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terça-feira, 22 de junho de 2021

Providentissimus Deus (Parte 2/5)

Papa Leão XIII | Veritatis Splendor

PROVIDENTISSIMUS DEUS, DO PAPA LEÃO XIII

SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS

Veneráveis irmãos, saúde e benção apostólica

8. Mas novos e mais auspiciosos incrementos produziu a disciplina dos escolásticos. E, se bem que estes procuraram estabelecer a lição fiel da versão latina, como no-lo atestam as suas correções bíblicas, foi, todavia, seu principal cuidado interpretar e explanar o sagrado texto. Ninguém até então conseguiu expor com mais ordem e clareza os vários e distintos sentidos da palavra divina, a sua força probativa nas demonstrações teológicas, a divisão e o argumento dos Livros santos, o escopo dos seus autores, o nexo íntimo entre os diversos pensamentos bíblicos, e é evidente que tudo isto derrama abundante luz sobre os lugares obscuros da Escritura. Além de que, da doutrina dos escolásticos, tão seleta como copiosa, muito se aproveitaram os tratados de teologia e os comentários escriturísticos; e ainda nestes trabalhos a todos leva a palma S. Tomás de Aquino. Todavia, depois que Clemente V, nosso predecessor, dotou o Atheneu de Roma e algumas Universidades famosas de cátedras para o magistério das línguas orientais, prestes os escolásticos se dedicaram com novo fervor ao estudo do códice original e versão latina da Bíblia. O estudo dos monumentos da literatura grega e o feliz advento da imprensa rasgaram vastos horizontes ao culto da sagrada Escritura. Pasma-se de assombro ao ver como em tão breve espaço de tempo se difundiram por todo o orbe católico inumeráveis exemplares impressos da Bíblia, principalmente da Vulgata. Eram glorificados e amados os Livros divinos no mesmo tempo em que os inimigos da Igreja a perseguiam com calúnias.

9. Não devemos passar em silencio os momentosos serviços que, desde o Concilio de Vienna ao de Trento, prestaram aos estudos bíblicos muitos varões doutos, especialmente das diferentes famílias religiosas. Dotados de vasta erudição e agudo engenho e aproveitando-se de novos subsídios, não só aumentaram as riquezas acumuladas dos seus maiores, senão que também prepararam o esplendor do século XVII em que pareceu reviver a idade áurea dos Padres. Ninguém ignora, e é para nós sobremodo agradável recordá-lo, que aos Nossos predecessores, desde Pio IV a Clemente VIII, se devem as insignes edições das antigas versões Vulgata e Alexandrina, que ao depois se tornaram de uso comum em virtude do mandato de Sixto V e do mesmo Clemente VIII. É sabido ainda que pelo mesmo tempo foram dadas a estampa, escrupulosamente revistas, não só outras versões antigas da Bíblia, mas também as poliglotas de Anvers e Paris, de grande subsídio para a investigação do genuíno sentido; que não há livro do antigo e novo Testamento que não tivesse hábeis expositores, nem questão difícil da Bíblia sobre a qual se não exercesse o talento de muitos, entre os quais alcançaram brilhante renome não poucos, profundamente lidos nas obras dos santos Padres. Não esmoreceu, felizmente, a solicitude dos nossos exegetas. Em nome da filologia e ciências análogas, o racionalismo insurgiu-se contra as Escrituras; com armas da mesma tempera muitos homens distintos e beneméritos dos estudos bíblicos vingaram aqueles livros divinos dos sofismas com que eram impugnados. Quem ponderar estes factos à luz duma critica imparcial certamente confessará que a Igreja, sem ter necessidade de incitamentos estranhos, sempre se desvelou em providencias, a fim de que as Escrituras divinas fossem outras tantas fontes de salutar doutrina para seus filhos; que sempre conservou e ilustrou com preciosos estudos aquele baluarte para cuja defesa e gloria a mesma Igreja foi divinamente instituída.

10. Mas o desígnio que intentamos, veneráveis irmãos., exige que pratiquemos convosco sobre o que mais convém a boa orientação dos estudos bíblicos. O que primeiramente devemos averiguar é quais os adversários com quem temos de combater, quais as armas e ardis em que mais confiam. Assim como nos tempos idos a luta principal foi contra os sectários do livre exame que, rejeitando as tradições divinas e o magistério da Igreja, proclamaram a Escritura como única fonte da revelação e juiz supremo da fé, assim também hoje a momentosa pugna é contra os racionalistas, oriundos do protestantismo, os quais, baseando-se no seu próprio juízo, rejeitam completamente essas relíquias da fé cristã que os seus precursores ainda respeitaram. De feito, para os racionalistas a revelação, a inspiração, a própria Escritura não passam de invenções e artifícios humanos ; as narrações bíblicas não têm realidade objetiva, são fabulas ineptas ou historias puramente subjetivas; as profecias ou foram feitas depois de realizados os factos que anunciam, ou são previsões naturais; os milagres nem merecem tal nome, nem manifestam um poder divino, são factos em certo modo admiráveis, não excedem as forças da natureza e são puros mitos; os Evangelhos e demais escritos apostólicos não são dos autores a quem se atribuem, E tentam impor tão monstruosos erros, com que julgam destruir a verdade sacrossanta dos Livros divinos, invocando os decretos duma tal ciência livre/ mas que é tão incerta para os próprios racionalistas que os induz a flagrantes contradições ou a mudar de sentir sobre o mesmo ponto. Ao passo que tais homens sentem e escrevem tão impiamente de Deus, de Cristo, do Evangelho o demais livros da Escritura, muitos há dentre eles que se decoram com o título de teólogos cristãos e evangélicos, escondendo assim, com aquele nome de muita honra, a temeridade dum talento cheio de soberba. Colaboram com estes muitos cultores doutras ciências, igualmente adversários intolerantes da revelação, auxiliando-os na luta contra a Bíblia. Não podemos deplorar quanto merece ser deplorada esta guerra sem tréguas que de dia para dia se alastra com mais veemência. Investem os racionalistas contra os eruditos que facilmente podem aperceber-se contra os seus ataques, mas investem sobretudo contra a turba dos indoutos com as insidias e astúcias próprias de tão funestos inimigos. Nos seus livros, opúsculos e jornais propinam mortal veneno; insinuam-no nos seus congressos e discursos; invadem tudo, assenhoreiam-se de muitas escolas arrancadas a tutela da Igreja, onde inspiram às dóceis e tenras inteligências dos jovens o desprezo das Escrituras, expondo-as miseravelmente ao ridículo com facécias e chocarrices. Estes são os factos, veneráveis irmãos, que devem inflamar o zelo de todos os pastores, a fim de que não só a essa nova, mas falsa ciência se oponha aquela antiga e verdadeira ciência que a Igreja recebeu de Cristo por meio dos apóstolos, mas também surjam apologistas idôneos da sagrada Escritura, já que a luta é de tamanhas proporções.

11. Seja pois o nosso primeiro cuidado que nos Seminários e academias se professe o estudo das Letras divinas consoante o exigem assim a excelência daquela disciplina, como as necessidades dos tempos atuais. Para lograr este fim haja todo o escrúpulo na escolha dos mestres, como nem todos são dignos de tão árdua missão, mas só aqueles que amam fervorosamente a Bíblia, a estudam sem cessar e têm a conveniente preparação científica. Nem menor deve ser o cuidado e escrúpulo com que devem ser educados os que hão de suceder no magistério daqueles. É por isso conveniente que, dentre os alunos que concluíram com louvor o curso teológico, se escolham, onde for possível, os de mais decidida vocação para os estudos bíblicos e se lhes facultem os meios necessários a fim de que possam lograr um profundo conhecimento das Escrituras. Assim escolhidos e formados, podem confiadamente exercer o magistério; e, para que este seja o que deve ser e produza abundantes frutos, julgamos oportuno entrar em mais largas considerações.

12. Logo desde o princípio do seu magistério examinem os professores a aptidão intelectual dos alunos, cultivem-na esmeradamente e procedam de modo que os habilitem assim para defenderem os Livros divinos, como para extraírem deles o verdadeiro sentido. Este é o fim da chamada Introdução Bíblica que subministra ao aluno abundantes argumentos para demonstrar a integridade e autoridade dos Livros sagrados, para investigar e expor o seu genuíno sentido e para destruir pela raiz as cavilações com que os impugnam. É desnecessário ponderar que é de grande momento a discussão metódica e científica destes pontos, aos quais a teologia presta ótimos subsídios, como o tratado da Escritura se firma naqueles fundamentos e se esclarece com aquelas luzes.

13. Aplique-se depois o professor, e nisto empenhe todo o seu zelo, á exegese, que é a parte mais importante do seu magistério, ensinando aos seus discípulos como podem converter em proveito da religião e da piedade as riquezas da palavra divina. Bem sabemos que nem a vastidão da matéria, nem a estreiteza do tempo permitem que se estudem nas escolas todos os livros canônicos; todavia, atenta a necessidade de método para o estudo da exegese, fica a prudência do professor evitar os extremos daqueles que ou analisam certas pericopas em todos os livros da Escritura, ou dos que gastam todo o tempo na análise duma determinada passagem num só livro. Se, pois, na maioria das escolas não se pode fazer a análise detida dum ou doutro livro canônico, como se faz nas academias de ensino superior, ao menos empenhem-se os professores em dar uma instrução acabada das pericopas que escolheram para estudo exegético, a fim de que os alunos, assim doutrinados com tal tirocínio, possam ao depois fazer trabalho seu sobre os demais livros da Escritura, cuja lição devem sempre amar.

14. Fiel às antigas tradições, ao professor impende o dever de usar da versão Vulgata que, sobre ser recomendada pelo uso quotidiano da Igreja, deve ter-se, segundo o decreto tridentino, como autêntica, nas lições públicas, nas predicas, nas discussões e análises. Não queremos dizer com isto que se ponham de parte as outras versões, tão usadas e encarecidas pela antiguidade cristã, e muito principalmente os códices primitivos. Se o sentido é claro na Vulgata latina, não é necessário recorrer à versão donde foi imediatamente traduzido; se, porém, é ambíguo e obscuro, aconselha Santo Agostinho o recurso á versão hebraica ou grega, consoante o texto latino é vertido daquela ou desta língua. É manifesto que muito cuidada deve ser a circunspecção neste ponto, pois que — “é ofício do intérprete expor não o seu sentido, mas o do autor que interpreta”.

15. Ponderada atentamente, quando necessário, a genuína lição, está aberto o caminho para investigar e expor o sentido. Depois, a primeira indústria é observar as boas regras hermenêuticas, comumente usadas, e com tanto maior cuidado quanto mais viva e tenaz for a controvérsia com os adversários. Para tal efeito, é de necessidade ponderar o valor das palavras, o contexto, os lugares paralelos. . . revestindo todos estes meios hermenêuticos duma erudição a propósito, mas parcimoniosa; que não suceda malbaratar o tempo e o trabalho que se devia dedicar ao conhecimento dos livros divinos, ou que a acumulação de ideias sobre vários pontos vá prejudicar o aproveitamento dos alunos em vez de lhes ser auxílio.

Fonte: Portal Veritatis Splendor

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF