Por Veritatis Splendor - publicado em 14/03/17
Leia isso antes de discutir com aquelas pessoas que acham que a Igreja é culpada por todos os problemas da humanidade...
A Idade Média é por vezes considerada qual «noite de mil anos» que se abateu sobre a civilização, constituindo, pela barbárie e ignorância de seus homens, verdadeira mancha no decorrer da História.
É o que, conforme alguns autores, a própria designação «Idade Média» deveria incutir. Esta foi forjada pelos humanistas do séc. XVI, que com tal denominação queriam caracterizar o período da língua latina, que vai da idade clássica antiga ao Renascimento da mesma, no séc. XVI. Entre duas épocas áureas estaria [então] uma fase intermediária ou «média», fase apagada ou decadente na História do idioma latino.
Em 1688, o historiador alemão Cristóvão Keller (Cellarius) na sua «Historia Medii Aevi» (=”História da Idade Média”) adotou pela primeira vez o nome no setor da História da Civilização, o que dava a entender que o período decorrente entre a Idade Antiga e a Renascença foi igualmente uma época apagada e decadente.
Nem todos os autores, porém, concordaram com tal modo de ver…
O historicismo do século passado tinha a Idade Média na conta de período cheio de realizações construtivas.
Vejamos o que há de objetivo nestas diversas apreciações.
1) O período Antigo ou Greco-Romano da civilização termina com a ruína do Império Romano, o qual cedeu aos golpes das invasões bárbaras (Roma caiu em 476). A Europa e a África Setentrional foram ocupadas pelos germanos invasores que, após haver derrubado as instituições antigas, eram incapazes de construir a vida social, pois careciam de valores culturais correspondentes. Ora, tendo desaparecido a figura do Imperador no Ocidente, a única autoridade capaz de tomar as rédeas da situação europeia dos séculos V/VII era a autoridade eclesiástica: o Papa, então, os bispos e os monges se puseram a preservar da perda total os valores da civilização greco-romana, utilizando-os na confecção de nova síntese cultural.
Não há dúvida de que a Religião Católica foi altamente benemérita neste trabalho de reconstrução; criaram-se valores e instituições de vulto no início e no decurso da Idade Média. Detendo-nos apenas na história da educação e da cultura, devemos mencionar que foram os clérigos e monges que asseguraram o ensino primário nas escolas catedrais, monacais e palatinas (isto é, erguidas respectivamente junto a uma igreja catedral, a um mosteiro, a um palácio de rei).
Eis alguns documentos a propósito:
Teodulfo, bispo de Orléans no séc. VIII, promulgou a seguinte lei:
– “Os sacerdotes mantenham escolas nas aldeias, nos campos. Se qualquer dos fiéis lhes quiser confiar os seus filhos para aprender as letras, não os deixem de receber e instruir, mas ensinem-lhes com perfeita caridade. Nem por isto exijam salário ou recebam recompensa alguma, a não ser por exceção, quando os pais voluntariamente a quiserem oferecer por afeto ou reconhecimento” (Sirmond, Concilia Galliae 2,215).
Este decreto passou verbalmente para as legislações eclesiásticas da Inglaterra. Frequentemente os Concílios regionais dos séc. VIII/IX repetiram semelhantes normas. O III concilio ecumênico do Latrão em 1179, por sua vez, lavrou o seguinte cânon:
– “A Igreja de Deus, qual mãe piedosa, tem o dever de velar pelos pobres aos quais, pela indigência dos pais, faltam os meios suficientes para poderem facilmente estudar e progredir nas letras e nas ciências. Ordenamos, portanto, que em todas as igrejas catedrais se proveja um benefício (rendimento) conveniente a um mestre, encarregado de ensinar gratuitamente aos clérigos dessa igreja e a todos os alunos pobres” (cân. 18, Mansi 22,227-228).
Também o ensino superior na Idade Média se ministrava por iniciativa, ou ao menos sob a tutela, de bispos e príncipes cristãos. As primeiras Universidades foram fundadas por volta de 1100. Constituem uma das criações mais originais e valiosas da Idade Média: no período greco-romano cada filósofo e cada mestre de ciências tinham sua escola — o que implicava justamente no contrário de uma Universidade. Esta, na Idade Média, reunia mestres e discípulos de várias nações, os quais constituíam poderosos focos de erudição.
Até 1440, foram erigidas na Europa 55 Universidades e 12 Institutos de Ensino Superior, onde se ministravam cursos de Direito, Medicina, Línguas, Artes, Ciências, Filosofia e Teologia. Em 1200, Bolonha contava dez mil estudantes (italianos, lombardos, francos, normandos, provençais, espanhóis, catalães, ingleses, germanos etc.). O Papa Clemente V, no Concílio de Viena, em 1311, mandou que se instaurassem nas escolas superiores cursos de línguas orientais (hebreu, caldeu, árabe, armênio etc.), o que em breve foi executado em Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca e Roma.
Poder-se-iam multiplicar dados deste gênero. Estes, porém, já dão a ver que a Idade Média não foi alheia à cultura, justamente em virtude da influência da Igreja que nela se exerceu.
2. É preciso, porém, reconhecer uma particularidade da ciência medieval: os homens da época careciam do aparato técnico necessário a experiências e investigações precisas; o seu horizonte geográfico e astronômico também era bastante restrito. Sendo assim, a ciência medieval era levada não raro a julgar os fenômenos segundo a sua aparência e pouco habilitada a exercer o senso crítico.
Outra consequência da penúria de meios de observação é que os cientistas medievais procediam por dedução mais do que por indução; não podendo formular as leis da natureza na base de experiências exatas físico-químicas, os medievais as formulavam recorrendo a princípios especulativos, abstratos, dos quais julgavam poder deduzir a explicação dos fenômenos da natureza. Este trabalho, porém, era em alta escala sujeito a erro: os medievais não raro julgavam (e nisto se enganavam) que a Bíblia Sagrada podia ser utilizada para elucidar não somente questões teológicas, mas também temas de ciências profanas, de sorte que, na falta de outros critérios, apelavam para a Escritura a fim de resolver problemas de ordem biológica, astronômica etc. (haja vista o que ainda no séc. XVII se deu no caso «Galileu», do qual trata o artigo “O caso de Galileu”).
Deve-se sublinhar que tal atitude se devia em grande parte à falta de instrumentos precisos para a investigação da natureza (falta bem compreensível na Idade Média, já que o homem só aos poucos progride na conquista do mundo que o cerca). Não seria justo dizer que os cristãos medievais tinham medo da ciência empírica e que as autoridades eclesiásticas travavam os estudos a fim de evitar conflitos de Ciência e Fé; entre os pioneiros dos avanços científicos medievais contam-se eclesiásticos, monges e cristãos de valor, como Santo Alberto Magno (op), Rogério Bacon (ofm), João Peckam (ofm; arcebispo de Cantuária), Dietrich de Freiberg (op), Jordão Nemorário, Guilherme de Moerbeke (op)…
Muito significativo é um dos últimos depoimentos sobre o assunto, proferido em 1957 por um grupo de estudiosos que, sem intenção confessional alguma, escreveram a História da Ciência Antiga e Medieval:
– “Parece-nos impossível aceitar a dupla acusação de estagnação e esterilidade levantada contra a Idade Média latina. Por certo, a herança (cultural) antiga não foi totalmente conhecida nem sempre judiciosamente explorada; (…) mas não é menos verdade que de um século para outro — mesmo de uma geração a outra dentro do mesmo grupo — há evolução e geralmente progresso. A Igreja (…) na Idade Média salvou e estimulou muito mais do que freou ou desviou. Por isso, embora só queira apelar para a Antiguidade, a Renascença é realmente a filha ingrata da Idade Média” (“La Science Antique et Médiévale”, sob a direção de René Taton, Presses Universitaires de France, Paris, 1957, pp.581-582).
Em particular, com referência ao fato de que só a partir de fins do séc. XIII se começaram a fazer dissecações e observações em cadáveres humanos, dizem os mencionados estudiosos:
– “Como quer que seja, não se poderia aceitar a opinião um tanto simplista segundo a qual a Igreja teria sido ‘a grande responsável da estagnação dos estudos de anatomia’” (ibidem, p.580).
Estes testemunhos tão insuspeitos levam a concluir que as crenças cristãs dos homens medievais não prejudicaram a cultura humana; antes, a favoreceram – apesar das consequências errôneas que em matéria de ciências os medievais julgavam por vezes dever deduzir da sua fé.
Dê o observador muito maior atenção a outra faceta da cultura medieval: a capacidade humana de especulação filosófica parece ter atingido então o auge de sua clareza e agudez, criando as famosas Sumas de Lógica, Ontologia e Metafísica da Idade Média. Estas obras, continuando as dos grandes pensadores gregos (principalmente de Aristóteles), até hoje são monumentos perenes, não ultrapassados, da cultura humana.
É, sem duvida, este aspecto positivo que merece preponderância numa apreciação objetiva da Idade Média.
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