Translate

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A vida de Jesus, uma conversa sempre aberta

Opus Dei

O anúncio do Evangelho ganha tons diferentes em cada momento histórico concreto. Contemplar algumas atitudes de Cristo pode ajudar-nos em nossa tarefa.

“A que é semelhante o Reino de Deus, e a que o compararei? ” (Lc 13, 18). Esta pergunta que Jesus faz a si mesmo em voz alta, antes de relatar algumas parábolas, é provavelmente algo mais do que um recurso retórico. Reflete, talvez, o que ele mesmo considerava frequentemente em seu interior, pelo menos cada vez que ia transmitir a sua mensagem nos ambientes em que andava. Esta atitude pode ressoar em nós, em forma de pergunta também: como testemunhar o amor de Deus aqui e agora? Qual é a melhor forma de compartilhar a sua luz em cada momento histórico particular, com pessoas concretas, que têm seu próprio modo de ver a vida?

Se lermos o Evangelho com essa chave, veremos, por exemplo, que o Senhor se interessa pela cultura que formava o mundo que o rodeava: certa vez utiliza uma canção popular para mover as disposições daqueles que o escutavam (cfr. Mt 11, 16-17), ou serve-se de uma notícia conhecida por todos – a queda acidental de uma torre, na qual morreram dezoito pessoas – para ajudar os seus ouvintes a redesenhar a ideia que tinham de Deus (cfr. Lc 13, 4). Cristo, além disso, está sempre aberto a todos os tipos de perguntas, especialmente as daqueles que parecem hostis à sua pessoa ou à sua pregação: seu anúncio, que escapa inteligentemente de polêmicas estéreis, chega a preencher um vazio, uma insatisfação e tal abertura não muda quando ele sabe que as intenções de quem pergunta não são muito retas (cfr. Mt 22, 15-22; Mc 12, 13; Lc 20, 20).

Por outro lado, não poucas vezes, ele procura ter momentos prolongados de intimidade para considerar o que a outra pessoa está de verdade compreendendo, como aquela noite com Nicodemos (cfr. Jo, 3), o encontro com a samaritana junto ao poço (cfr. Jo 4), com os discípulos de Emaús (cfr. Lc 24, 13-35) ou em tantas caminhadas com outros discípulos. Jesus sabe que, por um lado, está o que pregou; por outro, porém, está o que cada um compreendeu pessoalmente, encarnado em sua história concreta, seu modo de vida, seu talentos e limitações.

Se a fé é “o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa”[1], olhar com atenção estas atitudes de Cristo pode ser um bom caminho para comunicar melhor esse encontro que transforma nossa vida. Porque “toda a vida de Jesus – dizia São Josemaria – não é senão um maravilhoso diálogo, meus filhos, uma maravilhosa conversa com os homens”[2].

Qualquer momento é único e bom para Deus

Cada época é modelada por uma cultura, convicções compartilhadas, anseios próprios... e por isso, com o tempo a evangelização adquire modos diferentes. Bento XVI observava que quando os cristãos se preocupam pelas consequências sociais de sua fé, fazem-no frequentemente “considerando a fé como um pressuposto óbvio da vida comum”. No entanto, continuava, hoje “este pressuposto não só não aparece como tal, mas inclusive é frequentemente negado. Enquanto que no passado era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente aceito em sua referência ao conteúdo da fé e aos valores inspirados por ela, hoje não parece ser assim”[3].

Bento XVI não se propunha transmitir uma radiografia pessimista do presente, já que para Deus não há tempo melhores e nem piores. Lançava, simplesmente, luz sobre esta nova situação em que anunciamos Jesus: momento no qual muitas pessoas não ouviram falar da sua mensagem ou consideram irrelevante o que ouviram; momento no qual muitos ainda não receberam a Boa Notícia do amor de Deus. Isto implica a necessidade de voltar a afinar os termos, de encontrar caminhos adequados para aquecer a imaginação e o coração daqueles que nos rodeiam. É verdade que não é difícil identificar manifestações culturais ou artísticas que surgiram de um espírito cristão; muitas vezes, porém, elas permanecem isoladas, sem conexão com o grande evento que lhes deu vida ou com os desígnios misericordiosos de Deus para cada pessoa. Uma esplêndida obra de arte ou a valorização de um direito humano podem ser belos retalhos, mas desconexos, de uma grande mensagem desconhecida.

O fato de que a fé não seja “um pressuposto óbvio da vida comum” torna mais desafiadora, e inclusive mais bonita, a tarefa de compartilhar o Evangelho. Sem considerar nada já conhecido, somos nós os primeiros que teremos que descobrir a essência do que Jesus nos trouxe: descer até as raízes desta nova vida, visar o mais importante. Em certos momentos, a situação será semelhante à dos primeiros cristãos, que anunciavam uma novidade destinada a encher de esperança os corações e a preencher o vazio que as correntes do momento deixavam. Por isso, como Jesus, queremos encontrar o melhor modo de falar sobre o Reino de Deus com as pessoas que nos rodeiam. “Como é bom – diz o Papa Francisco ver pessoas esforçando-se por escolher cuidadosamente palavras e gestos para superar as incompreensões, curar a memória ferida e construir paz e harmonia”[4].

O cristianismo requer um anúncio sinfônico

A carência desse “tecido cultural unitário” é algo que não depende atualmente da responsabilidade das pessoas concretas. É um ponto de partida do qual convém tomar consciência, porque para transmitir alguns aspectos particulares da mensagem evangélica – que podem ser de caráter dogmático, moral, etc.– é necessário ter anunciado abundantemente o marco geral que lhes dá sentido, o coração que lhes dá vida. Não é estranho que Jesus tenha querido deixar claro, para que não houvesse confusões, que o mandamento do amor está por cima de todo o resto (cfr. Mt 22, 37-39). Somente sobre esta base os seus ensinamentos adquirem harmonia, ordem e compreensibilidade. Normalmente também acontece assim quando uma pessoa quer apreciar um quadro: não se aproxima para ver primeiro um ângulo da tela, porque isso não lhe permitiria perceber a composição em seu conjunto, mas observa primeiro a tela inteira. Da mesma forma, se o anúncio cristão se reduzisse a um ou dois temas particulares, haveria o risco de não expor nunca a obra autêntica, que dá sentido integral e beleza a cada um de seus elementos.

Por isto, a riqueza do cristianismo pede para ser expressada como uma sinfonia, fazendo ressoar, ao mesmo tempo, tanto os sons baixos que dão consistência à orquestra, como o virtuosismo de cada instrumento particular. Se um trompete começa a tocar mais alto que os violinos ou os instrumentos de percussão que marcam o ritmo, poderá talvez apresentar uma melodia compreensível para especialistas, mas não entusiasmará, sem dúvida, a variada multidão que enche a sala. “Cada verdade é melhor compreendida se é vista na harmoniosa totalidade da mensagem cristã, e nesse contexto todas as verdades têm sua importância e se iluminam mutuamente”[5]. Com relação a essa iluminação recíproca, e fazendo-se eco do Concílio Vaticano II, o Papa sublinhou que os diferentes aspectos do anúncio cristão não são todos iguais em importância; nem todos expressam com igual intensidade o coração do Evangelho, o kerygma[6]: “Neste núcleo fundamental o que resplandece é o amor salvador de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado”[7].

Nesse mesmo sentido, São João Paulo II reconhecia, na pergunta do jovem rico a Jesus sobre como alcançar a vida eterna (cfr Mt 19, 16), algo diferente de uma dúvida sobre as regras a cumprir ou de uma busca de soluções parciais. Palpitava antes na inquietação deste jovem “uma pergunta de pleno significado para a vida”[8]. O que aquele jovem manifestava era a sua experiência do “eco da chamada de Deus”[9]. Assim se termina de formar o grande marco, esse grande anúncio dentro do qual podem ser plenamente compreensíveis todas as outras verdades cristãs: o amor de um Deus misericordioso que, em Jesus Cristo, procura a todos nós. Os instrumentos isolados – um ou outro aspecto doutrinal concreto – só se unirão à melodia se todos os sons da orquestra, especialmente os mais importantes, forem ativados de modo sinfônico.

Em resumo, é importante recordar que, ao dar testemunho da nossa fé, conta mais a música que a outra pessoa ouve, entende e interioriza, do que o que nós pensamos ter dito de modo satisfatório. “No dizer do povo, quem é o Filho do Homem? ”, pergunta Jesus. “E vós quem dizeis que eu sou? ” (Mt 16, 13.15). O Senhor quer assegurar-se, e sobretudo que seus discípulos o façam, de quanto caminharam no conhecimento de seu Mestre.

Existe muito terreno compartilhado

Cristo acaba de cruzar o Jordão da Galileia para a Judeia. A fama da sua pregação e dos milagres que realizou voa como o vento, de modo que uma grande quantidade de pessoas não tarda em ir à sua procura. Entre elas, um bom número de fariseus, estudiosos da lei. Um deles faz logo uma pergunta sobre o divórcio. Jesus explica a indissolubilidade do matrimônio, recorrendo às palavras do Gênesis. Embora não saibamos se essa explicação os convence totalmente, o que vemos é que os próprios discípulos, em princípio mais bem-dispostos para acolher os seus ensinamentos ficam desconcertados: “Se tal é a condição do homem a respeito da mulher, é melhor não se casar” (Mt 19, 10). Algo similar acontece quando Cristo anuncia, desta vez aos saduceus, a ressurreição futura do nosso corpo, diante de um rebuscado caso hipotético que eles lhe haviam proposto, servindo-se inclusive das palavras de Moisés (cfr. Mt 22, 23-33).

Em cada momento histórico há também aspectos dos ensinamentos da Igreja que, por razões culturais, são mais difíceis de ser compreendidos. A solução não é fazer como se tais questões não existissem, uma vez que isso manifestaria desinteresse pela felicidade dos outros; os ensinamentos da Igreja nos fazem bem e por isso necessitamos deles. O verdadeiro serviço aos outros consistirá em procurar tornar compreensíveis estes ensinamentos; mostrar um caminho viável, progressivo, compreendendo a situação deles. Para isso, pode ser útil apoiar-se em elementos que os outros já compartilham com o anúncio cristão: construir sobre um terreno comum. É assim que, nas duas questões anteriores, Jesus recorre a passagens da Escritura que os seus interlocutores aceitam como reveladas por Deus. Em nosso tempo, também existem muitos aspectos do cristianismo que são amplamente compartilhados: o amor e a busca da verdade, a promoção da liberdade religiosa, a luta contra todo tipo de escravidão ou pobreza, o impulso da paz, o cuidado do meio ambiente, o atendimento especial para pessoas com alguma deficiência, etc.

Quanto mais dificuldades se encontram no anúncio, mais se deve afirmar o essencial da mensagem cristã e mais convém promover as convicções compartilhadas. A verdade pode ser comparada a uma pedra preciosa: ela fere se a lançamos na cara do outro, mas se a colocamos delicadamente em suas mãos, compartilhando o seu tempo e o seu espaço, ela poderá exercer uma atração divina. A amizade, por isso, é o melhor contexto para comunicar a fé em um mundo plural e cambiante. A bem-aventurada Guadalupe Ortiz de Landázuri encarava sua missão apostólica nesses termos; entusiasmava-a “construir pontes e oferecer a sua amizade a pessoas de todos os tipos: pessoas distantes da fé, pessoas de países muito diferentes e de idades muito variadas”[10].

Transformar os conflitos em elos

“Ordenou aos seus anjos a teu respeito que te guardassem. E que te sustivessem em suas mãos, para não ferires o teu pé nalguma pedra” (Lc 4, 11). São palavras do salmo 91 que o demônio manipula para pôr Jesus à prova no deserto. O que o tentador busca é que o Senhor sobrevoe os caminhos terrenos mostrando seu poder divino sem submeter-se à lógica própria da história. São Tomás de Aquino vê nesta tentação a vanglória que pode cruzar o caminho de quem já empreendeu um caminho cristão[11]. Não é verdade que quereríamos às vezes não encontrar nenhuma pedra em nosso apostolado e que a Boa Nova se transmitisse por todo o mundo como uma espécie de irresistível melodia angélica?

Sabemos que o cristianismo não se resume a uma série de conceitos, mas consiste fundamentalmente no encontro com Jesus. Pode acontecer, no entanto, que tenhamos às vezes a tentação de reduzir a proposta deste encontro à satisfação de uma discussão que se venceu, a ter sempre os melhores argumentos frente às dúvidas dos outros. De que serve “ganhar” uma disputa se se perde a outra pessoa? Estaríamos de fato nesse caso passando ao largo do caminho (cfr. Lc 10, 31-32). Ser bom samaritano implica, pelo contrário, “sofrer o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de um novo processo”[12]. Durante o último ano de sua vida, São Josemaria costumava repetir: “Deus teve muita paciência comigo”[13]. E encontrava nessa realidade a razão para ser muito paciente com os outros.

Neste sentido, também é importante distinguir os contextos de nossas conversas. Uma coisa é defender certos valores em um processo legislativo ou intervir em debates sobre as políticas de um governo, outra muito diferente, porém, é querer compartilhar a alegria da própria fé com um amigo. As redes sociais fizeram, no entanto, que muitas vezes se confundam os planos e o debate público acabe por invadir o terreno íntimo, onde os desacordos deveriam ser superados pelo carinho mútuo. “Quem recorre à violência para defender suas ideias – dizia o fundador do Opus Dei – demonstra com isso que carece de razão”. E concluía: “não discutais”[14]. Em situações de polarização – que acontecem quando o pluralismo sadio e normal adoece – convirá, às vezes, abandonar o terreno que se converteu em um campo de batalha para assim optar por fortalecer a relação antes que fique minada para sempre. Em um ambiente polarizado no qual não há contato aberto com quem pensa de modo diferente, quando desaparece a conversa, as legítimas diferenças podem chegar pouco a pouco a um desprezo mais ou menos encoberto ou a uma manifesta desqualificação. Tudo isso é profundamente contrário ao espírito cristão.

Numa das primeiras vezes em que Jesus anuncia que Ele é o Messias esperado por tanto tempo, encontra dura oposição: “A essas palavras encheram-se todos de cólera na sinagoga. Levantaram-se e lançaram-no fora da cidade; e conduziram-no até o alto do monte sobre o qual estava construída a sua cidade, e queriam precipitá-lo dali abaixo” (Lc 4, 28-29). O clímax deste conflito chega muito depressa, inclusive com perigo de morte. Jesus percebe que, em tal contexto ele não tem margem para acrescentar algo positivo. De modo que, supreendentemente, decide ir-se em silêncio, passando pelo meio deles. Muitas vezes, como Cristo, o melhor será optar por um silêncio que dê lugar à obra do Espírito Santo: a força de Deus não é ruidosa, frutifica no silêncio e a seu tempo.

Preencher nossa comunicação com o Evangelho

Não nos cansaremos de contemplar as respostas de Jesus àqueles que lhe abrem o coração, àqueles que buscam nele luzes e sossego. Jesus, por exemplo, anuncia à mulher samaritana a água viva que acalmará a sua sede mais profunda (cfr. Jo 4, 10). A Nicodemos, por outro lado, faz ver que para entrar no Reino de Deus ele tem que nascer de novo, desta vez do Espírito (cfr. Jo, 3, 5). E aos discípulos de Emaús explica como os profetas tinham anunciado há muito tempo tudo o que o Messias devia sofrer (cfr. Lc 24, 26-27). É bom perceber que em nenhum destes casos se trata simplesmente de uma exposição sobre a fé. Nas três passagens, junto aos aspectos doutrinais que Jesus expõe, há outras dimensões da verdade que essas conversas manifestam, talvez menos perceptíveis, mas igualmente importantes: a verdade sobre quanto o Senhor valoriza aquela relação pessoal; sobre quem é o próprio Jesus Cristo e quem são eles verdadeiramente. É a verdade do encontro, a verdade como inspiração de um vínculo destinado a ser duradouro.

Jesus não tem pressa, não afasta as pessoas: recebe-as a qualquer hora e acompanha-as no caminho. Jesus comunica muito mais do que dizem suas palavras: faz que, apenas com a sua presença, cada um se sinta filho de Deus. Esta é a principal verdade que as pessoas levam consigo depois de um encontro com Ele. Nosso desafio é preencher todos os níveis do nosso testemunho – o conteúdo da fé, a relação de amizade e o próprio desenvolvimento da nossa personalidade – com o espírito do Evangelho: “O que dizemos, e como o dizemos, cada palavra e cada gesto deveria expressar a compaixão, a ternura e o perdão de Deus para todos”[15].


[1] Bento XVI, Deus caritas est, n. 1.

[2] São Josemaria, Cartas 37, n. 7.

[3] Bento XVI, Porta fidei, n. 2.

[4] Francisco, Mensagem para a 50ª jornada mundial das comunicações sociais, 24/01/2016.

[5] Francisco, Evangelii gaudium, n. 39.

[6] A palavra grega kerygma significa anúncio ou proclamação. É utilizada como resumo do anúncio cristão.

[7] Evangelii gaudium, n. 36

[8] São João Paulo II, Veritatis Splendor, n. 7

[9] Ibid.

[10] Mons. Fernando Ocáriz, Homília na Missa de ação de graças por sua beatificação, 19/05/2019.

[11] Cfr. São Tomás de Aquino, Suma teológica, III, c. 41, a. 4, r.

[12] Evangelii gaudium, n. 227.

[13] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 10/07/1974.

[14] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar.

[15] Francisco, Mensagem para a 50ª jornada mundial das comunicações sociais, 24-I-2016.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF