O munus regendi sacerdotal: luzes a partir da série The Crown
Um dos três múnus do sacerdote é o de reger (munus regendi).
Unido a Cristo Cabeça, o padre deve fazer as vezes de Jesus, Rei do Universo,
pastor do rebanho, e conduzir o povo de Deus. A tarefa de governar, como a
totalidade da vida sacerdotal, é uma tarefa de agir de acordo com uma
identidade recebida.
O sacerdote representa Cristo e a Igreja, in Persona Christi, in
Persona Ecclesiae. Seu “eu” recebeu a identidade de Cristo e o sacerdote é
chamado a ser imagem de Jesus e da Igreja no mundo.
Muitas contradições e dissabores na vida sacerdotal surgem pela falta da
consciência íntima da identidade do padre católico. Num tempo em que se propõe
a liberdade quase como um termo oposto à responsabilidade e também a realização
pessoal como emancipação do coletivo, e que entende a personalidade como
soberana em todas as situações, torna-se cada vez mais conveniente refletir
sobre o papel do sacerdote e sua identidade.
Ajunta-se a esse problema a crise da autoridade; é importante falar isso
quando se estuda o munus regendi. O poder e a missão de governo,
figuram, em muitas teorias, como oposição ao Evangelho de Jesus, e não, como de
fato deveria ser, um serviço grave e denso, imagem do governo do Pai celeste.
Afinal, Jesus revela Deus como Pai aos discípulos.
O presente texto não tem pretensão de ter caráter acadêmico, nem
estritamente teológico, mas quer propor algumas considerações para os
sacerdotes. Faz isso, de modo pouco habitual, a partir de uma série
televisiva, The Crown (2016), em especial sua primeira
temporada.
Hoje parece ser comum a busca de momentos de lazer por meio das séries
em streaming, isso também entre os sacerdotes, o que, a
priori, com a devida cautela, prudência e temperança, pode ser um bom
descanso. The Crown é uma crônica da vida da Rainha da
Inglaterra, Elizabeth II.
Se vista com um olhar atento, é possível tirar algumas lições para a
vida em geral, e, aqui, se pretende transmitir intuições dela para a realidade
sacerdotal. Serão destacadas algumas falas, personagens e posturas que podem
ser reflexões para os sacerdotes.
É importante dizer que, ao relacionar a Coroa com o sacerdócio, o
governo temporal com o munus regendi dos presbíteros, se deve,
obviamente, guardar as devidas proporções. Também, ao tratar dos personagens,
se fala, de fato, dos personagens da série, de como foram retratados nela, e
não fazendo juízo de valor de pessoas concretas.
Munus
Regendi e a série The Crown
A coroa inglesa pairou sobre a cabeça do pai de Elizabeth, George VI,
por conta da abdicação do seu tio, que renunciou ao trono por querer
estabelecer um casamento ilegítimo, desaprovado pelas leis reais. Isso mudou a
vida de Elizabeth, o que é claro na série.
A jovem, de membro coadjuvante da família, passou a ser a peça mais
importante, a herdeira do trono. Faz parte do exigido à família real viver como
uma espécie de modelo de moralidade e formalidade, ainda é necessário a busca
de ser inspiração aos comuns.
Também, no sentido mais prático, se é que se pode assim dizer, o monarca
seria um símbolo de estabilidade, não dependendo de viés político e votos
populares, estando acima disso, trazendo ordem e intrepidez apesar de qualquer
disputa na câmara. O monarca serve ao país com uma postura estável e
procedimento modelar, sendo defensor e arauto de valores basilares para a
sociedade, cooperando e vivendo de modo orgânico com o primeiro ministro,
eleito pelo povo.
Ser membro da família real exigiria estar a serviço da instituição para
a manutenção da mesma e o bem do país. The Crown, em especial sua
primeira temporada, retrata o drama, os conflitos e tensões do entendimento da
missão real como identidade da pessoa que a exerce. A função dada é mais
importante que a particularidade do sujeito que a desempenha.
Aqui surge um ponto oportuno para a vida sacerdotal. Muito mais que um
monarca em seu reino, o homem ordenado recebe uma nova identidade, seu ser
muda. Ele passa a ser sua missão.
Quanto mais ele existencialmente vive o que é ontologicamente, mais
autêntica é sua missão e sua vida. Mas é inegável que isso não é tão simples, é
sempre uma tarefa. Muito interessantes são os diálogos da Rainha Elizabeth com
sua avó, a rainha Mary.
Numa das cenas, a anciã dá a seguinte explicação sobre a monarquia
– “A monarquia é um chamado de Deus. E por isso a coroação é numa
abadia, não num prédio governamental, somos ungidos e não indicados. É um
arcebispo que põe uma coroa na nossa cabeça, não um ministro ou um funcionário
público. Quer dizer que você responde unicamente a Deus em seu cargo, não ao
público”.
Esse trecho parece dar uma boa reflexão ao sacerdote no governo do povo
de Deus. O padre governa não para ser popular, mas para honrar a Deus.
Amabilidade pastoral e acolhida, sim, mas sem esquecer que o Evangelho, a
vontade de Deus, deve estar acima de aplausos e a aprovação dos que o ouvem.
Do governo de uma paróquia, do governo das almas, o padre prestará
contas somente a Deus, sua unção vem d´Ele e é a Ele que o padre deve servir.
Governar em seu nome!
A Rainha
Elizabeth
Um dos acontecimentos mais emblemáticos e significativos da série se
encontra nos primeiros momentos de Elizabeth, Lilibet, como Rainha. Ao receber
a notícia da morte de seu pai, o rei, recebe também, momentos depois, a carta
escrita por sua avó conscientizando-a de sua nova fase de vida:
“Querida Lilibet, eu sei o quanto você ama seu pai, meu filho, eu sei
que ficará tão devastada quanto eu com esta perda, mas você deve colocar de
lado esse sentimento, pois o dever a chama. O luto pela morte de seu pai será
amplamente sentido. Seu povo precisará de sua força e segurança. Eu já vi três
grandes monarcas ruírem por não conseguirem separar seus desejos pessoais do
dever. Você não pode se permitir cometer erros similares. Enquanto se despede
de seu pai também deve se despedir de outra pessoa, Elizabeth Mountbatten, pois
ela agora será substituída por outra pessoa – a Rainha Elizabeth. As duas
Elizabeth frequentemente entrarão em conflito. O fato é: a Coroa deve vencer.
Deve sempre vencer”.
Bem forte é esse texto, inclusive, permite boas considerações
espirituais. Se o leitor transpõe a preocupação da manutenção de um governo
para a realidade da pregação do Evangelho na vida sacerdotal e a propagação da
Igreja, parece ter muito mais sentido.
O sacerdócio, que é vida consagrada a Deus, vai se deteriorando, e, de
igual maneira, o governo do sacerdote se atropela, é desacreditado, quando
governa para si e não pelo bem das almas. Quando opiniões, desejos, estilo de
vida, gostos estão acima do chamado, da missão, a vocação pode ruir, pois é
como não assumir a identidade recebida.
O conselho para Elizabeth se despedir dela mesma a fim de passar a viver
como Elizabeth II, assumindo seu novo ser, sua nova missão, pode provocar o
sacerdote a pensar no rito da ordenação. O candidato se prostra, como um morto.
Parece que a tradicional roupa preta do sacerdote quer indicar algo disso
também.
Por amor, o eleito morre para ser sua nova identidade – padre! Assim
como dito na carta da rainha Mary para Elizabeth, pode existir volta e meia um
conflito interno enquanto o padre não desposa inteiramente com sua vocação.
Essa ideia traz muitas consequências.
Hoje, a cultura motiva a todos a particularismos e individualismos que
podem, na prática, se fazer reduzir o sacerdócio a uma mera função exercida com
uma folha de ponto, de tal hora a tal hora, para depois, enfim, viver sua vida.
Deitar no chão, no rito, é, de algum modo, despedir de si mesmo, não de forma
desumana e sem levar em conta os carismas dados por Deus, mas uma morte para
particularismos e para uma vida leiga.
Na carta, ainda, foi aconselhado a guardar sentimentos, pois, o povo
precisava da estabilidade no momento de tensão. Inclusive, mais à frente,
Elizabeth questiona se não deve demonstrar seus sentimentos, indignação,
tristeza etc., isso ela questionava pois sentia que assim não estava
trabalhando, não estava sendo eficaz, estava sem fazer nada.
A avó responde, no sentido da missão do governo em servir dando
estabilidade e não sendo volúvel aos fogos momentâneos, assim: “Não
fazer nada é o trabalho mais difícil de todos. Ele exige cada gota de energia
que você tem. Ser imparcial não é natural, não é humano. As pessoas vão querer
que você sorria, concorde ou discorde. E quando fizer isso você terá declarado
sua posição, seu ponto de vista. E essa é a única coisa que como soberana você
não tem direito de fazer”. Esse conselho, num contexto de não se deixar
levar pelas paixões para decidir bem, e, também, não permitir que emoções e
sentimentos mexidos interfiram no modo de governar, pode ter serventia na ação
pastoral.
Quantas vezes pode-se flagelar paróquias e se passar insegurança aos
fiéis em relação à mensagem que o sacerdote deve trazer, por não se saber
separar conflitos, desânimos, cansaços, irritações, ímpetos internos, da missão
que se deve exercer, da imagem de pastor que se deve passar. A série mostra a
Rainha numa busca de honestidade interior com seus sentimentos familiares e
opiniões pessoais, mas nunca deixando com que eles transponham sua missão,
isso, não sem sofrimento para ela.
Na primeira temporada, que é o objeto de nosso texto, Elizabeth vai
sendo formada pelos mais velhos de sua família e da sua corte. Tem a humildade
de seguir os protocolos, ouvir conselhos dos experientes para não desandar o
governo. O sacerdote precisa muito disso.
Mesmo que o presbítero tenha uma graça para exercer a missão que recebe,
deve saber ouvir para governar bem. Não, necessariamente em tudo, fará conforme
sempre foi feito, mas parece ser conveniente levar em conta o caminho realizado
e o parecer de pessoas de confiança para poder discernir.
Em um momento, Elizabeth quer que seu antigo secretário, da época que
era princesa, um jovem na carreira, assumisse o secretariado que estava ficando
vago, e, para isso, quebraria um protocolo, passando o seu amigo à frente do
homem que estava preparado para assumir. Tommy Lascelles, experiente na corte,
dá um conselho muito oportuno.
Diz que ela pode fazer, que não é algo essencial, mas que as quebras de
pequenos costumes levaram o tio Edward à abdicação. O “não tem problema” levou
a outro “não tem problema” e isso o conduziu à renúncia de sua missão.
Como não levar isso para a vida sacerdotal? Tal lugar, “não tem
problema”, tal fala, “não tem problema”, tal hobby impróprio “não tem
problema”, tal companhia, “não tem problema”. Isso pode gerar boas reflexões.
Interessante também é outra atitude da Rainha. Ao prepararem uma
cerimônia de homenagem ao seu pai, o rei morto, sua irmã Margareth e sua mãe
questionam quem deveria falar.
Margareth, com sua irreverência peculiar, alega que mesmo Elizabeth
sendo Rainha, a mãe era a esposa do falecido e ela própria tinha mais jeito com
público e dom para falar do que a irmã. Elizabeth, sem deixar de reconhecer
suas limitações, diz que ela que vai falar por conta do cargo que ocupa,
independente de seus dons, pois é devido ao povo ter a Rainha falando.
Hoje se tem, na realidade eclesial, uma crescente participação do
laicato, o que a princípio não é ruim, mas os sacerdotes devem se atentar para
o fato de que, por fé na unção que receberam, não convém delegar sua presença
em todas as ocasiões. A presença sacerdotal é sacramental, é devida no meio do
povo.
Mesmo que muitos possam fazer melhor, por técnicas humanas e aptidões,
algumas funções Deus ungiu o sacerdote para agir e conceder graças ao povo por
meio dele e da missão que ele exerce. O munus regendi é
exercido não por decretos, mas, a modo de pastor, por presença.
Príncipe
Philip
A primeira temporada mostra o jovem, Philip, casado com a pessoa mais
importante do reino, a Rainha. Quando casou, não casou enganado, que teria uma
vida de protocolos, representações, publicidade e esquemas.
Philip ao entrar na vida de marido da Rainha, começa a sentir o peso de
sua missão e passa a se portar como um adolescente mimado. Reclama
constantemente do modo que vive, o peso da Rainha é redobrado, pois só ouve de
seu marido reclamações da vida que, mais que ela, escolheu viver.
As reclamações fazem com que busque saídas com amigos, e um desejo de
constante lazer. Com o passar do tempo, o sacerdote pode sentir o peso da
responsabilidade e da vida sacerdotal.
Os protocolos litúrgicos, pastorais, os horários a cumprir, reuniões,
funções etc. Tudo isso, sem espiritualidade e verdadeiro sentido, pode
desgastar; é preciso lutar por vida e visão espiritual. Mas, no sentido de
governo, a murmuração e a oposição ao ordinário, frequentemente, levam a
desgastes deteriorantes, transmitindo fraqueza e insegurança aos que são
objetos de seu governo.
Como Philip, a murmuração aos superiores lança pesos desonestos aos que
estão hierarquicamente acima do sacerdote. De colaborador, o padre se muda em
rival de seu superior.
Redobra o peso não só para si, mas para os que tem já muita carga e
precisam de apoio. A oposição à responsabilidade que a vida que escolheu traz,
fomenta revolta com o modus operandi da instituição e pode
gerar insatisfação até com as coisas sagradas. Tem o padre que tomar cuidado
para não transformar a vida sacerdotal, que tanto desejou, em uma tarefa fria e
sem sentido.
Princesa
Margareth
Margareth, irmã da Rainha, ao contrário de Elizabeth, gosta de
holofotes, fama e valoriza de modo exacerbado a sua personalidade. Como a
maioria dos personagens reais, Margareth tem dificuldade de se adequar ao seu
papel e missão, fato que se agrava por sua inveja.
Deseja viver a vida, como membro da realeza, com seus privilégios, mas
não gosta de muitos dos seus deveres. Margareth, em uma ocasião, pela ausência
da Rainha, teve que representá-la e, querendo atrair a atenção para si em
detrimento da imagem da irmã, desobedece protocolos, muda discursos que tinham
sido ajustados pelos secretários para cada ocasião, se porta de modo
irreverente para o cargo que ocupa e acaba causando muitas tensões. Em relação
à inveja, Margareth chega a dizer claramente para a irmã que queria vê-la dar
passos em falso para que pudesse se sentir feliz.
Na vida sacerdotal, quando foge à consciência de ser representante de
Cristo e da Igreja, o sacerdote pode fazer muito mal não só ao seu governo
paroquial, ou particular, mas ao governo universal. A unção que recebeu o faz
representante de algo maior.
Quanto à personalidade, lógico que ela, na vida sacerdotal, não deve
desaparecer, Deus usa dela também. Mas quando a personalidade está acima da
postura conveniente, dos protocolos indicados, da experiência passada, a
representatividade fica comprometida.
O envelope passa a chamar mais atenção que o conteúdo da carta. Há
coisas individuais no sacerdote que chamam atenção para Cristo, mas outras
podem chamar atenção para si. Quando a política, a corrente de pensamento e o
estilo substituem o Evangelho e a Caridade de Cristo, sua missão fracassa.
Uma postura de antítese à Margareth pode fazer pensar na valorização dos
colaboradores e das estruturas da Igreja. Às vezes os conselhos dos homens de
confiança e algumas formalidades podem parecer engessamento, mas a missão de
governar é uma missão de transmissão de segurança para se conduzir alguém, e,
estruturas e comportamento são importantes para se fazer o que é preciso e não
o que se quer de modo arbitrário.
Um pároco num evento municipal, numa cerimônia de casamento, numa
solenidade civil e até num almoço de família, por exemplo, representa, de
alguma forma, a Igreja. Está ali não por si, mas pela Igreja que ali o colocou
e, em última instância, por Cristo que o ungiu.
Margareth ainda ensina, no sentido contrário do que ela faz, que a
inveja é um desastre na vida do clero. Quando se age para sua própria glória e
não para a glória de Deus, a virtude alheia passa a ser odiosa e isso gera
insatisfação e peso para si e para os outros. As desavenças, intrigas e ironias
no corpo clerical entravam o bom governo das almas, o Evangelho é
desacreditado.
Com essas considerações, o texto pretendeu ajudar os sacerdotes a
pensarem na sua vocação, no tesouro que receberam, e na grande responsabilidade
que têm, contando com a graça de Deus, para serem fiéis. Que todo sacerdote se
alegre por ter a responsabilidade não de governar um reino político, mas, de
participar do governo do Reino de Cristo, e deseje um dia viver plenamente
nesse Reino.
Pe. Matheus Pigozzo
Fonte: https://presbiteros.org.br/
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