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segunda-feira, 25 de março de 2024

Quinta Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa (II)

5ª Pregação da Quaresma 2024 (Vatican News)

Quinta Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

Que, nesta Páscoa, o Senhor ressuscitado faça, ele mesmo, ressoar em nosso coração algum daqueles seus divinos “Eu Sou”, sobre os quais meditamos nesta Quaresma! Principalmente aquele que proclama a sua vitória pascal: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá".

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU O CAMINHO, A VERDADE E A VIDA”
Quinta Pregação da Quaresma de 2024

O problema mais delicado, acerca das inspirações, foi sempre o de discernir aquelas que vêm do Espírito de Deus daquelas que provêm do espírito do mundo, das próprias paixões, ou do espírito maligno. O tema do discernimento dos espíritos tem passado nos séculos por uma notável evolução. À origem, era concebido como o carisma que servia para distinguir – entre as palavras, orações e profecias pronunciadas na assembleia – quais provinham do Espírito de Deus e quais não. Em seu exercício comunitário, o carisma da profecia deve ser acompanhado, para o Apóstolo, por aquele do discernimento dos espíritos: “A outro, (é dada) a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos” (1Cor 12,10).

O sentido originário do carisma, entendido por Paulo, parece ser muito preciso e limitado. Refere-se à recepção da própria profecia, a sua avaliação, da parte de um ou mais membros da assembleia, também eles dotados de espírito profético. Também isto, porém, não em base a uma análise racional, mas a uma inspiração do mesmo Espírito. O sentido de discernir (diakrisis) oscila, portanto, entre distinguir e interpretar: distinguir se quem falou foi o Espírito de Deus ou um espírito diverso, interpretar o que o Espírito quis dizer em uma situação concreta. A este mesmo dom do discernimento, refere-se a conhecida recomendação do Apóstolo: “Não apagueis o Espírito, não desprezeis as profecias, mas examinai tudo e guardai o que for bom. Afastai-vos de toda espécie de mal” (1Ts 5,19-22).

Se devemos levar em conta a experiência atual dos movimentos pentecostais e carismáticos, devemos pensar que este carisma consistisse na capacidade da assembleia, ou de alguns nela, de reagir ativamente a uma palavra profética, a uma citação bíblica, ou a uma oração, expressando – com a exclamação “confirmo!”, ou com outros pequenos sinais de cabeça e voz – aprovação pela palavra escutada, ou mostrando, ao contrário – com o silêncio e passando a outro – um juízo negativo. Desta forma, a verdadeira e a falsa profecia passam a ser julgadas “pelos frutos” que produzem ou não, como justamente recomendava Jesus (cf. Mt 7,16). Este significado originário do discernimento dos espíritos – aliás – poderia de grande atualidade ainda hoje em debates e reuniões, como aqueles que começamos a experimentar no diálogo sinodal.

Em época sucessiva, na espiritualidade tanto oriental quanto ocidental, o carisma do discernimento dos espíritos tem servido sobretudo para discernir as inspirações do discípulo da parte de um ancião (como no monaquismo) e, mais geralmente, para discernir as próprias inspirações. A evolução não é arbitrária; trata-se, de fato, do mesmo dom, mesmo se aplicado a sujeitos e em contextos diversos: o contexto comunitário no primeiro caso, o pessoal no segundo.

Há critérios de discernimento que poderíamos chamar objetivos. No campo doutrinal, eles se resumem para Paulo no reconhecimento de Cristo como Senhor: “Ninguém, falando pelo Espírito de Deus, vai dizer: ‘Jesus seja maldito’, como também ninguém será capaz de dizer: ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3); para João, resumem-se na fé em Cristo e na sua encarnação:

Caríssimos, não creiais em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para verdes se são de Deus, pois muitos falsos profetas vieram ao mundo. Nisto conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne, é de Deus. E todo espírito que não confessa Jesus, não é de Deus (1Jo 4,1-3).

No campo moral, um critério fundamental é dado pela coerência do Espírito de Deus consigo mesmo. Ele não pode pedir algo que seja contrário à vontade divina, tal como é expressa na Escritura, no ensinamento da Igreja e nos deveres do próprio estado. Uma inspiração divina jamais pedirá para cumprir atos que a Igreja considera imorais, por mais que a carne seja capaz de sugerir argumentos ilusórios contrários nestes casos; por exemplo, que Deus é amor e, por isso, tudo o que se faz por amor vem de Deus.

Contudo, às vezes estes critérios objetivos não bastam, porque a escolha não é entre o bem e o mal, mas é entre um bem e um outro bem, e se trata de ver qual é a coisa que Deus quer, em uma circunstância precisa. Foi sobretudo para responder a esta exigência que Santo Inácio de Loyola desenvolveu a sua doutrina sobre o discernimento.

Sinto quase vergonha de falar sobre este tema nesta sede..., mas vamos falar pelo menos alguma coisa. O santo nos convida a observar as intenções – ele as chama de “espíritos” – que estão por trás de uma escolha e as reações que ela provoca. Sabe-se que o que vem do Espírito de Deus traz consigo alegria, paz, tranquilidade, doçura, simplicidade, luz. O que provém do espírito do mal, ao contrário, traz consigo perturbação, agitação, inquietação, confusão, trevas. O Apóstolo o põe em evidência contrapondo os frutos da carne (inimizades, contenda, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, invejas) e os frutos do Espírito, que são, ao contrário, amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, lealdade, mansidão, domínio próprio (Gl 5,22).

Na prática, as coisas, é verdade, são mais complexas. Uma inspiração pode vir de Deus e, apesar disso, causar uma grande perturbação. Mas isto não é devido à inspiração doce e pacífica, como tudo o que provém de Deus; antes, nasce da resistência à inspiração ou do fato de ela nos pedir algo que não estamos prontos a lhe dar. Se a inspiração for acolhida, o coração logo se encontrará em uma profunda paz. Deus recompensa cada pequena vitória neste campo, fazendo com que a alma sinta a sua aprovação, que é a alegria mais pura que existe no mundo.

Um campo no qual é importante praticar o discernimento – além daquele das intenções e das decisões – é o âmbito dos sentimentos. Nada é mais traiçoeiro do que o amor. A natureza é habilíssima em deixar passar, como proveniente do espírito, o que ao invés provém da carne. Neste campo, é mais do que nunca necessário levar em conta o conselho que o poeta latino Ovídio dava justamente a propósito dos males do amor: “Principiis obsta. Sero medicina paratur cum mala per longas convaluere moras: “Opõe-te aos começos. Tarde toma-se o remédio quando os males, pelos muitos adiamentos, ganharam força”[6].

*    *    *

O fruto concreto desta meditação deve ser uma decisão renovada de nos confiarmos em tudo e por tudo à guia interior do Espírito Santo, como uma espécie de “direção espiritual”. Devemos todos nos abandonar ao Mestre interior que nos fala sem tumulto de palavras. Como bons atores, devemos ter o ouvido voltado, nas grandes e pequenas ocasiões, à voz deste “sugeridor” escondido, para interpretar fielmente a nossa parte na cena da vida. É o que se entende com a expressão “docilidade ao Espírito”.

É mais fácil do que pensamos, porque ele fala dentro de nós, ensina-nos tudo, instrui-nos sobretudo. Às vezes, basta um simples olhar interior, um movimento do coração, um momento de recolhimento e oração. João escreve em sua Primeira Carta:

Quanto a vós, a unção que dele recebestes permanece convosco, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine. A sua unção vos ensina tudo, e ela é verdadeira e não mentirosa (1Jo 2,27).

Sobre estas palavras, Santo Agostinho instaura um debate inusitado e vivaz com o Apóstolo. Em seu comentário à Primeira Carta de João, escreve:

Pergunto a João: “Aqueles aos quais dirigias estas palavras já tinham a unção... Por que então escreveste a eles esta carta? Por que instruí-los?”... Aqui há um grande mistério sobre o qual é preciso refletir, irmãos. O som das nossas palavras atinge os ouvidos, mas o verdadeiro mestre está dentro... Nós podemos exortar com o som da voz, mas, se dentro não está quem ensina, trata-se de um barulho inútil[7].

Se acolher as inspirações é importante para todo o cristão, é vital para quem tem funções de governo na Igreja. Só assim se permite ao Espírito de Cristo guiar a sua Igreja mediante seus representantes humanos. Em um navio, não é necessário que todos os passageiros estejam com os ouvidos grudados no rádio de bordo, para receber sinais sobre a rota, sobre eventuais icebergs e sobre as condições do tempo, mas é indispensável que os responsáveis de bordo estejam. De uma “inspiração divina”, acolhida corajosamente pelo Papa São João XXIII, nasceu o Concílio Vaticano II. Da mesma forma, depois dele, nasceram outros gestos proféticos, que aqueles que vierem depois de nós perceberão.

Que, nesta Páscoa, o Senhor ressuscitado faça, ele mesmo, ressoar em nosso coração algum daqueles seus divinos “Eu Sou”, sobre os quais meditamos nesta Quaresma! Principalmente aquele que proclama a sua vitória pascal: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá (11,23-26).

Santo Padre, irmãos e irmãs, Feliz Páscoa!

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Tradução Fr. Ricardo Farias, OFMCap
[6] Cf. Ovídio, Remedia amoris, V,91.
[7] Cf. Agostinho, Tratado sobre a Primeia Epístola de João, 3,13.

https://www.vaticannews.va/pt

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt.html

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF