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terça-feira, 6 de julho de 2021

A doutrina católica sobre o sacerdócio ministerial, antes, durante e depois do Concílio Vaticano II (Parte 1/5)

Crédito: Presbíteros

Padre Mauro Gagliardi – Pontifício Ateneu Regina Apostolorum, Roma

 Introdução

Este texto é um breve ensaio sobre a doutrina católica relativa ao sacerdócio ministerial, em particular o do grau do presbiterato. Dados os limites desta apresentação, que resvala por temas muito complexos, conduziremos o assunto mediante observações sucintas e esquemas, evitando um elevado número de referências e remissões, que seriam necessárias, ou pelo menos úteis, num tratado que se propusesse como tendencialmente completo.

  1. O sacerdócio ordenado no Magistério da Igreja até o Vaticano II

Pelos escritos dos santos Clemente Romano e Inácio de Antioquia, deduzimos a existência e a difusão, na Igreja subapostólica, de três graus de ministério ordenado: o episcopado, o presbiterato e o diaconato[1]. Aqui, estamos interessados principalmente no presbiterato, a que chamaremos também sacerdócio, citando alguns dos documentos magisteriais mais importantes, mas deixando de lado as referências aos Padres e Doutores da Igreja.

Contra os valdenses, que negavam a necessidade de um sacerdote ministro para a válida celebração da Eucaristia, o Concílio de Latrão IV (1215) pronunciou-se com clareza: “Este sacramento não pode absolutamente ser realizado por ninguém além do sacerdote que tiver sido regularmente ordenado” (DS[2] 802).

Mais ampla é a doutrina do Concílio de Florença, de 1439. Na bula de união com os armênios Exsultate Deo, é exposta uma doutrina sintética sobre a fórmula sacramental, que ensina: “Pelo sacramento da Ordem, a Igreja é governada e multiplicada espiritualmente” (DS 1311). Ao lado do Batismo e da Crisma, a Ordem é um dos sacramentos “que imprimem na alma um caráter indelével, ou seja, um sinal espiritual que distingue um indivíduo de todo os outros” (DS 1313). O sacerdote é ministro de diversos sacramentos: Batismo (DS 1315), Eucaristia (DS 1321), Penitência (DS 1323), Extrema-unção (DS 1325), e em certos casos pode administrar também a Crisma (DS 1318). Ao celebrar a Eucaristia, “o sacerdote consagra falando na pessoa de Cristo [in persona Christi]” (DS 1321). O Concílio de Florença explicita também a matéria do sacramento da ordenação, que consiste na porrectio instrumentorum – ou seja, na entrega dos instrumentos próprios a cada grau da Ordem -; e a forma, que consiste na fórmula de ordenação fixada pela Igreja (DS 1326). A fórmula é a seguinte: “Recebe o poder de oferecer o sacrifício na Igreja, pelos vivos e pelos mortos, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (ibid.), do que deduzimos que a essência do sacerdócio ordenado consiste na oferta do sacrifício eucarístico na Igreja e em nome da Trindade[3].

O terceiro concílio a tratar sistematicamente do sexto sacramento foi o Concílio de Trento (1545-1563), cuja doutrina sobre o sacerdócio é mais bem compreendida quando conhecemos a doutrina luterana sobre a Eucaristia e a Ordem Sacra, que aqui não nos é possível resumir. O cân. 9 do Decretum de sacramentis, de 1547, excomunga quem afirma que, com o sacramento da Ordem, não se imprime o caráter na alma, “ou seja, um sinal espiritual e indelével” (DS 1609). O cân. 10 excomunga quem afirma que “todos os cristãos têm o poder de anunciar a Palavra [de Deus] e de ministrar todos os sacramentos” (DS 1610). O cân. 11 afirma, condenando o contrário, que os ministros celebram validamente os sacramentos quando têm ao menos a intenção de fazer o que a Igreja faz quando os celebra (DS 1611). O cân. 12 ensina, ameaçando de excomunhão quem afirmar o contrário, que o ministro celebra validamente os sacramentos mesmo quando se encontra pessoalmente em pecado mortal (DS 1612).

O decreto Doctrina de sacramento paenitentiae, de 1551, afirma que só os bispos e os sacerdotes são ministros do sacramento da Penitência, pois só a eles, e não a todos os fiéis, foi conferido o poder das chaves, e diz ainda que eles exercem validamente a função de perdoar os pecados por serem ministros de Cristo, mesmo quando estão eles mesmos em pecado mortal (DS 1684; 1710). No sacramento da Penitência, o sacerdote, ao declarar os pecados perdoados, emite uma sentença equivalente a um ato judicial, ou seja, enquanto juiz (DS 1685; 1709). O decreto Doctrina de sacramento extremae unctionis ensina que os ministros do sacramento da Extrema-unção são os presbíteros da Igreja, expressão com a qual devemos entender, segundo a passagem de Tg 5,14, tanto os bispos quanto os sacerdotes por estes ordenados (DS 1697; 1719)[4].

Para o nosso tema é também muito importante o decreto Doctrina et canones de Ss. Missae sacrificio, de 1562. Nele são claramente relacionados o sacerdócio ordenado com o sacerdócio único de Jesus Cristo. Diz o decreto que o Senhor Jesus instituiu a Eucaristia, “uma vez que seu sacerdócio não devia extinguir-se com a morte”, e que com esse fim Ele – “sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec” – constituiu os apóstolos “sacerdotes da nova aliança” e “ordenou a eles e a seus sucessores no sacerdócio” que oferecessem o “sacrifício visível” e incruento, a Eucaristia, que simboliza o sacrifício cruento da Cruz, pelo qual fomos salvos. O Concílio esclarece que o momento da instituição do sacerdócio dos apóstolos coincide com a articulação das palavras “fazei isto em minha memória” (DS 1740; 1752). Os sacerdotes são considerados, portanto, imoladores de Cristo no sacramento eucarístico: Cristo “instituiu a nova Páscoa, ou seja, a si mesmo, que devia ser imolado pela Igreja por seus sacerdotes sob sinais visíveis” (DS 1741).

Na Sessão XXIII, de 15 de julho de 1563, o Concílio de Trento tratou diretamente da Ordem Sacra, produzindo o Decreto Doctrina et canones de sacramento Ordinis. O texto começa declarando o vínculo inquebrável entre sacerdócio e sacrifício, mesmo fora da economia salvífica cristã (DS 1764). Tendo o Senhor Jesus estabelecido na Eucaristia um novo sacrifício, instituiu também um novo sacerdócio (DS 1764; 1771). O Concílio distingue diversos graus, entre Ordens maiores e menores (DS 1765; 1772). A Ordem Sacra é certamente um dos sete sacramentos da Igreja instituídos por Cristo, e o Concílio afirma que, com esse sacramento, é conferida uma graça especial (DS 1766; 1773-1774). Uma vez que o sacramento imprime o caráter, quando o sacerdócio é conferido já não é possível que os ordenados voltem a ser leigos (DS 1767; 1774). Da sacramentalidade da Ordem deriva o fato de que nem todos os cristãos são sacerdotes do Novo Testamento, no sentido de que nem todos gozam do mesmo poder espiritual (DS 1767). Ao mesmo tempo, há na Igreja uma hierarquia composta por bispos, sacerdotes e ministros (DS 1776), em que os bispos são superiores aos sacerdotes (DS 1777).

Acolhendo o ensinamento tridentino, o Catechismus ad Parochos, de 1566, sublinha o aspecto sacro-representativo e cultual-sacerdotal do sacerdócio católico. Os sacerdotes (bispos e presbíteros) “são de certa forma intérpretes e embaixadores de Deus, em cujo nome comunicam aos homens a lei divina e os preceitos da vida. Eles representam Sua pessoa na terra. É claro que não é possível conceber nenhuma função mais insigne que a deles, e que, com razão, são chamados não apenas de anjos, mas até de deuses; de fato, eles representam entre nós a eficácia e a ação do Deus imortal” (§ 273)[5]. Nessa primeira citação, notamos o caráter sacro da “representação” de Cristo, que pertence justamente ao sacerdote ordenado. O aspecto cultual-sacerdotal se encontra expresso no próprio § 273: “Embora os sacerdotes tenham sido sempre dotados de uma dignidade suprema, os do Novo Testamento devem estar, por honra, à frente de todos os outros. O poder que lhes foi conferido de consagrar e de oferecer o Corpo e o Sangue do Senhor, como também de perdoar os pecados, ultrapassa, podemos dizer, o âmbito da inteligência humana. Não há nada semelhante neste mundo”.

Continuando nossa exposição em ordem cronológica, a partir dos pontos mais importantes, passamos diretamente à Carta Apostólica Apostolicae Curae, promulgada em 13 de setembro de 1896 pelo papa Leão XIII, que fala das ordenações anglicanas, considerando-as inválidas[6]. O motivo pelo qual o Papa não considera válidas essas ordenações consiste no defeito de forma. Se a matéria desse sacramento é considerada a imposição das mãos, a forma consiste na fórmula de ordenação, que para os anglicanos é: “Recebe o Espírito Santo”. Para o papa Leão XIII, tais palavras “não significam de modo algum precisamente a Ordem do sacerdócio ou a sua graça e poder, que em particular é o poder ‘de consagrar e de oferecer o verdadeiro Corpo e Sangue do Senhor’ [citação do Concílio de Trento: DS 1771]” no sacrifício da santa Missa (DS 3316). O Papa tem ciência de que, num segundo momento, os anglicanos corrigiram a fórmula, acrescentando: “para a função e a tarefa de presbítero [ou de bispo]”; sinal de que eles mesmos se deram conta da insuficiência da primeira formulação. Mas esse acréscimo, diz Leão XIII, “mesmo que pudesse trazer à forma seu significado legítimo, foi introduzida tarde demais”, ou seja, quando já se havia “extinguido a hierarquia” entre os anglicanos e, por conseguinte, quando “o poder de ordenação já era nulo” (ibid.). A fórmula do Ordinale anglicano foi composta de modo inadequado, pois os reformadores a redigiram de modo tal que nela “não apenas não há nenhuma menção clara do sacrifício, da consagração e do poder do sacerdote de consagrar e de oferecer o sacrifício, mas, também, […] foram deliberadamente eliminados e destruídos todos os vestígios dessas coisas” (DS 3317a)[7]. Eliminando a referência ao sacrifício e ao poder sacerdotal corretamente entendido, as fórmulas “recebe o Espírito Santo” e “para a função e a tarefa de presbítero [ou de bispo]” já não têm consistência (DS 3317b). O vício de forma comporta o vício de intenção, igualmente necessária para a validade do sacramento (DS 3318)[8].

É também de grande importância a Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, publicada em 30 de novembro de 1947 pelo Sumo Pontífice Pio XII. A Constituição trata do sacramento da Ordem, mais precisamente do diaconato, do presbiterato e do episcopado, que devem, assim, ser considerados graus desse sacramento. Não são incluídas, porém, as ordens do subdiaconato, do acolitado, do leitorado, do exorcistado e do ostiarato. Pio XII se detém de modo particular nos ritos essenciais com que são ordenados na Igreja os diáconos, os presbíteros e os bispos. O texto começa afirmando que o sacramento da Ordem, “mediante o qual é transmitido o poder espiritual e é conferida a graça para assumir da maneira devida os ofícios eclesiásticos, é um só e mesmo para toda a Igreja” (DS 3857). O papa Pacelli, além disso, identifica a matéria e a forma desse sacramento (em seus três graus) respectivamente com a imposição das mãos (portanto, não na porrectio instrumentorum) e com as palavras que a determinam (DS 3858-3859). Diz que, de resto, “a Igreja Romana sempre considerou válidas as ordenações conferidas mediante o rito grego, sem a entrega dos instrumentos” (DS 3858). Esta, estritamente falando, não é necessária então para a validade da ordenação. É muito significativa a passagem em que é explicado que a forma do sacramento são as palavras “que determinam a aplicação dessa matéria [a imposição das mãos], com as quais, de modo unívoco, são simbolizados os efeitos sacramentais, ou seja, o poder da ordem e a graça do Espírito Santo” (DS 3859), palavras claramente distintas, de acordo com os diversos graus do sacramento. A forma e a matéria são em seguida explicadas grau por grau, no nº 5 da Constituição (DS 3860)[9].

Tendo, aqui, de deixar de tratar de outros ensinamentos[10], é necessário, neste Ano Sacerdotal, instituído no 150º aniversário da morte de São João Maria Vianney, mencionar a Encíclica do bem-aventurado João XXIII, Sacerdotii Nostri primordia, publicada em 1º de agosto de 1959, por ocasião do centenário da morte do Cura d’Ars. Na encíclica, o Papa trata sobretudo da vida espiritual e pastoral dos sacerdotes, mais que da doutrina sobre o sacerdócio, preparando assim o caráter eminentemente pastoral do Concílio Vaticano II[11].

 Retomando de modo sistemático os elementos que se sobressaem nesta brevíssima panorâmica, podemos dizer que Jesus Cristo é o único Sacerdote do Novo Testamento, cujo sacerdócio consiste na oferta de si ao Pai por nós. Cristo, todavia, instituiu o sacerdócio ministerial na Igreja, o qual é possuído apenas pelos batizados que receberam o sacramento da Ordem Sacra no grau do presbiterato ou do episcopado. O presbiterato é um dos dois graus do sacramento da Ordem, que confere o sacerdócio; o outro é o episcopado. Os presbíteros são, portanto, sacerdotes ministros, pois participam do sacerdócio sacrifical de Jesus Cristo, embora em grau inferior aos bispos. Podemos ver isso, por exemplo, pelo fato de que o bispo e o presbítero são ambos ministros de um bom número de sacramentos, dos quais não são ministros nem os diáconos (ordenados para o serviço, não para o sacerdócio) nem, muito menos, os leigos, que possuem, pelo Batismo, apenas o sacerdócio comum dos fiéis.

O presbiterato é recebido exclusivamente mediante a válida celebração do sacramento da Ordem. O Magistério ensina com clareza que nem todos são sacerdotes na Igreja, no sentido do sacerdócio ministerial ou hierárquico. São sacerdotes ministros apenas os batizados que receberam o sacramento da Ordem e só esses podem desenvolver determinadas funções na Igreja. De fato, o sacramento da Ordem transmite, para usar a terminologia de Pio XII, “poder” e “graça” próprios, que não são recebidos com o Batismo. Pertencem ao âmbito dos poderes do sacerdote ministro: o governo da Igreja, o poder de celebrar os sacramentos e o ensinamento e o anúncio reconhecidos da Palavra de Deus. Pertencem ao âmbito da graça, em primeiro lugar, o caráter sacramental, impresso indelevelmente, ou seja, para sempre, na alma do sacerdote; em segundo lugar, a chamada “graça de estado”, necessária ao sacerdote para desenvolver seu ministério e santificar-se nele.

A Igreja ensina que o sacerdócio deve ser compreendido essencialmente em relação ao sacrifício, e que o sacerdócio do Novo Testamento foi instituído pelo Senhor em relação a seu sacrifício na Cruz, que se renova de modo incruento na celebração da Eucaristia. A essência do sacerdócio ordenado consiste principalmente em oferecer ao Pai a Vítima divina Jesus Cristo no altar da Eucaristia, para a santificação dos fiéis e a salvação do mundo. Podemos dizer que o centro da função sacerdotal é o mesmo para o Sumo Sacerdote Jesus Cristo e para os sacerdotes que participam do sacerdócio d’Ele, ou seja, a oferta do sacrifício: se é verdade que Cristo veio à terra também para pregar o advento do Reino, os Evangelhos mostram que o Senhor, durante sua vida terrena, está todo voltado para aquela “hora” pela qual veio, e que a própria revelação só será compreendida – diz Jesus – depois de cumprido seu sacrifício pessoal. A essência última do sacerdócio não consiste na pregação da Palavra, embora esta seja importantíssima e, ao lado do governo da Igreja, represente um ofício próprio do ministro ordenado. A Igreja ensina que, de modo particular quando celebram a Missa, os sacerdotes agem in persona Christi. Eles são ministros de Cristo e por conseguinte não agem por si mesmos, mas como instrumentos d’Ele. Em consequência disso, a falta de santidade pessoal do sacerdote não invalida os sacramentos.

Referência: Clerus.org

Fonte: https://www.presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF