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domingo, 23 de janeiro de 2022

A Idade Moderna – De Erasmo a Nietzsche (Parte 3/6)

Presbíteros

A Idade Moderna
De Erasmo a Nietzsche
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
por Eric Voegelin

Tradução e abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996

§ 4. As 95 teses

Nesta análise, importa insistir em problemas específicos porquanto, além de impossível, pouco adiantaria ver uma por uma as circunstâncias da Reforma. Pode dizer-se que a espiritualidade das massas no final do séc. XV era superior à de épocas anteriores. Disso eram prova obras como a Imitação de Cristo e a Theologia Germanica do anônimo de Frankfurt publicada e prefaciada pelo próprio Lutero. Mas embora as Ordens mendicantes, em particular, tivessem elevado o nível espiritual das populações urbanas, a vaga de misticismo do séc. XIV-XV já não fora canalizada pela Igreja para formas institucionais: pelo contrário, dera origem aos movimentos sectários do “povo de Deus”. E não era preciso ser um destes “espírito livres” para desaprovar muitas das práticas da Igreja a exigir reforma imediata; bastava ter formação mística.

Entre os fatores que contribuíram para a explosão de 1517, as indulgências foram a centelha que a acendeu. A prática das indulgências era tradicional e significava a remissão dos castigos temporais impostos pela Igreja como sinal exterior da verdadeira contrição. Tais remissões de castigos, por vezes muito severos, eram praticadas desde o séc. VII. A comutação do castigo em penas pecuniárias era conforme às regras de remissão do Direito Romano. Ademais, costumava-se justificar o costume mediante a doutrina desenvolvida por Alexandre de Halles no séc. XIII, o Thesaurus Meritorum, ou seja, a acumulação num tesouro da Igreja das expiações supérfluas dos Santos. Numa palavra, a prática das indulgências era uma legítima concessão da Igreja ao ambiente cultural da sociedade, em ordem ao progresso da Cristianização. O abuso inicia-se com a incompreensão popular das indulgências como remissão da culpa e não exclusivamente como remissão do castigo temporal, em particular com a compreensão das indulgências plenárias como remissão da culpa futura. Em termos populares, as indulgências eram um bilhete para o céu sendo certo que, para recolher benefícios, a Igreja não contrariava convenientemente esta explicação.

No início do séc. XVI, o sistema envolvia vastas somas de dinheiro e de interesses financeiros internacionais, agravados pelas circunstâncias de 1517. Para Roma, a venda tornara-se uma fonte de rendimentos regulares e extraordinários. Em 1510, Júlio II lançara a Indulgência do Jubileu, sobretudo para custear a nova basílica de São Pedro. A venda fora iniciada em Magdeburgo em 1515. O responsável eclesiástico local era Alberto de Branderburgo, arcebispo de Magdeburgo, Maiença e Halberstadt. 50% do produto da venda eram para os cofres dos Fuegger que tinham adiantado a Alberto a soma necessária para a compra quer dos bispados quer da dispensa pontifícia que lhe permitia a acumulação de cargos. Aliás, os agentes dos Függer acompanhavam in loco o comissário das vendas, o dominicano Tetzel. E é nesta rede de alta finança que rebenta a afixação das 95 teses Acerca do Poder e Eficácia das Indulgências. As teses são um debate académico em latim, semelhante a tantas outras disputationes universitárias da época. Mas insistiam que as indulgências não compram o castigo divino; não abarcam os mortos do Purgatório; e não são justificadas pelo thesaurus meritorum pois só o Espírito divino pode perdoar.

A explosão espalha-se a ritmo veloz. Em duas semanas surge a tradução alemã das teses na Imprensa da Universidade de Wittenberg Um mês depois Lutero é, para surpresa sua, uma figura europeia. A venda de indulgências decai. O arcebispo de Magdeburgo queixa-se a Roma. A Cúria ordena ao importuno monge agostinho que se cale. Tetzel, o comissário das indulgências, publica contra-teses. Eck ataca Lutero; este dá a réplica. O Inquisidor Mazzolini escreve Acerca do Poder Pontifício. No capítulo de 1518 em Heidelberg, os Agostinhos discutem a questão e o monge de Wittenbegr responde-lhes por escrito: é instado a ir a Roma. Desce à liça o Eleitor da Saxónia que considera haver uma afronta a um professor da sua Universidade, além de que a Casa de Brandenburgo ocupara bispados tradicionalmente atribuídos a membros da Casa da Saxónia e que ele nem sequer autorizara a venda de indulgências nos seus domínios. O Papa Leão X revoga a convocação de Lutero a Roma pois não convinha ter o Eleitor da Saxónia por inimigo na eleição, já muito próxima, do Imperador da Alemanha; determina que o monge compareça perante o Cardeal Cajetanus na Dieta de Augsburgo. A entrevista com o legado do papa corre mal e Lutero escreve que o tentaram silenciar. Pouco depois, o camerlengo papal Von Miltitz obtém de Lutero a promessa de silêncio desde que o não atacassem. Mas Eck volta de novo à carga, agora com a questão da Igreja Grega, provocando a já referida disputa de Leipzig em 1519. A guerra de panfletos e sermões continua com escritos de ambas as partes. Surge a bula papal Exurge Domine queimada por Lutero em Dezembro de 1520. Em três anos, o episódio desenvolvera-se numa revolução nacional-cristã da Alemanha contra Roma tornando quase impossível qualquer compromisso. O ritmo vertiginoso dos acontecimentos impediu a ponderação necessária para resolver questões doutrinárias, feriu todos os sentimentos possíveis e imagináveis e preparou o cisma.

BIBLIOGRAFIA:

Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6

Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923

Fonte: https://www.presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF