Por Ana Lydia Sawaya - publicado em 22/11/23
A Bíblia é
a Palavra de Deus. É Ele mesmo falando conosco, nos mostrando ou ensinando
algo. Essa experiência nos mostra que a Bíblia é um livro especial, único.
Os
monges têm uma tradição que convida a ver a Escritura como um organismo
vivente, como uma pessoa que fala conosco. É semelhante à experiência que
fazemos quando encontramos uma pessoa e perguntamos algo a ela esperando que
ela nos responda. Estamos sempre carregando alguma questão no coração que nos é
particularmente significativa naquele momento da vida, mesmo sem ter clareza
dela. E acontece frequentemente que após lermos um texto bíblico, somos
iluminados exatamente sobre aquela questão.
Por
que acontece isso? Porque a Bíblia é a Palavra de Deus. É Ele mesmo falando
conosco, nos mostrando ou ensinando algo. Essa experiência nos mostra que a
Bíblia é um livro especial, único. É um livro “vivo”, que se comunica conosco
como uma pessoa viva. Por isso, os antigos padres da Igreja deixaram muitos
escritos onde recomendam que devemos ler e meditar as escrituras procurando
estabelecer com ela um relacionamento pessoal. Há um texto do Papa São Gregório
Magno (±540 – †604 d.C.) onde ele diz que a escritura “cresce” diante dos olhos
do leitor à medida que este cresce espiritual e humanamente. Assim, quanto mais
nos ligamos à escritura, mais ela nos revela os seus muitos significados. Os
antigos hebreus afirmavam que são 70 os níveis de profundidade que se pode
atingir ao ler a Bíblia; o que significa também uma profundidade
incomensurável.
Para
o mundo bíblico, conhecer profundamente uma pessoa acontece apenas quando nos
“unimos” a ela tendo o mesmo modo de pensar, as mesmas preocupações, a mesma
forma de viver – é assim que nós compreendemos o outro profundamente. Platão
dizia que só conhecemos quem nos é semelhante. Por isso, para se conhecer a
Cristo é preciso familiarizar-se com ele, convivendo com ele não só no pão e no
vinho, mas como toda a tradição antiga brandia, saboreando o prato delicioso da
sua palavra viva: Quando encontrei tuas palavras, alimentei-me, elas se
tornaram para mim uma delícia e a alegria do coração, o modo como invocar teu
nome sobre mim, Senhor Deus dos exércitos, dizia o profeta Jeremias (Jer. 15,
16). Como seria diferente, mais rica, menos turbulenta e menos difícil a nossa
vida, se alguém tivesse nos contado que a Bíblia contém toda essa delícia!
O
Concílio Vaticano II, de fato, retomou toda a tradição antiga da Igreja,
afirmando que cada cristão precisa ler e meditar a Bíblia regularmente; e o
melhor seria diariamente. A constituição conciliar Dei Verbum (n. 25) propõe
vários meios para a leitura das escrituras. Ao lado de uma leitura individual,
é sugerida uma leitura em grupo, sublinhando a necessidade de que seja
acompanhada por uma oração que é a nossa resposta a Deus que nos fala através
do texto, sob a inspiração do Espírito.
A
experiência de que Deus nos fala enquanto lemos e meditamos o texto sagrado –
que nos mostra seu caráter de texto inspirado – já era bem conhecida pela
tradição judaica. Um texto rabínico antiquíssimo, que se tornou referência
fundamental para a tradição monástica durante séculos, diz que a Torá se revela
pouco a pouco, como o véu de uma mulher que se desvela, mas logo se vela. A
Torá, porém, diz esse antigo texto, age assim apenas para aqueles que já a
conheceram de alguma forma e estão desejosos de segui-la (quer dizer que para
descobrir o significado da escritura é preciso de algum modo já tê-la
experimentado, estar unido a ela mentalmente, e estar disposto a obedecê-la – o
que é muito diferente do olhar cheio de dúvidas, e da postura “vamos ver o que
diz”).
A
tradição rabínica comparava a Torá a uma belíssima jovem, escondida no
recôndito do seu palácio, que possui um amor secreto, desconhecido por todos.
Por amor a ela, esse apaixonado insiste em voltar sempre à janela… até que ela
abre a porta do quarto apenas por um instante e revela-lhe seu rosto, mas logo
o esconde de novo. Quem estiver, por acaso, na companhia do amado não consegue
ver nada nem perceber o rosto dela. Só ele que a ama consegue vê-lo, sendo
arrastado interiormente na direção dela com o coração, com a alma e com todo o
seu ser. O amante compreende então que foi por um gesto de amor que ela se
revelou por um momento, inflamada de amor por ele. É assim que a Torá se revela
e se esconde inebriada de amor pelo amado, enquanto excita o amor dentro dele.
O
texto rabínico explica então, que a palavra da Torá se revela apenas aos seus
amantes, e que a Torá sabe que é a sabedoria do coração que impele alguém a
frequentar a sua casa. “Vem e vê” esta é a via, o caminho da Torá. Esse texto
antigo, explica ainda que no início, quando a Torá quer revelar-se a alguém,
oferece-lhe somente um sinal instantâneo, momentâneo, e se ele não o
compreender, ela insiste com um tom de voz sutil, mandando-lhe um mensageiro
para lhe dizer de ir até ela de modo que ela possa lhe falar novamente. Como
está escrito, “quem é simples venha a mim” (quem é, ao contrário, “surdo” a
este primeiro sinal, acaba perdendo também o mistério escondido).
Quando
o amado volta a ela, ela começa a endereçar-lhe palavras mais claras, atrás,
ainda, do véu, educando-o a compreender. Até que, muito lentamente, seja
concebida nele e nasça a intuição espiritual contida no texto. Em seguida,
através de um véu de luz, a Torá lhe transmitirá as palavras alegóricas (quer
dizer, palavras que de acordo com a etimologia de ‘alegoria’ pertencem a um
outro mundo, palavras que nos levam ao mundo dos mistérios de Deus). E só
então, quando o amado se tornar familiar a ela, ela lhe falará face a face
sobre os mistérios escondidos, ensinando-lhe as estradas a percorrerem, que ela
já carregava no coração para lhe dizer desde o início.
Quem
vive essa experiência é chamado pela tradição rabínica de perfeito, mestre ou
esposo da Torá, no sentido mais íntimo e estrito; é o patrão da casa para o
qual ela abre todos os segredos, não escondendo mais nada. A ele a Torá diz:
“Veja agora, quantos mistérios continha esse simples sinal que te fiz ver no
primeiro dia, e qual era o seu verdadeiro significado”? E então, ele compreende
que não se pode tirar nem acrescentar nada àquelas palavras, e compreende, pela
primeira vez, o significado das palavras da Torá, como se elas tivessem vindo
para estar “ali” diante dele, para ele.
Tendo
no coração tudo isso que dissemos até agora, e como monges e monjas portadores
da riqueza da tradição da lectio divina (leitura orante da Bíblia), pedimos ao
biblista Luiz da Rosa para fazer uma Introdução Geral à Bíblia dentro dos
Encontros Culturais Camaldolenses.
Luiz é criador e responsável pelo site www.abiblia.org e diretor de comunicação do Instituto dos Irmãos Maristas. Estudou teologia em Jerusalém e obteve o mestrado em Exegese Bíblia pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. O Encontro, cujos vídeos estão agora sendo disponibilizados on-line, ocorreu no dia 26 de agosto de 2023 e contou com a presença de 23 pessoas.
Um pouco da
história camaldolense
Os
camaldolenses pertencem à grande família dos monges beneditinos. Nascem em 1012
a partir da proposta de reforma monástica de São Romualdo que, profundamente
inserido nas dinâmicas da igreja do seu tempo, pretendia renovar a dimensão
espiritual na igreja, promovendo a vida solitária em eremitérios e a
simplificação da vida comunitária nos cenóbios. Por isso, seus discípulos
seguem um estilo de vida simples orientado pela liberdade interior, o amor
fraterno e a primazia da procura de Deus, ao mesmo tempo em que formam uma
ordem contemplativa aberta às exigências da igreja e da sociedade, com as
riquezas e as contradições das suas culturas.
O
nome da Congregação surge do eremitério e mosteiro de Camaldoli localizado no
alto das montanhas do centro da Itália que é dividido em duas unidades ligadas
entre si: um mosteiro de vida cenobítica e um eremitério. Sua forma de vida
floresceu ao longo dos séculos a partir de uma realidade tripartite chamada
triplex bonum (três oportunidades): a vida cenobítica, a vida eremítica e o
apostolado. É característica da vida camaldolense o amor pela cultura, o
diálogo interreligioso e a hospitalidade.
No
Brasil existem dois mosteiros camaldolenses: o Mosteiro da Transfiguração
(1988), comunidade masculina, e o Mosteiro da Encarnação (1994), comunidade
feminina.
Estão localizados na zona rural do Município de Mogi das Cruzes e, embora sejam dois mosteiros independentes, compartilham do mesmo espírito camaldolense, codividindo frequentemente a liturgia, a lectio divina e as atividades de apostolado. É particularmente cara, aos monges e monjas camaldolenses, a prática da leitura orante da Bíblia (lectio divina) e sua condivisão semanal com hóspedes e visitantes.
Fonte: https://pt.aleteia.org/
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