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sexta-feira, 25 de junho de 2021

Providentissimus Deus (Parte 5/5)

Papa Leão XIII | Veritatis Splendor

PROVIDENTISSIMUS DEUSDO PAPA LEÃO XIII

SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS

Veneráveis irmãos, saúde e benção apostólica

30. Passemos agora à aplicação destas considerações às ciências afins, e nomeadamente á história. É para lamentar que muitos se exponham a grandes fadigas no estudo dos monumentos arqueológicos, dos costumes e instituições dos povos, e doutros assumptos análogos, mas não raro com o propósito de descobrir erros nos Livros sagrados e enfraquecer a sua autoridade divina. Outros há que se dedicam aos mesmos estudos, mas com animo exageradamente hostil e critério apaixonado. Confiam nos livros humanos e nos documentos da antiguidade, como se neles não poderá haver nem ténue sombra de erro, e negam crédito aos Livros da sagrada Escritura á mais leve aparência do erro e sem o mais superficial exame. Pode realmente admitir-se que nos códices escapassem algumas incorreções, devidas á incúria dos copistas, mas isto deve ser maduramente considerado e só admitido nos lugares onde o erro é evidente. Pode ainda admitir-se que seja duvidosa a genuína lição dalgum lugar e para esclarecimento da qual são de grande monta as regras duma boa hermenêutica, mas nunca será lícito ou restringir a inspiração unicamente a algumas partes da sagrada escritura, ou conceder que o autor sagrado errou. Também não pôde tolerar-se o expediente daqueles que julgam desembaraçar-se de dificuldades, não hesitando em conceder que só são divinamente inspirados os pontos de fé e de moral, porque erradamente pensam que, quando se trata de apurar a verdade dum conceito, não deve atender-se tanto ao que Deus disse como a razão por que o disse. E, na verdade, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo todos os livros que a Igreja recebeu como sagrados e canônicos, com todas as suas partes; ora é impossível que na inspiração divina haja erro, visto como a mesma inspiração só por si não somente exclui todo o erro, senão também que o exclui tão necessariamente quanto necessariamente repugna que Deus, Verdade suma, seja autor de erro algum.

31. Esta é a antiga e constante crença da Igreja, solenemente definida nos Concílios de Florença e Trento, confirmada e mais desenvolvidamente declarada no Concilio Vaticano, neste decreto peremptório: — Devem ser recebidos como sagrados e canônicos todos os livros do Velho e Novo Testamento, com todas as suas partes, consoante vêm referidos no decreto do mesmo Concilio (tridentino) e como se contém na antiga edição latina da Vulgata. A Igreja tem estes livros como sagrados e canônicos, não porque fossem compostos só por indústria humana e depois aprovados pela sua autoridade, nem ainda somente porque contém doutrina revelada e verdadeira, mas porque, escritos sob o fluxo do Espírito Santo, têm a Deus como autor. Nem se diga que o Espírito Santo se serviu de homens como de instrumentos para escrever, e que, por isso, os erros que porventura haja nas Escrituras se devem atribuir não a Deus, autor primário dos Livros santos, mas aos hagiógrafos. De feito, assim como o Espírito Santo excitou e moveu os autores sagrados a escrever, assim também lhes assistiu de modo que só escreveram, com pura intenção, fielmente e com verdade infalível, tudo o que lhes ordenou que escrevessem e só isso, aliás não seria Deus o autor de toda a Escritura sagrada. Este foi o sentir constante dos Santos Padres. “Pois que os hagiógrafos, diz Santo Agostinho, só escreveram o que o Espírito Santo lhes inspirou, nunca se pôde dizer que não foi Ele quem escreveu: os escritores sagrados, como membros, só escreveram o que a cabeça lhes ditava”. E S. Gregório Magno: “Ineptamente pergunta quem escreveu as Escrituras aquele que firmemente crê que é o Espírito Santo o seu autor. Escreveu esse que ditou o que se devia escrever; escreveu essa que inspirou a obra”. Desdiz-se daqui que pervertem a noção católica de inspiração divina, ou convertem Deus em autor de erro, os que julgam ser possível haver erros nos lugares autênticos dos Livros sagrados. E tão profundamente arraigada era a crença de todos os Padres e Doutores de que as sagradas Letras, tais como saíram da pena dos hagiógrafos, são absolutamente imunes de todo o erro, que procuram com igual engenho e piedade conciliar entre si os poucos lugares e são precisamente os que a nova crítica argue que parecem encontrados e contraditórios confessando unanimemente que aqueles livros, em toda a sua integridade e em todas as suas partes, são divinamente inspirados, e que, falando Deus pelos hagiógrafos, nada podia inspirar que não fosse verdade. Sirvam de lição para todos, aquelas palavras que o mesmo Santo Agostinho escreveu a S. Jeronimo — “Eu de mim confesso que da tua caridade aprendi a prestar unicamente aos livros das Escrituras, que ora denominamos canônicas, tal respeito e honra, que firmissimamente creio que nenhum dos seus autores caiu, ao escrevê-los, na mais leve sombra de erro. E, se eu achar naqueles livros algo que pareça encontrar a verdade, não hesitarei em confessar ou que o códice não é fiel, ou que o intérprete não alcançou o sentido do que estava escrito, ou que eu não logrei entendê-lo”.

32. Pugnar vantajosamente com os recursos de todas as ciências em prol da santidade das Escrituras empresa é muito superior ao que é justo esperar da indústria dos teólogos e intérpretes. É por isso muito para desejar que tomem a peito tal empresa os sábios católicos de reconhecida competência e autoridade. Nunca faltou à Igreja, mercê de Deus, e oxalá que sempre aumente para acrescentamento da fé, a glória de tais talentos. É sobre toda a ponderação conveniente que sejam em maior número e mais esforçados do que os inimigos da Bíblia, os defensores da verdade, porque nada há mais eficaz para persuadir o vulgo a render-lhe homenagem do que vê-la liberrimamente professada por homens eminentes em qualquer ciência. Além disso, ficará quebrada a audácia dos nossos detratores, e certamente não ousarão afirmar com tanta petulância que a ciência é incompatível com a fé, ao verem que homens eminentes em ciência prestam rendida homenagem à palavra de Deus. E, pois, que tantos serviços podem prestar a religião aqueles a quem a suma benignidade de Deus concedeu a graça da fé católica e o dom apreciável do talento, nesta febre de estudos por qualquer modo relacionados com as Escrituras, escolham aquele que mais se compadeça com as suas aptidões, e, versados nele, saiam a campo e repilam, que lhes vae nisso grande gloria, os ataques da ciência indigna de tal nome. Vem de molde para aqui e é-nos grato aprovar a benemérita deliberação dalguns católicos de criarem associações que subsidiem largamente e prestem todos os recursos a homens distintos em ciência, a fim de que cultivem aqueles estudos e promovam os seus progressos. Ótimo, em verdade, e muito oportuno nas circunstâncias atuais, este emprego de dinheiro. Quanto menor for o subsídio que os católicos podem esperar dos poderes públicos para o progresso dos seus estudos, tanto maior deve ser a liberalidade dos particulares; e saibam aqueles a quem Deus concedeu riquezas que bom uso fazem delias convertendo-as em defesa do tesouro da verdade revelada.

33. Para que todos estes trabalhos redundem em grande proveito dos estudos bíblicos, instem os eruditos nos princípios que deixamos estabelecidos, e creiam firmemente que Deus, criador e governador supremo de todas as cousas, é também o autor das Escrituras, e que, portanto, nada há na economia do universo, nem nos monumentos históricos que possa contradizê-las. Se, porém, parecer dar-se tal conflito, haja todo o cuidado em compô-lo, já recorrendo ao juízo prudente dos teólogos e intérpretes para apurar o que há de verdadeiro ou verosímil no lugar que se discute, já ponderando com novo cuidado as dificuldades que se aduzem. E não se deve levantar mão deste trabalho sem que desapareça a mínima sombra de conflito, porque, sendo impossível que a verdade se oponha á verdade, ou a interpretação das palavras do texto foi errónea ou a discussão dele mal dirigida. Se nenhuma destas hipóteses puder verificar-se, suspenda-se o juízo até que a verdade apareça. Muitas e graves acusações se levantaram, durante largo espaço de tempo, em nome das ciências, contra as Escrituras; e, todavia, caíram como vãs em completo olvido; vários foram os sentidos dados a certos lugares bíblicos salvo aos que propriamente pertencem à fé e a moral; e, contudo, foram ao depois interpretados com mais justeza e propriedade. É que o tempo mata o erro, mas «a verdade vive sempre e cada vez com mais pujança”. Ora, assim como nunca houve ninguém tão soberbo que se arrogasse o pleno conhecimento de toda a Escritura, quando o próprio Santo Agostinho confessava que era maior a sua ignorância do que a sua ciência da Bíblia, assim também, se algum texto encontrarmos de mui difícil explicação sigamos a norma tão moderada como prudente do mesmo Doutor : — “Melhor é sentir o espirito angustiado ao contemplar sinais cuja significação não conhece, mas que são úteis, do que, interpretando-os inutilmente, libertar-se do jugo da submissão para se precipitar nos laços do erro”. Se os que professam os estudos subsidiários da Bíblia seguirem discreta e fielmente estes Nossos conselhos e mandatos; se, escrevendo e ensinando, aproveitarem o fruto dos seus estudos na redução dos inimigos da verdade e em precaver a juventude contra os danos da fé, então, enfim, poderão exultar de jubilo por dignamente servirem as sagradas Letras e prestarem a fé católica um serviço tal como a Igreja tem direito a esperar da piedade e ciência de seus filhos.

34. Estes são, veneráveis irmãos, os mandatos e exortações que, obedecendo á voz de Deus, julgamos oportuno dirigir-vos acerca dos estudos bíblicos. Está da vossa parte agora procurar que sejam fielmente guardados e observados com o acatamento que é de justiça e de modo que brilhe cada vez mais a devida gratidão para com Deus por ter comunicado ao gênero humano os tesouros da sua sabedoria; e que a suspirada vantagem daqueles estudos redunde sobretudo em proveito da instrução dos jovens aspirantes ao sacerdócio, pois são eles objeto de grande solicitude Nossa e a esperança da Igreja. Com a vossa autoridade e exortações trabalhai com animo varonil, para que nos seminários e academias sujeitas á vossa obediência, os estudos bíblicos tenham o lugar de honra que lhe pertence e progridam. Praza aos céus que floresçam, sob a direção da Igreja, segundo os salutares documentos e exemplos dos Santos Padres e louvável costume dos nossos maiores: que no decurso dos tempos alcancem tais incrementos que redundem em defesa e gloria da verdade católica, divinamente revelada para salvação perene dos povos.

35. Exortamos, finalmente, com paternal caridade, todos os alunos e ministros da Igreja que estudem as sagradas Letras sempre com sumo afeto, reverencia e piedade. Nunca se poderá lograr salutarmente, como é de necessidade, a inteligência das Escrituras sem renunciar a soberba da ciência terrena e perseverar no santo exercício da sabedoria que vem do alto. Iniciada nesta silencia, ilustrada e fortalecida por ela, a inteligência terá admirável luz para conhecer e evitar o que há de mau na silencia humana e converter os seus sólidos frutos noutros tantos meios de salvação eterna. E a alma inflamada em zelo aspirará com mais veemência aos bens inefáveis da virtude e do amor divino: — Bem-aventurados os que investigam os testemunhos de Deus, e com todo o coração o buscam. Animado com a esperança do auxílio divino e confiado na vossa solicitude pastoral, paternalmente concedemos no Senhor a benção Apostólica, penhor de dons celestes e testemunha da Nossa particular benevolência, a vós, a todo o vosso clero e fiéis.

Dada em Roma, em S. Pedro, aos 18 de novembro de 1893, ano decimo sexto do Nosso Pontificado.

Papa Leão XIII


Fonte: Portal Veritatis Splendor

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF