Pesquisadores buscam novos caminhos para combater o
alcoolismo
Cientistas estudam como o cérebro reage aos estímulos do álcool e buscam alternativas para ajudar na regulação emocional. Um dos objetivos principais é conseguir amenizar os sintomas da abstinência.
O álcool é responsável por cerca de 3 milhões de mortes
anuais e causa cerca de 200 tipos de doenças e lesões, segundo a
Organização Mundial da Saúde. Diante desse cenário, pesquisadores buscam
compreender melhor quais mecanismos cerebrais são ativados em resposta à bebida
e ao vício, na busca de um caminho eficaz para combater o alcoolismo e
problemas associados.
Um estudo da Scripps Research, nos Estados Unidos, publicado
recentemente na revista Biological Psychiatry, revelou mais sobre o
comportamento de recaída para bebidas ao identificar que uma área específica do
cérebro —o núcleo paraventricular do tálamo (PVT)— é superativada quando o
consumo de álcool é associado ao alívio dos sintomas de abstinência. Essa região,
tradicionalmente ligada ao estresse e à ansiedade, desempenha um papel
essencial no ciclo do vício, não somente ao promover a busca por prazer, mas
também ao amenizar o sofrimento emocional causado pela falta da substância.
"O que torna o vício tão difícil de largar é que as
pessoas não estão simplesmente buscando uma sensação de euforia", afirma
Friedbert Weiss, professor de neurociência na Scripps Research e autor sênior
do estudo. "Elas também estão tentando se livrar de estados negativos
poderosos, como o estresse e a ansiedade da abstinência. O trabalho evidencia
quais sistemas cerebrais são responsáveis por reter esse tipo de aprendizado, e
por que isso pode tornar a recaída tão persistente."
Conforme Thiago Taya, neurologista e neuroimunologista do
Hospital Sírio-Libanês, o álcool age reduzindo a atividade cerebral, fazendo a
pessoa se desinibir socialmente, porém o que parece ser uma fuga do
estresse é, na verdade, uma camuflagem. "A maior ativação do PVT ligada ao
consumo de álcool pode se relacionar a uma sensação cada vez mais expressiva de
alívio, prazer e recompensa ao ingerir a substância, e um sentimento contrário
cada vez pior ao ficar sem a bebida, acentuando o vício."
Conforme o estudo, feito com modelos animais, a
hiperativação dessa área é algo lógico diante da falta de consumo da
substância. "Os efeitos desagradáveis da abstinência estão fortemente
associados à ansiedade, e o álcool proporciona alívio da agonia desse estado
estressante", destacam os autores.
Manipular o cerebelo
Em paralelo, um trabalho conduzido pela Universidade
Estadual de Washington, também nos EUA, oferece uma abordagem diferente sobre a
abstinência de álcool. Os pesquisadores se concentraram no cerebelo, área do
cérebro tradicionalmente associada ao controle motor, mas que tem se mostrado
fundamental também na regulação emocional e no vício.
"Metade dos neurônios do cérebro está no
cerebelo", afirma David Rossi, autor sênior do estudo, professor associado
da universidade. "Está cada vez mais claro que essa região está envolvida
em muito mais do que somente o controle motor — ela desempenha um papel no
vício, na regulação emocional e até mesmo no engajamento social."
Ao manipular essa região do cérebro em camundongos, os
cientistas conseguiram aliviar tanto os sintomas físicos quanto os emocionais
da abstinência. O trabalho sugere que o cerebelo pode ser uma nova via
terapêutica para tratar o alcoolismo de forma mais eficaz, sem os efeitos
colaterais das abordagens atuais.
Conforme Maciel Pontes, médico neurologista do Hospital de
Base, no Distrito Federal, no caso da abstinência, essa região é central porque
se adapta ao consumo crônico da substância. "Durante a exposição
prolongada à bebida, os circuitos cerebelares se ajustam para funcionar nesse
ambiente, mas, quando o álcool é retirado, sobra um estado de hiperatividade,
que contribui diretamente para os sintomas físicos e emocionais."
O especialista acrescentou que o cerebelo atua na modulação
do estresse e do sofrimento, conectando-se a circuitos cerebrais ligados às
emoções. "Essa participação amplia sua relevância, mostrando que ele é um
elo essencial na compreensão da dependência."
Tecnologia como aliada
O combate ao alcoolismo tem sido um desafio complexo. Assim,
tanto intervenções tecnológicas quanto medicamentosas têm ganhado destaque na
ciência. Trabalhos recentes apontam caminhos inovadores para combater o vício,
pelo ajuste de neurotransmissores no cérebro e mesmo por meio de dispositivos
vestíveis.
Pesquisadores do Mass General Brigham, nos Estados Unidos,
publicaram na revista JAMA Psychiatry um estudo que revelou
como um dispositivo vestível pode ser uma ferramenta poderosa contra vícios. A
tecnologia, que utiliza uma espécie de adesivo inteligente chamado Lief HRVB
Smart Patch, ajuda os usuários a monitorar e controlar o estresse e a ansiedade,
fatores ligados ao desejo de consumir drogas e álcool.
A invenção detecta variações na frequência cardíaca,
refletindo o estresse e o impulso de consumo, e dá sinais para que a pessoa
faça ajustes respiratórios e diminua a ansiedade. David Eddie, psicólogo do
Mass General Brigham e autor do estudo, explica que uma das grandes
dificuldades durante a reabilitação vício é a falta de autoconsciência
emocional. "Pessoas em recuperação podem vivenciar muito estresse, mas
muitas vezes não têm plena consciência disso ou não o gerenciam
proativamente."
O dispositivo reduziu significativamente a vontade de
consumir álcool e drogas, com participantes relatando até 64% menos
probabilidade de usar substâncias. O estudo, que se concentrou em pessoas no
primeiro ano de abstinência, demonstrou o impacto positivo da tecnologia na
recuperação precoce.
Para Helena Moura, psiquiatra da Apuí Saúde Mental e
professora de medicina da Universidade de Brasília, o diferencial do tratamento
é atuar no quadro de desregulação do estresse. "Essa é uma demanda de
longo prazo dos pacientes, porque a desintoxicação e o manejo da síndrome de
abstinência são resolvidos ali relativamente rápido, mas esses sintomas
persistem, às vezes por meses, e não respondem bem a tratamentos usuais".
Freio para os impulsos
Enquanto a tecnologia promete complementar os métodos
tradicionais, pesquisadores da Universidade do Colorado, nos EUA, estão
explorando novas abordagens farmacológicas para tratar o vício. Os tratamentos
atuais focam em reduzir o prazer imediato que o álcool proporciona ou diminuir
a frequência do desejo de beber, mas os cientistas acreditam que é possível
mexer no comportamento impulsivo.
A resposta pode estar no córtex pré-frontal, área do cérebro
relacionada ao controle executivo e à regulação das emoções. O estudo,
publicado na revista Biological Psychiatry, testou o tolcapona —
medicamento desenvolvido para a doença de Parkinson. A pesquisa revelou que o
remédio, ao aumentar os níveis de dopamina nessa região-chave, ajudou os
participantes a melhorar o controle sobre seus impulsos. Durante os testes, os
voluntários tiveram desempenho superior em uma tarefa que exigia autocontrole.
Ábner Prado, coordenador médico do pronto-socorro do
Instituto de Neurologia de Goiânia, destaca que o córtex pré-frontal funciona
como um "freio" para os impulsos. "Quando é acionado, ajuda a
pessoa a avaliar melhor as consequências e evitar comportamentos automáticos,
como beber sem pensar. Fortalecer essa região de alguma maneira pode devolver à
pessoa maior capacidade de controle."
Ainda durante o ensaio, os voluntários que tomaram tolcapona
relataram uma redução no consumo de álcool durante a semana em que usaram o
medicamento. "A maior ativação do córtex pré-frontal foi associada a menos
consumo de álcool, sugerindo que o mecanismo de maior controle estava afetando
o comportamento deles", reforça Schacht. (IA)
Prisão mental
Inicialmente, o álcool parece inofensivo, por ser um hábito
social que traz certa sensação de prazer e desinibição, mas, com o uso
frequente, começa a interferir diretamente no córtex pré-frontal, afetando a
tomada de decisões e o controle inibitório. Com o vício evoluindo, o sistema
límbico — relacionado à regulação emocional, à sensação de recompensa ao
controle da motivação— é afetado, tornando o ato de ingerir bebida alcoólica
mais recompensador ainda, gerando uma sensação de motivação crescente para consumir
a substância e decrescente para outras atividades.
Esse vício funciona como um comportamento cerebral pendular:
quanto mais frequentemente você consome, mais sensação de recompensa você tem
ao ingerir e pior é sua condição ao ficar sem beber, gerando uma espécie de
prisão mental progressiva. Então, mesmo que a pessoa tenha consciência do
prejuízo à saúde, ela não consegue se desvincular. Além de que, por afetar a
tomada de decisões e o controle inibitório, o paciente fica mais vulnerável às
tentações e não consegue controlar o vício.
Thiago Taya, neurologista e neuroimunologista do Hospital
Sírio-Libanês
Risco aumentado de bactérias no fígado
Cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade da
Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, descobriram que o consumo crônico
de álcool prejudica a produção de uma proteína-chave, conhecida como mAChR4,
que ajuda a manter as bactérias intestinais no órgão correto. Sem essa
barreira, esses microrganismos intestinais podem passar mais facilmente para o
fígado, agravando os danos hepáticos causados pelo álcool. A descoberta foi
feita ao avaliar uma combinação de biópsias de fígado humano e modelos animais.
Segundo a publicação, feita na revista Nature, medicamentos que têm como alvo o
mAChR4 estão sendo testados em ensaios clínicos para esquizofrenia, e os
pesquisadores sugerem que esses remédios podem ser facilmente reaproveitados
para tratar lesões hepáticas. No entanto, novas pesquisas são necessárias para
demonstrar esse potencial.
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