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sexta-feira, 18 de junho de 2021

Cooperativismo jesuítico-guarani, uma semente de fraternidade (Parte 1/3)

Caminhantes do percurso de 30 dias "Caminho das Missões",
em Jesus PY (Foro: José Roberto de Oliveira) 

Cooperativismo jesuítico-guarani

"Um processo de cooperação é extremamente importante para o mundo novo que nós sonhamos, para esse mundo mais igualitário, mais fraternal". A cooperação deve ser o fundamento do nosso mundo cristão, porque é um jeito de romper os individualismos que existem dentro de cada um de nós, afirma o pesquisador das Missões jesuítico-guaranis, uma "utopia" que existiu na América do Sul nos séculos XVII e XVIII.

Jackson Erpen – Cidade do Vaticano

Eles eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações. Apossava-se de todos o temor, e pelos apóstolos rea­lizavam-se numerosos prodígios e sinais. Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinhei­ro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Perseverantes e bem unidos, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E, cada dia, o Senhor acrescentava a seu número mais pessoas que eram salvas.” (Atos 2, 42-47)

A vivência das primeiras comunidades cristãs é referência até os dias de hoje para a vida na Igreja, em particular para as Ordens religiosas, Congregações e novas comunidades, mas também foi fonte de inspiração para outras experiências ao longo da história.

De fato, não faltaram na humanidade experiências, não propriamente religiosas, que almejavam uma sociedade, se não ideal, ao menos com relações mais fraternas em todos os níveis entre seus membros. Algo do gênero foi expresso por exemplo, na obra “Utopia” de Tomas Morus ou “A Nova Atlântida” de Francis Bacon. 

No mesmo sentido o Cooperativismo, surgido oficialmente em 1844 em Manchester, Inglaterra, com a criação da Rochdale Society of Equitable Pioneers (Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale), com uma proposta diferenciada especialmente para as relações de trabalho. O contexto era o da Revolução Industrial, que foi responsável por grandes transformações no processo produtivo e nas relações de trabalho, promovendo o surgimento da indústria e consolidando o processo da formação do capitalismo.

Cada vez mais autores, no entanto, a exemplo de George Holyoake, defendem que a experiência cooperativista é bem anterior, tendo sido praticada já nas Reduções Jesuítico-guaranis da América do Sul nos séculos XVII e XVIII, tese esta corroborada pelo estudioso gaúcho José Roberto de Oliveira*, que a define como “Cooperativismo cristão”.

Na entrevista ao Vatican News, o historiador e pesquisador santo-angelense fala da organização nas Reduções e das relações de trabalho, sempre marcadas pela “colaboração e cooperação”, aonde todos trabalhavam para um projeto, uma ideia, uma produção comum. Era uma organização inspirada na fé e marcada pela ideia da união e integração entre os membros da comunidade - e entre as comunidades - e a ajuda recíproca.

Essa organização cooperativada do trabalho e das relações nas Reduções era baseada na essência do mundo guarani - que “é uma essência de união dentro de suas aldeias”, que “funcionavam em um modelo extremamente coletivo” - unida à experiência dos jesuítas levada da Europa ao Novo Mundo. O resultado foi um grande desenvolvimento daquelas comunidades. Basta recordar a primeira fundição de aço da América do Sul na Redução de São João Batista, a exportação de produtos agrícolas, manufaturados e instrumentos musicais para todo o continente e para a Europa. 

Mas não só o trabalho e a produção marcavam a vida dessas comunidades, mas também o conhecimento, a educação. "Desde os meninos, os jovens", todos tinham que estudar, exatamente "porque era fundamental o processo de desenvolvimento Reducional", pontua José Roberto.

Questionado, o pesquisador foi enfático em defender o trabalho dos jesuítas e o sistema de Reduções como “uma via possível” aos indígenas “de não serem escravizados no modelo bandeirante (luso-brasileiro) ou das encomendas (espanhol)”.

Ao final de sua entrevista, o convite para que seja conhecida essa “experiência cristã, fundamental para o mundo que se construiu e que temos hoje, e que se Deus quiser, teremos no futuro um mundo mais irmão, mais fraterno, mais igualitário”:

Quando escrevi o livro “Pedido de perdão, triunfo da humanidade”, que é um livro sobre as Missões, um dos temas abordados foi exatamente esse do comparativismo que ocorreu nas Missões entre os anos 1600 e anos 1700. Dentro da herança social e econômica que ocorreu aqui nas Missões, é fundamental a gente estudar e aprofundar essa relação. Nós tivemos alguns textos agora no início dos anos 2000, especialmente o Vergílio Périus, que é presidente das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul - tem uma organização importante atrás - ele defende as ideias do estudioso jesuíta Rafael Carbonell de Masy e que é chegada a hora de contar a verdadeira história do início do cooperativismo no mundo. E ele defende, então, com bastante clareza, essas ideias de que no início da formação do período jesuítico-guarani – cerca de 1626-27 - se dá o início do processo de formação do cooperativismo no mundo.

Era um trabalho coletivo dos povos missioneiros, aonde jesuítas e indígenas guaranis, através do seu centro da formação histórica e cultural dos guaranis, aonde há união, fraternidade, a ideia da ajuda mútua – que  talvez não se use em muitos outros lugares essa expressão, mas é o “mutirão” exatamente a ajuda mútua - é a ideia que passou para esse mundo nativo e depois para a América Latina, a ideia do mutirão, aonde todos colaboram para um projeto comum, para uma ideia comum, para uma produção comum. Daí então, lá daquele período, inicia esse processo importante que é a ideia da cooperação e da integração. E veja que essa ideia fundamental de cristãos colaborando para projetos comuns, vem muito do centro da ideia do cristianismo, que é essa ideia de todos colaborarem para que tenhamos um processo comum, um projeto andando como sociedade, como família também, também como indivíduos, e num mundo com tantas necessidades como nós temos hoje, é uma saída bastante importante, distante da ideia digamos, de um capitalismo, ou lá de outro lado de um socialismo, exatamente no meio disso, ocupando o que tem de bom dos dois lados, a ideia da cooperação, a ideia do cooperativismo, então buscando aquelas ideias que uniram todo aquele processo da chegada do jesuítas - a partir especialmente de 1585, aqui nessa macrorregião, construindo naquele início, a partir de 1609 as Reduções – então vem o centro dessa ideia de que aqueles 159 anos da presença e da união entre jesuítas e guaranis, ali se forma uma ideia inicial e bastante abrangente do que foi aquele cooperativismo cristão na Améric

Cruz Missioneira - Foto: José Roberto de Oliveira

Como era a organização social e como se davam as relações de produção de trabalho nas Reduções Jesuíticas e se essa experiência cooperativista nas Reduções era mais devida à própria organização dos guaranis ou foi preponderantemente ligada à experiência de fé levada pelos jesuítas?

Veja que o processo de cooperação que ocorreu naquele período, é um processo ligado à vários setores da formação das comunidades jesuítico-guaranis, desde os princípios básicos de como todo o processo da produção, ele era organizado e contabilizado. Começa dessas ideias da organização do processo, de como se estabeleciam, por exemplo, a formação das lavouras, do momento onde toda aquela produção era guardada nos armazéns comunais, então todo o método sempre é um método de colaboração e cooperação. As próprias atividades, por exemplo, de infraestrutura, de criação, de grandes meios de produção, e toda infraestrutura, desde as casas, o processo de construção de igrejas, de colégios, ou seja, o conjunto todo sempre tem a ideia fundamental da cooperação.

Tem uma frase fundamental, digamos, daquele período: “Dê cada um de acordo com as suas capacidades, para cada um segundo suas necessidades”. Essa frase, ela coloca muito, digamos, o centro da ideia que fazia com que aquela máquina toda funcionasse perfeitamente. Então cada grupo familiar, cada cidadão, dentro daquele conjunto, colaborava com a capacidade que ele tinha. Uns eram especialistas na área da pecuária, outros da agricultura, outros por exemplo na indústria, fundidores, e tantos outros produtores de instrumentos musicais, cada um de acordo com a sua índole, de acordo com a sua capacidade. E depois, no retorno para as famílias, para cada um segundo as suas necessidades. Havia famílias maiores, menores. Então isso tudo se estabelecia de acordo com aquela estrutura existente e com as necessidades de cada um. Por exemplo, essas atividades todas de consumo. Então imagina, por exemplo, a distribuição diária da produção que se dava por toda a Redução. Desde, por exemplo, a organização dos serviços de transporte, o conjunto da organização dos trabalhos. Imagina por exemplo uma Redução maior, como São Miguel, que tinha entre sete e oito mil pessoas, como organizar diariamente toda essa produção, de homens, mulheres, jovens, cada um dentro do seu setor.

Imagem do Arquivo de Simancas, Espanha

Porque a gente não pode nunca esquecer o que foram as Missões. Então, foram um grande processo de exportação, de produção e de exportação, por exemplo a produção de mate, fumo, algodão, açúcar, tecidos de algodão, bordados, rendas, objetos, por exemplo, de torno, mesas, baús, madeiras, preciosas, né, que eram então feitas as esculturas e todo tipo de produção a partir disso. Na outra área peles, curtumes, arreios de couro, rosários, escapulários, frutas de todo o tipo, a produção por exemplo, animal/pecuária: cavalos, mulas, carneiros, e excedentes também de várias indústrias que tinham em cada Redução. Como a indústria, por exemplo, de instrumentos musicais, que muitos instrumentos as orquestras europeias trocaram com os instrumentos aqui das Missões, ali nos anos 1700, especialmente. Tudo era vendido para a Europa, Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé, Lima, ou seja, era um grande estado de produção também. E veja, que todo esse processo era um processo de organização cooperativada, Cooper, onde todos cooperavam para todos esses processos. Os próprios serviços sociais, o cuidar das pessoas.

Por exemplo, quando você pensa em um local como “cotiguaçu”, que está dentro de cada Redução Jesuítica, dentro das 30 Reduções havia um local chamado “cotiguaçu”, que é o quê? [Era o local] aonde toda a comunidade cuidava das viúvas, dos órfãos, daqueles que tinham necessidade, havia todo um processo de produção. O Tupambaé, que é a produção de Deus, aonde toda a comunidade produzia e obviamente resolvia suas questões internas, colaborava com as suas questões sociais. Então havia um grande modelo de cooperação geral. Os próprios serviços educacionais, por exemplo, também a mesma questão, o mesmo modelo, sempre de cooperação, aonde desde os meninos, os jovens, então todos tinham que estudar, exatamente porque era fundamental o processo de desenvolvimento Reducional, através do conhecimento.

Os serviços habitacionais, da mesma forma, as construções das casas, não se davam a casa de João, do Pedro, do Antônio, não era um processo individual, era um processo coletivo, aonde todos colaboravam com o todo, e aquele todo, então, ele ia multiplicando aqueles serviços, por exemplo, o serviço habitacional. E assim, então, a produção industrial, a agropecuária, o conjunto todo, sempre se dava no modelo de ajuda mútua, nesse modelo de mutirão, aonde todos cuidavam do conjunto, para que esse conjunto crescesse, se desenvolvesse e produzisse os bens de serviços. A gente nunca pode esquecer, que toda a produção era orientada para a satisfação das necessidades de todo. As pessoas, então, tinham suas necessidades internas, mas obviamente tinham também essa questão da visão do mercado, o que que estava se consumindo, né? Então, por exemplo, tem textos lindos, por exemplo, aqui em Santo Ângelo, a Redução de San Ángel Custodio, a produção aqui foi o grande produtor de erva-mate daquele momento do mundo, porque os grandes ervais estavam muito próximos da Redução de Santo Ângelo Custódio, então a erva-mate produzida aqui, então ela era - muitos dos nossos nativos colhiam essa erva, traziam para o processo industrial aqui e ela era vendida para vários lugares. Tem um texto que mostra, por exemplo, 70-80 carretas levando erva-mate até Lima, no Peru. Imagina, entre ida e vinda, uma viagem praticamente de um ano. Então, toda a circunstância, tudo era num processo de união, de integração. Por exemplo, a questão da propriedade, todo solo pertencia ao conjunto da comunidade, não havia um processo individualista, onde um era dono de um pedaço de terra. O conjunto todo trabalhava nesse processo de colaboração mútua, isso é muito importante e que mostra a essência do cooperativismo, a essência da cooperação como elemento fundamental de produção, distribuição e de organização do sistema.

Escultura guarani em madeira - Foto: José Roberto de Oliveira

Fonte: Vatican News

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF