas deve ser resolvida a partir de dentro [segue citação de PO 2].

Então, interroguemo-nos: ‘O que significa propriamente, para os sacerdotes, evangelizar? Em que consiste o chamado primado do anúncio?’ Jesus fala do anúncio do Reino de Deus como da verdadeira finalidade da sua vinda ao mundo e o seu anúncio não é apenas um ‘discurso’. Inclui, ao mesmo tempo, o seu próprio agir: os sinais e os milagres que realiza indicam que o Reino vem ao mundo como uma realidade presente, que em última análise coincide com a sua própria pessoa. Neste sentido, é importante recordar que, também no primado do anúncio, palavra e sinal são indivisíveis. A pregação cristã não proclama ‘palavras’, mas a Palavra, e o anúncio coincide com a própria pessoa de Cristo, ontologicamente aberta à relação com o Pai e obediente à sua vontade. Portanto, um serviço autêntico à Palavra exige da parte do sacerdote que tenda para uma aprofundada abnegação de si mesmo, a ponto de dizer com o Apóstolo: ‘Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim’. O presbítero não pode considerar-se ‘senhor’ da palavra, mas servo. Ele não é a palavra, mas, como proclamava João Batista, cuja Natividade celebramos precisamente hoje, é ‘voz’ da Palavra: ‘Voz que brada no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’ (Mc 1,3).

Pois bem, ser ‘voz’ da Palavra não constitui para o sacerdote um mero aspecto funcional. Pelo contrário, pressupõe um substancial ‘perder-se’ em Cristo, participante no seu mistério de morte e de ressurreição com todo o próprio eu: inteligência, liberdade, vontade e oferta do próprio corpo, como sacrifício vivo (cf. Rm 12,1-2). Somente a participação no sacrifício de Cristo, na sua kénosi, torna autêntico o anúncio! E este é o caminho que deve percorrer com Cristo para chegar a dizer ao Pai, juntamente com Ele: ‘Não se faça o que Eu quero, mas o que tu queres’ (Mc 14,36). Então, o anúncio comporta sempre também o sacrifício pessoal, condição para que o anúncio seja genuíno e eficaz.

Alter Christus, o sacerdote está profundamente unido ao Verbo do Pai, que, encarnando-se, assumiu a forma de servo, se tornou servo (cf. Fl 2,5-11). O presbítero é servo de Cristo, no sentido de que a sua existência, ontologicamente configurada com Cristo, adquire uma índole essencialmente relacional: ele vive em Cristo, por Cristo e com Cristo ao serviço dos homens. Precisamente porque pertence a Cristo, o presbítero encontra-se radicalmente ao serviço dos homens: é ministro da sua salvação, nessa progressiva assunção da vontade de Cristo, na oração, no ‘estar coração a coração’ com Ele. Assim, essa é a condição imprescindível de cada anúncio, que exige a participação na oferenda sacramental da Eucaristia e a obediência dócil à Igreja”[39].

Como deduzimos do longo texto citado, o Papa retoma de seus estudos teológicos a orientação de uma teologia do presbiterato guiada pelo polo cristocêntrico e exposta com base no modelo missionário-pastoral da representação. O Santo Padre evidencia, porém, o que continua a ser imprescindível: o caráter sagrado do sacerdócio. Entre outras coisas, Bento XVI cita a expressão alter Christus, típica do modelo sacro-cultual, que portanto não deixa brechas a dúvidas sobre o ensinamento proposto pelo Pontífice. Em síntese, podemos dizer que o Papa lembrou como é inquebrável o binômio identidade-missão. O presbiterato deve ser compreendido ontologicamente quanto à identidade sacerdotal, derivada da recepção do sacramento da Ordem. Semelhante identidade tem por finalidade a missão e dela é inseparável[40]. A negação de um desses dois aspectos leva a visões redutivas do ministério ordenado. O papa Bento refrisou esse ensinamento na Audiência Geral de 1º de julho:

“Na verdade, precisamente considerando o binômio ‘identidade-missão’, cada sacerdote pode sentir melhor a necessidade daquela progressiva identificação com Cristo que lhe assegura a fidelidade e a fecundidade do testemunho evangélico. O próprio título do Ano sacerdotal – Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote – põe em evidência o fato de que o dom da graça divina precede qualquer possível resposta e realização pastoral do homem, e assim, na vida do sacerdote, anúncio missionário e culto nunca são separáveis, como nunca devem ser separadas a identidade ontológico-sacramental e a missão evangelizadora. De resto, a finalidade da missão de cada presbítero, poderíamos dizer, é ‘cultual’: para que todos os homens possam oferecer-se a Deus como hóstia viva, santa e do seu agrado (cf. Rm 12,1)”[41].

A visão equilibrada e tendencialmente completa oferecida por Bento XVI mostra, pelo contraposição, a parcialidade das leituras tantas vezes feitas na última década a partir do outro polo interpretativo, o eclesiológico. Frequentemente, na década de 1970, os candidatos ao sacerdócio, ou os presbíteros nos retiros mensais do clero, ouviram repetir que o sacerdote, mais que representante de Cristo (como ensina o Vaticano II), seria representante da comunidade, enquanto presidente, mas também expressão dela. Dessa forma, nos aproximávamos do conceito protestante do ministério, mas perdíamos de vista aspectos essenciais da tradição teológico-magisterial católica, até mesmo do ponto de vista do exercício concreto do ministério, com a consequente submissão do sacerdote à comunidade, da qual devia ser intérprete, mais que guia, e da qual devia prestar contas.

Não raro, além disso, algumas orientações teológicas propuseram-se à sistemática dessacralização e até à “desacerdotalização” do ministério presbiteral. O presbiterato foi interpretado preponderantemente, quando não exclusivamente, de modo funcional e não ontológico. Destacam-se, entre os estudiosos que expressam essa linha, e que naturalmente apresentam também notáveis diferenças entre si, os nomes de Karl Rahner[42], Edward Schillebeeckx[43], Hans Küng[44], Leonardo Boff[45] e outros. É importante, aqui, não deixar de apresentar suas propostas, mesmo que de maneira puramente esquemática. Podemos dizer apenas que, em termos gerais, uma visão principalmente funcional do presbiterato não coincide nem com os textos do Vaticano II nem com a bimilenar tradição magisterial e teológica de que este nasceu, representando sua mais recente manifestação conciliar. Citamos mais uma vez Bento XVI:

“Tendo recebido um dom de graça tão extraordinário, mediante a sua ‘consagração’, os presbíteros tornam-se testemunhas permanentes do seu encontro com Cristo. Partindo precisamente dessa consciência interior, eles podem desempenhar plenamente a sua ‘missão’, pelo anúncio da Palavra e pela administração dos Sacramentos. Depois do Concílio Vaticano II, houve aqui e ali a impressão de que na missão dos sacerdotes, neste nosso tempo, havia algo de mais urgente; alguns pensavam que era necessário, em primeiro lugar, construir uma sociedade diversa. A página evangélica, que ouvimos no início, evoca ao contrário os dois elementos essenciais do ministério sacerdotal. Naquela época e hoje, Jesus envia os Apóstolos a anunciar o Evangelho e confere-lhes o poder de expulsar os espíritos malignos. Portanto, ‘anúncio’ e ‘poder’, ou seja, ‘palavra’ e ‘sacramento’, são as duas colunas fundamentais do serviço sacerdotal, para além das suas possíveis e múltiplas configurações[46].

Referência: Clerus.org

Fonte: https://www.presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF