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quinta-feira, 18 de maio de 2023

Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica (4/5)

Ser e tornar´se irmãos | Presbíteros

Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica

Uma das novidades mais importantes da encíclica “Fratelli Tutti” é o vínculo que ela postula entre a fraternidade e o bem comum político. Oferecemos o estudo de Maria Aparecida Ferrari, publicado no boletim Romana.

04/05/2023

3. Fecundidade para toda a sociedade

Se todos podem ou devem ser estalajadeiros nas relações sociais, parece pertinente, além de focar nos personagens, refazer a pergunta da qual nasceu a parábola do samaritano, substituindo “quem é meu irmão?” por “quem é meu irmão na convivência sociopolítica?”. Claro, podemos responder: “aquele que tem fome, sede, está nu, está na prisão ou está doente”. Mas, sendo verdadeira, essa resposta também é incompleta, pois o outro não é meu irmão só porque precisa ou só quando está desamparado. A fraternidade social consiste na disponibilidade de cada um para com o outro em qualquer situação; designa a capacidade de cultivar sempre a sensibilidade para com o seu bem e as suas necessidades e transformá-la num apoio eficaz. Trata-se, portanto, de colocar a pessoa do outro em primeiro plano, e não as suas necessidades, reconhecendo nele um irmão, uma pessoa que constantemente merece a disposição de todos de dar e dar-se livremente.

Nesse amplo exercício de fraternidade, a maioria dos cidadãos assume o papel de estalajadeiros, mantendo o anonimato. Realizam as suas tarefas cotidianas – como estalajadeiros de profissão – sem fazer barulho, e assim realizam o bem comum político. Nesta multidão de estalajadeiros, cada um, mesmo sem pôr sua assinatura no que faz, torna-se, de fato, irmão/irmã de todas as pessoas. O título da parábola que estamos comentando é “parábola do bom samaritano”, mas seria igualmente correto chamá-la de “parábola do estalajadeiro”. Como no relato de Jesus, os estalajadeiros de todos os tempos e de todas as sociedades políticas passam quase despercebidos, apesar de prestarem um serviço essencial a todos: aos que encarnam o bom samaritano, aos que encarnam o ferido, e igualmente, de forma mais geral, para o bom funcionamento da sociedade como um todo.

Por isso, refletir sobre a figura do estalajadeiro nos abre para uma maior compreensão da advertência do Papa Francisco: “Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam […]. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos” (FT 77).

“Espaço de corresponsabilidade” e “grande ocasião”, porque a maior parte do que constitui o bem comum político é obra de cidadãos que atuam como estalajadeiros, embora às vezes também devam personificar o bom samaritano. A leitura mais frequente da parábola centra-se no ato admirável deste último, e apenas em algumas ocasiões se explicita que cuidar dos feridos é também tarefa do estalajadeiro. Na verdade, porém, foi este personagem quem fez a maior parte do trabalho, e o fez simplesmente cumprindo seu dever profissional, sem a pretensão de aparecer na mídia ou nas redes sociais, como diríamos hoje. O estalajadeiro foi irmão do bom samaritano e do ferido no desempenho de seu trabalho.

Consideremos, por outro lado, que os estalajadeiros não costumam agir sozinhos, mas estão inseridos no seu próprio dinamismo relacional e orientados para o bem de todos. Consciente ou inconscientemente, distinguem em suas tarefas oportunidades mais ou menos diretas, mais ou menos evidentes de prestar um serviço, de exercer a fraternidade, e também de nela envolver os outros, como adverte o Papa Francisco − “não o façamos sozinhos, individualmente”− ao observar que “o samaritano procurou um estalajadeiro que pudesse cuidar daquele homem” (FT 78). De fato, sem o trabalho bem feito do estalajadeiro, ele não teria podido cumprir o seu trabalho de cuidar do homem sofredor, assim como o estalajadeiro não teria podido cumprir o compromisso que assumiu sem o trabalho dos que dirigiam a pousada com ele.

Concretamente, a profissão ou ofício − e em geral qualquer atividade de serviço − representa para cada cidadão uma via privilegiada de fraternidade social e cívica, já que constitui uma contínua oportunidade de agir com retidão, promovendo efetivamente a justiça, a solidariedade e o bem dos outros. Como o samaritano prestou um serviço e “partiu sem esperar reconhecimentos nem agradecimentos”, os estalajadeiros do mundo exercem, na rotina diária da sua vida e em seu trabalho a responsabilidade para com esse “ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra”. Do seu lugar na sociedade − do seu papel de estalajadeiros − dão uma resposta pessoal e objetiva às necessidades dos outros, respondem ao apelo do Papa Francisco: “Cuidemos da fragilidade de cada homem, de cada mulher, de cada criança e de cada idoso, com aquela atitude solidária e atenta, a atitude de proximidade do Bom Samaritano” (FT 79).

Em projeção fecunda, esta atitude pode transformar toda a cidade terrena, como fermento misturado na massa (Mt 13,33), porque, como diz o Papa Francisco, retomando o Compêndio da doutrina social da Igreja, o amor social é uma “força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos” (FT 183).

Maria Aparecida Ferrari* Professora Associada de Ética Aplicada na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma)

https://opusdei.org/pt-br

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF