TEOLOGIA
Introdução à História da Teologia Ortodoxa
Capítulo 10 da Obra «Os Grandes Teólogos do Século Vinte» -
Vol. 2 - Os Teólogos protestantes e ortodoxos.
Battista MONDIN
Teólogo católico
Os estudiosos não estão de acordo sobre a divisão da
história da teologia ortodoxa. Segundo Jugie, não existem na teologia oriental
escolas teológicas e sistemas que possam oferecer um “fundamentum
divisionis”[1].
Segundo outros estudiosos, ao contrário, há razões de tempo, lugar e outros
gêneros que justificam sua divisão em dois ou mais períodos. Também somos dessa
opinião, parecendo-nos justo dividir toda a história bimilenar da teologia
oriental em sete grandes períodos.
VII. O Renascimento Moderno (séculos XIX-XX)
Nos séculos XIX e XX, a teologia ortodoxa se renova
sobretudo em duas nações, Grécia e Rússia. Neste último país, nem mesmo a
revolução bolchevique, com todas as suas dolorosas consequências para a Igreja,
conseguiu impedir o grande florescimento teológico em curso no início do nosso
século, ainda que tenha obrigado quase todos os mais insignes cultores da
ciência sagrada a buscarem refúgio no exterior, pois eles reconstituíram em
Paris e Nova York dois centros de teologia ortodoxa dotados de uma prodigiosa
vitalidade.
Podemos dividir a história contemporânea da teologia
ortodoxa em três partes: russa, grega e da Diáspora. Vamos examiná-las uma por
uma, começando pela russa.
1. O renascimento russo
No início do século XIX, o epicentro da teologia ortodoxa
desloca-se de Kiev para Moscou. A faculdade de teologia da capital começa a
ascender durante o patriarcado de Filarete Drozdov (+ 1867).
As principais causas do renascimento foram duas: um maior
contato com as fontes bíblicas e patrísticas (em 1812, foi fundada a Sociedade
Bíblica Russa) e a introdução da língua russa em lugar do latim. Com o
desaparecimento do latim, decai também a influência escolástica.
Os maiores artífices da renovação antes da Revolução Russa
foram quatro: o metropolita Macário, Khomiakov, Svetlov e Soloviev.
O metropolita Macário (o seu nome de nascimento era Mikhail
Petrovic Bulgakov) é o autor de uma famosa História da Igreja Russa em
doze volumes e de uma Teologia Dogmática Ortodoxa, sendo que esta
última chegou a ser premiada pela Academia de Ciências de Moscou. Ela é
considerada por N. Glubokovski, um historiador da teologia russa, como “uma
grandiosa tentativa de classificação científica do material teológico acumulado
no passado”[9]. A obra foi adotada não só como manual
para a formação de padres ortodoxos na Rússia, mas também como critério de
ortodoxia. Com efeito, as posições de Macário correspondiam exatamente às do
Santo Sínodo de Moscou no rígido conservadorismo, na interpretação literal da
Escritura, no tom apologético e numa forte intolerância para com as outras
confissões. Por esse motivo, além da escassa originalidade da obra, os teólogos
russos deste século julgam-na bem menos favoravelmente do que seus colegas do
século passado[10].
Enquanto o metropolita Macário é o expoente máximo da
teologia “oficial”, Alexis Khomiakov (+ 1860) é o teólogo mais representativo
do movimento eslavófilo. Esse movimento nasceu como reação contra a
ocidentalização da intelectualidade. Para combater esta ocidentalização os
“eslavófilos” recorriam ao velho mito do messianismo russo e ao pan-eslavismo
religioso, rujas raízes haviam penetrado na consciência nacional desde os
tempos dos grandes tzares do século XVI.
Teórico e teólogo do “eslavofilismo”, Khomiakov afirma que a
antropologia, a sociologia e a teologia orientais estão separadas do
“racionalismo cristão” do Ocidente por uma oposição radical. Contra o caráter
jurídico dos latinos, exalta a Sobornost’ eslava. A nova
eclesiologia de que ele é fundador baseia-se toda na ideia da comunidade
unânime de todos os fiéis, isto é, a Sobornost’. Em sua opinião, é
nela que residem a unidade e a infalibilidade da Igreja. Consequentemente, não
pode haver nenhuma diferença essencial entre Igreja docente e Igreja discente,
entre hierarquia e povo: toda decisão da hierarquia, para tornar-se autorizada
e infalível, deve ser aceita por todo o povo. Assim, segundo Khomiakov, viria a
realizar-se na Igreja Ortodoxa aquela perfeita harmonia entre liberdade e união
que não seria possível no catolicismo nem no protestantismo; no primeiro,
porque a união suprime a liberdade; no segundo, porque a liberdade suprime a
união. No século passado, essas teorias de Khomiakov foram duramente criticadas
e condenadas pela hierarquia ortodoxa e seu autor foi asperamente censurado. A
publicação de suas obras só foi autorizada vinte anos depois de sua morte.
Hoje, porém, a teologia de Khomiakov é muito difundida entre os teólogos
ortodoxos.
Pavel I. Svetlov (+ 1942) foi quem mais contribuiu para
consolidar e difundir as doutrinas de Khomiakov. Suas obras mais importantes
são: A Doutrina Cristã Apresentada em Forma Apologética e A
Ideia do Reino de Deus no seu Significado Relativo à Concepção Cristã do Mundo.
Ele assume uma posição conciliatória nos pontos controversos entre ortodoxos e
latinos, como por exemplo na questão da processão do Espírito, em
que ele não encontra nenhuma diferença substancial entre as doutrinas grega e
latina, e na questão da Imaculada Conceição. Svetlov critica
particularmente os teólogos ortodoxos que consideram que as confissões
não-ortodoxas não pertencem à Igreja de Cristo. Contra essa tese, afirma que “as
Igrejas Oriental e Ocidental não são dois corpos completamente separados um do
outro e mutuamente estranhos, mas simplesmente partes do único e verdadeiro
Corpo de Cristo: a Igreja universal; ambas as comunidades cristãs estão da
mesma forma unidas a Cristo através da sucessão apostólica, da verdadeira fé e
dos sacramentos. Portanto, em consequência da aparente divisão, a Igreja
universal parece subsistir em dois corpos, enquanto, de fato, é uma só. O
obstáculo à sua reunião é constituído pela ideia errada, profundamente radicada
em ambas as partes da cristandade, de que depois da divisão só uma parte se
identifique com o todo, com a Igreja universal… As diferenças entre as duas
Igrejas não são de substância, mas foram aumentadas pela inimizade e pela
polêmica; frequentemente, são apenas aparentes”[11].
Soloviev (+ 1900), além de grande filósofo, foi um dos mais
válidos representantes do renascimento teológico ortodoxo. Sua obra mais
importante são as Lições sobre a Divino-humanidade, um
profundo ensaio cristológico no qual a Encarnação é concebida como um evento
que tem lugar no próprio coração do ser, sendo o seu evento interior, e depois,
por extensão, se amplia a tudo o que é humano, colocando a história sob o signo
da “cristificação” universal. De tal modo, o Cristo-Deus-Homem se cumpre no
Cristo-Deus-Humanidade. Em harmonia com esse “teandrismo“, Soloviev
elaborou uma “sofiologia” que, através das malhas do idealismo alemão e
de um misticismo por vezes equívoco, tenta reler as afirmações da Bíblia e de
Orígenes sobre a Sabedoria, que ele vê sair da Trindade para criar o mundo,
divinizá-lo e reintegrá-lo em sua fonte. Florensky e Bulgakov retomariam depois
por sua conta os elementos essenciais dessa teoria, esforçando-se por
libertá-la dos seus elementos cabalísticos e gnósticos.
3. O renascimento grego
O ponto de partida do renascimento da teologia ortodoxa na
Grécia foi a fundação da Universidade de Atenas, poucos anos depois da expulsão
dos turcos. A Faculdade de Teologia ocupava o lugar de honra entre as quatro
faculdades com que teve início a nova universidade. Num primeiro momento, a
principal função da faculdade foi a formação do clero e dos mestres de religião
no novo Estado. Em seguida, contudo, passou-se a cuidar sempre mais da pesquisa
científica. Essa orientação favoreceu consideravelmente o despertar da ciência
teológica. Já no século XIX surgiram alguns autores de valor, como Constantino
Kontogonis e Nicola Damalas. Este último é autor de um livro, Princípios
Científicos e Eclesiásticos da Teologia Ortodoxa, que ainda hoje goza
de grande fama.
Mas, foi sobretudo neste século que a Grécia produziu uma
série respeitável de grandes teólogos. O primeiro de todos foi Christos
Antroutsos (+ 1935), do qual Bratsiotis escreveu:
“Em minha opinião pessoal e interpretando também a opinião
de todos os cientistas imparciais, posso assegurar que nossa escola teológica
ainda não viu um teólogo tão capaz e genial e nunca ouviu um mestre tão
metódico e atraente como ele”[13].
Suas inúmeras obras teológicas e a qualidade de suas
monografias, estudos e discursos científicos constituem a demonstração mais
eloquente da fecundidade de seu gênio. No Simbolismo do Ponto de Vista
Ortodoxo, uma de suas obras mais originais, através de um penetrante estudo
da Sagrada Escritura e dos Padres, ele procura identificar e descrever as
diferenças entre as principais Igrejas e precisar o pensamento da Igreja
Ortodoxa.
Outros teólogos importantes são Amilcas Alivizatos,
Panaghiotis Bratsiotis, Panaghiotis Trembelas, João Karmiris e Nikos Nissiotis.
Amilcas Alivizatos, além de teólogo, é também um personagem
bem conhecido tanto na Grécia como no resto da Europa. Ocupou numerosos e
variados cargos nos governos do seu país. Teve um papel determinante na
preparação da Carta Constitucional de 1923. Participou ativamente
de muitas assembleias ecumênicas. Suas maiores obras são: A
Continuidade Ininterrupta da Igreja Ortodoxa Grega com a Igreja Indivisa (1934); Posição
Contemporânea da Teologia Ortodoxa (1931 ); O Culto na Igreja
Ortodoxa (1952). Quanto ao pensamento, “Alivizatos é o descendente
espiritual da tradição patrística liberal dos tempos em que florescia o
cristianismo helênico, da Ortodoxia e do espírito ecumênico da Igreja antiga”[14].
Panaghiotis Bratsiotis é eminente sobretudo como exegeta. De
1929 a 1960, ocupou a cátedra de Introdução e Interpretação do Antigo
Testamento. Suas principais obras são: O Judaísmo Palestino na
Palestina (192O); João Batista como Profeta (1921); Estudos
sobre os LXX (1926); Introdução ao Antigo Testamento (1937); Comentário
a Isaías (1956).
Panaghiotis Trembelas, talento multiforme e fecundo não
negligenciou nenhum campo do saber teológico, da apologética à teologia
fundamental, da exegese à liturgia, da moral à dogmática. Neste último campo,
sua principal obra é A Dogmática da Igreja Católica Ortodoxa, em
três volumes, publicados entre 1959 e 1961. Nela, o autor se propõe a dar a
conhecer o espírito dos Santos Padres; na realidade, entre suas qualidades, a
sua dogmática tem a qualidade de ser verdadeiramente patrística. Um mérito de
Trembelas foi ter renovado a exposição da teologia dogmática grega, aprofundada
de há muito pelos trabalhos de Androutsos, os quais, porém, já se encontravam
um pouco ultrapassados.
João Karmiris é um teólogo que se formou no Ocidente, nas
universidades de Berlirh e Bonn, tendo começado a conquistar fama nos ambientes
internacionais com a tradução neo-helênica da Summa Theologiae de
são Tomás de Aquino. São bastante numerosas suas publicações no campo
histórico-dogmático. A sua obra-prima é A Tradição Histórica e
Simbólica da Igreja Católica Ortodoxa, em dois volumes, publicados
respectivamente em 1952 e 1953. Seus estudos “esclareceram a posição da
Igreja Ortodoxa diante das várias tentativas dos Reformadores e fortaleceram o
zelo e a altivez dos ortodoxos”[15].
Nikos A. Nissiotis (nascido em Atenas em 1925) está
exercendo considerável influência especialmente nos ambientes ecumênicos.
Atualmente, exerce o cargo de diretor do Instituto Ecumênico de Bossey (Suíça).
Sua atividade teológica inspira-se constantemente nas exigências de sua função:
o estudo dos problemas ecumênicos mais importantes do momento. Durante e depois
do Concílio Vaticano II, granjeou apreço por suas penetrantes análises dos
documentos conciliares desde o ponto de vista ortodoxo. Sua principal obra
intitula-se O Problema da Fé em Kierkegaard e no Existencialismo
Moderno.
E assim concluímos nossa visão panorâmica da história da
Teologia Oriental. Breve síntese que, no entanto, não nos impediu de constatar
como essa história é rica e variada. É bem verdade que ela teve momentos de
pausa e declínio, como qualquer outra história, mas também teve longos períodos
de grande esplendor, principalmente o período patrístico e neopatrístico e,
depois, o período moderno e contemporâneo.
Neste século, a teologia ortodoxa registrou um
reflorescimento semelhante ao das teologias irmãs, a católica e a protestante.
Seus Bulgakov, Berdiaev, Florovsky e Lossky não são menores do que os nossos
Rahner, Congar, Guardini, de Lubac e Chenu.
Esse é um fato bastante prometedor para o futuro da
Cristandade. Faz brotar a esperança de que, por meio do diálogo entre os
grandes teólogos e mediante o confronto de suas posições, as Igrejas Católica,
Protestante e Ortodoxa possam reencontrar a unidade na fé.
Notas:
[1] M. JUGIE, Theologia Dogmatica
Christianorum Orientalium ab Ecclesia Cathotica Dissidentium, Paris,
1926-1935, v. 11, p. 18, nota.
[9] N. GLUBOKOVSKI, Russische
Theologische Wissenschaft in lhrer Geschichtlichen Entwicklung uni lhren
Heutigen Zustand, Varsóvia, 1928, p. 4.
[10] G. FLOROVSKY mostra-se severo em
relação a Macário na obra Os Caminhos da teologia Russa (em ruSSO). Cf. pp.
222ss. 9. Os grandes teólogos … Vol. 2.
[11] Citação em J. CHRYSOSTOMUS, O.c., pp.
105-106.
[12] N. BERDIAEV, Autocoscienza,
Esperimento di Autobiografia Filosofica, Paris, 1949, p. 99.
[13] Citado por P. DUMONT, “La
Teologia Greca Odierna” em Oriente Cristiano, 1966, n. I, pp. 36-37.
[14] G. KONIDARIS, citado por P.
DUMONT, “La Teologia Greca Odierna” em Oriente Cristiano,
1967, n. 4, p. 20.
[15] Idem, ibidem, n. 4, p. 53.
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