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domingo, 12 de março de 2023

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES (15/16)

O cristianismo e as religiões | Lausanne Movement

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES

(1997)

III.4. Diálogo inter-religioso e mistério de salvação

105. A partir do Vaticano II, a Igreja católica se comprometeu de modo decidido no diálogo inter-religioso (3); esse documento foi elaborado com o olhar posto nesse diálogo, embora não seja esse seu tema fundamental. O estado da questão a respeito do cristianismo e sua relação com as religiões, os pressupostos teológicos e as conseqüências que deles se deduzem sobre o valor salvífico das religiões, a revelação divina, são reflexões destinadas a iluminar os cristãos em seus diálogos com os fiéis de outras religiões.

106. Que esses diálogos se realizem entre especialistas, ou se deem na vida cotidiana, compromete com as palavras ou os comportamentos não só as pessoas que dialogam, mas também, e em primeiro lugar, o Deus que professam. O diálogo inter-religioso como tal comporta três participantes. Por isso, o cristão é interpelado nele por duas questões fundamentais, das quais depende o sentido do próprio diálogo: o sentido de Deus e o sentido do homem.

a. O sentido de Deus

107. No diálogo inter-religioso, cada um dos participantes se expressa de fato segundo determinado sentido de Deus; de maneira implícita levanta ao outro a pergunta: qual é seu Deus? O cristão não pode ouvir e compreender o outro sem fazer a si mesmo essa pergunta. A teologia cristã é mais que um discurso sobre Deus: trata de falar de Deus em linguagem humana como o Logos encarnado o dá a conhecer (cf. Jo 1,18; 17,3). Daí a necessidade de alguns discernimentos no diálogo:

108. a) Se se fala da divindade como valor transcendente e absoluto, trata-se de uma Realidade impessoal, ou de um Ser pessoal? b) A transcendência de Deus significa que ele é um mito intemporal, ou essa transcendência é compatível com a ação divina na história com os homens? c) Conhece-se a Deus só pela razão, ou se o conhece também por meio da fé pela qual ele se revela aos homens? d) Visto que uma "religião" é certa relação entre Deus e o homem, expressa um Deus à imagem do homem ou implica que o homem é à imagem de Deus? e) Se se admite que Deus é único como exigência da razão, que significa professar que é Uno? Um Deus monopessoal é aceitável pela razão, porém somente em sua autorrevelação em Cristo o mistério de Deus pode ser acolhido pela fé como Uni-Trindade consubstancial e indivisível. Esse discernimento é capital em razão das conseqüências que daí se desprendem para a antropologia e a sociologia inerentes a cada religião, f) As religiões reconhecem à divindade atributos essenciais, como a onipotência, a onisciência, a bondade, a justiça. No entanto, para compreender a coerência doutrinal de cada religião e superar as ambiguidades de uma linguagem aparentemente comum, é preciso compreender o eixo em torno do qual se articulam esses nomes divinos. Esse discernimento concerne especialmente ao vocabulário bíblico, cujo eixo é a aliança entre Deus e o homem, tal como se cumpriu em Cristo, g) Faz-se necessário outro discernimento sobre o vocabulário especificamente teológico, na medida em que é tributário da cultura de cada participante no diálogo e de sua filosofia implícita. É necessário, portanto, prestar atenção na peculiaridade cultural das duas partes, inclusive se ambas participam da mesma cultura original, h) O mundo contemporâneo parece preocupar-se, ao menos em teoria, com os direitos do homem. Alguns integrismos, inclusive entre os cristãos, opõem a eles os direitos de Deus. Contudo, nessa oposição, de que Deus se trata? E, em última análise, de que homem?

b. O sentido do homem

109. O diálogo inter-religioso implica ainda uma antropologia implícita, e isso por duas razões principais. De um lado, o diálogo põe em comunicação duas pessoas, e cada uma delas é o sujeito de sua palavra e de seu comportamento. Por outro lado, quando dialogam fiéis de religiões diferentes, tem lugar um acontecimento muito mais profundo que sua comunicação verbal: um encontro entre seres humanos, para o qual cada um se encaminha levando o peso de sua condição humana.

110. Num diálogo inter-religioso, têm as partes a mesma concepção da pessoa? A questão não é teórica, mas interpela a uns e a outros. A parte cristã sabe sem dúvida que a pessoa humana foi criada "à imagem de Deus", isto é, num apelo constante de Deus essencialmente relacional e capaz da abertura "ao outro". Porém, todos os participantes são conscientes do mistério da pessoa humana e do de Deus "mais além de tudo" (4)? Também o cristão é induzido a perguntar-se: de onde fala, quando dialoga? Do cenário de sua personagem social ou religiosa? Do alto de seu "superego" ou de sua imagem ideal? Visto que ele deve dar testemunho de seu Senhor e Salvador, em que "morada" de sua alma este se encontra? No diálogo inter-religioso, mais que em toda relação interpessoal, está implicada a relação de cada pessoa com o Deus vivente.

111. Aqui se mostra a importância da oração no diálogo inter-religioso: "O homem está à procura de Deus (...). Todas as religiões testemunham essa procura essencial dos homens" (3). Ora, a oração, como relação vivente e pessoal com Deus, é o próprio ato da virtude da religião e encontra expressão em todas as religiões. O cristão sabe que Deus "chama incessantemente cada pessoa ao encontro misterioso da oração" (6). Se Deus não pode ser conhecido senão se ele mesmo toma a iniciativa de revelar-se, a oração se mostra como absolutamente necessária porque põe o homem em disposição de receber a graça da revelação. Assim, na procura comum dá verdade que deve motivar o diálogo inter-religioso, "se dá uma sinergia entre a oração e o diálogo (...).. A oração é a condição do diálogo e transforma-se no fruto dele" (7). Na medida em que o cristão vive o diálogo em estado de oração, é dócil à moção do Espírito que atua no coração dos dois interlocutores. Então, o diálogo se faz mais que um intercâmbio: faz-se encontro.

112. Mais profundamente, em nível do não-dito, o diálogo inter-religioso é, com efeito, um encontro entre seres criados "à imagem de Deus", embora essa imagem se encontre neles um tanto obscurecida pelo pecado e pela morte. Dito de outro modo, os cristãos e os que não o são estão todos a espera de ser salvos. Por essa razão, cada uma de suas religiões se apresenta como uma procura de salvação e propõe caminhos para chegar a ela. Esse encontro na comum condição humana põe as partes em plano de igualdade e é muito mais verdadeiro que seu discurso religioso meramente humano. Tal discurso já é uma interpretação da experiência e passa pelo filtro das mentalidades confessionais. Pelo contrário, os problemas do amadurecimento pessoal, a experiência da comunidade humana (homem e mulher, família, educação etc.) e todas as questões que gravitam em torno do trabalho para "ganhar a vida", longe de ser temas de distração do diálogo religioso, constituem o terreno "a descoberto" para esse diálogo. Então, nesse encontro se dá conta de que o "lugar" de Deus é o homem.

113. Ora, a constante subjacente a todos os demais problemas da condição humana comum não é senão a morte. Sofrimento, pecado, fracasso, decepção, incomunicação, conflitos, injustiças... a morte está presente em todas as partes e em cada momento como a trama opaca da condição humana. Por certo, o homem, incapaz de exorcizá-la, faz todo o possível para não pensar nela. E não obstante é nela que ressoa com mais intensidade o chamado do Deus vivente. A morte é o sinal permanente da alteridade divina, pois só o que chama do nada o ser pode dar vida aos mortos. Ninguém pode ver a Deus sem passar pela morte, esse lugar ardente no qual o Transcendente atinge o abismo da condição humana.

A única pergunta séria, porque existencial e iniludível, sem a qual os discursos religiosos são "álibis", é esta: o Deus vivente assume ou não a morte do homem? Não faltam as respostas teóricas, mas estas não podem esquivar o escândalo que permanece: como Deus pode permanecer oculto e silencioso diante do inocente ferido e do justo oprimido? E o grito de Jó e de toda a humanidade. A resposta é "crucial", além de todas as palavras: na Cruzo Verbo é silêncio. Pendente de seu Pai, entrega-lhe seu espírito. E não obstante aí está o encontro de todos os humanos: o homem está em sua morte, e Deus se une a ele nela. Só o Deus amor é o vencedor da morte, e só pela fé nele o homem é libertado da escravidão da morte. A Sarça ardente da Cruz é assim o lugar oculto do encontro. O cristão contempla nela "aquele que traspassaram", e dela recebe "um espírito de benevolência e de súplica" (Jo 19,37; Zc 12,10). O testemunho de sua nova experiência será o de Cristo ressuscitado, vencedor da morte pela morte. O diálogo inter-religioso recebe então seu sentido na economia da salvação: faz mais que dar continuidade à mensagem dos profetas e à missão do Precursor; apoia-se no acontecimento da salvação consumada por Cristo e tende para o segundo Advento do Senhor. O diálogo inter-religioso se dá na Igreja em situação escatológica.

CAPÍTULO III:

1. Diálogo e Anúncio, 29: “Por meio da prática do que é bom em suas tradições religiosas e seguindo os ditames de sua consciência, os membros das outras religiões respondem positivamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, ainda que não o reconheçam como seu salvador”.

2. Temas selectos de eclesiologia (1985), esp. Cap. 4; cf. Comisión Teológica Internacional, Documentos 1980-1985, Toledo, s.d., pp. 286-290; e especialmente Fides et inculturatio (1988): Greg 70 (1989), pp. 625-646.

3. Entre os documentos de João Paulo II, cf. RM 55-57; TMA 52-53; cf. Também o documento do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e a Congregação para a Evangelização dos Povos Diálogo e Anúncio, aqui citado repetidas vezes.

4. Gregório Nazianzeno, Carminum liber I, sectio I, 29 (PG 37, 507). 56

5. Catecismo da Igreja Católica, 2566.

6. Ibid., 2567.

7. João Paulo II, Ut unum sint, 33.

Fonte: https://www.vatican.va/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF