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domingo, 25 de junho de 2023

“A fé exige o realismo do acontecimento” (2/6)

Joseph Ratzinger (30Giorni)

Arquivo 30Dias - 06/2003

“A fé exige o realismo do acontecimento”

“A opinião de que a fé, enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos fatos históricos e deve deixar tudo isso aos historiadores, é gnosticismo: esta opinião desencarna a fé e a reduz a pura idéia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário, exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento. Um Deus que não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia”. O discurso do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé por ocasião do centenário da constituição da Pontifícia Comissão Bíblica.

de Joseph Ratzinger
A ferida de 1912 nunca desapareceu totalmente, apesar de ele poder agora ensinar a sua matéria praticamente sem problemas e de ser apoiado pelo entusiasmo dos seus estudantes, aos quais conseguia transmitir a sua paixão pelo Novo Testamento e uma correta interpretação deste. De vez em quando, nas suas lições vinham-lhe em mente recordações do passado. Ainda me recordo sobretudo de uma expressão que ele pronunciou em 1948 ou em 1949. Disse que já podia seguir livremente a sua consciência de historiador, mas que ainda não se tinha chegado à completa liberdade da exegese que ele sonhava. Disse também que provavelmente não teria chegado a ver isto, mas que pelo menos, como Moisés no Monte Nebo, desejava poder lançar o olhar sobre a Terra Prometida de uma exegese livre de qualquer forma de controle e condicionamento do Magistério. Sentimos que no coração deste homem culto, que levava uma vida sacerdotal exemplar, fundada na fé da Igreja, pesava não só aquele decreto da Congregação Consistorial, mas que também os vários decretos da Comissão Bíblica – sobre a autenticidade moisaica do Pentateuco (1906), sobre o caráter histórico dos primeiros três capítulos do Gênesis (1909), sobre autores e sobre a época de composição dos Salmos (1910), sobre Marcos e Lucas (1912), sobre a questão sinóptica (1912), e assim por diante – impediam o seu trabalho de exegeta com obstáculos que ele considerava indevidos. Ainda persistia a impressão de que os exegetas católicos, devido a estas decisões magisteriais, fossem impedidos de desempenhar um trabalho científico sem restrições, e que desta forma a exegese católica, em relação à protestante, nunca pudesse estar completamente ao nível dos tempos e a sua seriedade científica fosse, de certa forma e com razão, posta em dúvida pelos protestantes. Naturalmente influía também a convicção de que um trabalho rigorosamente histórico fosse capaz de certificar de maneira credível os dados de fato objetivos da história, aliás, que este fosse o único caminho possível para compreender no seu sentido próprio os livros bíblicos, os quais, precisamente, são livros históricos. Dava por certa a credibilidade e a inequivocabilidade do método histórico; não lhe vinha minimamente nem sequer a idéia de que também neste método entrassem em jogo pressupostos filosóficos e que pudesse ser necessária uma reflexão sobre as implicações filosóficas do método histórico. Para ele, como para muitos colegas seus, a filosofia parecia um elemento que incomodava, algo que só podia poluir a objetividade pura do trabalho histórico. Não se lhe perspectivava a questão hermenêutica, ou seja, não se interrogava em que medida o horizonte de quem pergunta determine o acesso ao texto, tornando necessário esclarecer, antes de tudo, qual é o método justo de perguntar e de que forma é possível purificar o próprio perguntar. Precisamente por isto, o Monte Nebo teria certamente reservado algumas surpresas totalmente fora do seu horizonte.

Agora gostaria de tentar subir, por assim dizer, com ele ao Monte Nebo para observar, a partir da perspectiva de então, a terra que atravessamos nos últimos cinqüenta anos. A respeito disto, poderia ser útil recordar a experiência de Moisés. O capítulo 3º do Deuteronômio descreve como no Monte Nebo é concedido a Moisés lançar um olhar sobre a Terra Prometida, que ele vê em toda a sua extensão. O olhar que lhe é concedido é, por assim dizer, um olhar puramente geográfico e não histórico. Contudo, poder-se-ia dizer que o capítulo 28 do mesmo livro apresenta um olhar não sobre a geografia mas sobre a história futura, na e com a Terra, e que aquele capítulo oferece uma perspectiva muito diferente, muito menos confortadora: “O Senhor dispersar-te-á entre todos os povos de uma extremidade à outra da terra... E, até no meio dessas nações, não encontrarás repouso nem ponto de apoio para a planta dos teus pés” (Dt 28, 64s). Poder-se-ia resumir o que Moisés via nesta visão interior da seguinte forma: a liberdade pode destruir-se a si mesma; quando perde o seu critério intrínseco suprime-se a si mesma.

O discurso do cardeal Ratzinger
foi pronunciado em língua italiana
no Augustinianum em 29 de abril de 2003.

Fonte: http://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF