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quinta-feira, 9 de março de 2023

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES (14/16)

O cristianismo e as religiões | Lausanne Moviment

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES

(1997)

III. 3. A verdade como problema entre a teologia das religiões e a posição pluralista

93. O diálogo inter-religioso não é apenas um desejo que parte do Concílio Vaticano II, fomentado pelo atual Pontífice. É também uma necessidade na presente situação do mundo. Sabemos que esse diálogo é a preocupação central da teologia pluralista das religiões nos últimos tempos. Para torná-lo possível, os representantes dessas teologias pensam que se há de eliminar por parte dos cristãos toda pretensão de superioridade e de absolutez. Há de se considerar todas as religiões com igual valor. Pensam que é uma pretensão de superioridade a consideração de Jesus como salvador e mediador único para todos os homens.

94. O abandono dessa pretensão é considerado, portanto, como essencial para a realização do diálogo. Esse é sem dúvida o ponto mais importante com que temos de nos confrontar. Diante desses projetos, há de se mostrar que não significa absolutamente um menosprezo nem uma depreciação o fato de a teologia católica afirmar que tudo o que nas outras religiões é verdadeiro e digno de apreço vem de Cristo no Espírito Santo. Tal é o melhor modo que o cristão tem de expressar seu apreço por essas religiões.

95. Ao comparar algumas das opiniões teológicas expostas no capítulo I com as concepções magisteriais atuais e sua fundamentação na Escritura e na Tradição que foram objeto do capítulo II, constata-se que é comum a umas e outras a intenção fundamental de reconhecer com respeito e gratidão as verdades e valores das diversas religiões. Ambas buscam o diálogo com elas, sem preconceitos e sem afãs de polêmica.

96. Porém, a diferença básica entre as duas apresentações se encontra na posição que adotam diante do problema teológico da verdade, e ao mesmo tempo diante da fé cristã. O ensinamento da Igreja sobre a teologia das religiões argumenta a partir do centro da verdade da fé cristã. Leva em conta, de um lado, o ensinamento paulino do conhecimento natural de Deus e, de outro, expressa a confiança na atuação universal do Espírito. Vê ambas as linhas ancoradas na tradição teológica. Valoriza o verdadeiro, bom e belo das religiões a partir do pano de fundo da verdade da própria fé, porém não atribui em geral à pretensão de verdade das outras religiões uma mesma validez. Isso levaria à indiferença, isto é, a não tomar a sério a pretensão de verdade tanto própria como alheia.

97. A teologia das religiões que encontramos nos documentos oficiais argumenta a partir do centro da fé. Com relação ao modo de proceder das teologias pluralistas, e apesar das diferentes opiniões e das constantes mudanças que nelas se dão, pode-se afirmar que no fundo têm uma estratégia "ecumênica" do diálogo, isto é, preocupam-se por uma renovada unidade com as diferentes religiões. Tal unidade, porém, só se pode constituir eliminando aspectos da autocompreensão própria. Quer-se conseguir a unidade desvalorizando diferenças, vistas como ameaça; considera-se ao menos que hão de ser eliminadas como particularidades ou reduções próprias de uma cultura específica.

98. A modificação da compreensão da própria fé na teologia pluralista das religiões tem múltiplas faces. Notemos as mais importantes: a) no plano histórico sugere-se um esquema de três fases, que chega no pluralismo em seu ponto final: exclusivismo, inclusivismo; nele se pressupõe erroneamente que só a última posição conduz a prestar verdadeira atenção nas outras religiões e cora isso na paz religiosa; b) no plano da teoria do conhecimento, reduz-se a capacidade de verdade das afirmações teológicas (formas de expressão específicas de uma cultura), ou inclusive chega-se a suprimi-la (as afirmações teológicas se equiparam às mitológicas); e c) no plano teológico se busca a plataforma de unidade; a possibilidade do reconhecimento da igual dignidade se paga com a parcialização e redução metodológicas (do eclesiocentrismo ao cristocentrismo, e deste ao teocentrismo, enquanto se sugere um conceito subdeterminado de Deus), e com a modificação e redução dos conteúdos específicos da fé, especialmente na cristologia.

99. Numa época marcada pela idéia de um pluralismo de mercado, essa teologia adquire alto grau de plausibilidade, porém apenas enquanto não se a aplique conseqüentemente à posição do interlocutor nesse diálogo. No momento em que se dê uma destas possibilidades: a) que o interlocutor reconheça a tese da "igual dignidade" historicamente plural; b) que aceite para a religião própria a tese da limitação ou supressão da capacidade de verdade de todas as afirmações teológicas; c) ou modifique seu próprio método teológico e o conteúdo das próprias afirmações de fé de tal maneira que estas só tenham validez em relação com os cânones da religiosidade própria, neste instante termina o diálogo religioso. Com efeito, não resta nada a constatar senão essa pluralidade indistinta. Por isso a teologia pluralística, como estratégia de diálogo entre as religiões, não só não se justifica ante a pretensão de verdade da religião própria, mas dissolve ao mesmo tempo a pretensão de verdade da outra parte.

100. Perante a simplificação histórica, epistemológica ou teológica da relação entre o cristianismo e as outras religiões na teologia pluralista, é preciso partir da visão diferenciada das religiões da declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano II. Nela se descreve o que as religiões do mundo têm fundamentalmente em comum, a saber, o esforço "por responder de várias maneiras à inquietação do coração humano propondo para isso caminhos, isto é, doutrinas, preceitos de vida e ritos sagrados" (NA 2), porém sem que se apaguem as diferenças igualmente fundamentais: as diferentes formas do budismo indicam ao homem caminhos pelos quais este percebe o sentido do ser no reconhecimento da insuficiência radical deste mundo contingente; na riqueza de mitos do hinduísmo, em suas exigências ascéticas e suas profundas meditações se expressa a busca confiante de refúgio em Deus. Com o Islã a Igreja tem mais em comum, pois reconhece que seus adeptos "adoram o único Deus (...) criador do céu e da terra" (NA 3). Reconhecendo com toda clareza o que nos separa, não se pode passar por alto os elementos comuns na história e na doutrina. O cristianismo está unido ao judaísmo por sua origem e uma rica herança comum. A história da aliança com Israel, a confissão de um só e único Deus que se revela nessa história, a esperança em Deus que vem e em seu reino futuro, são comuns a judeus e cristãos (cf. NA 4). Uma teologia cristã das religiões deve ser capaz de expor teologicamente os elementos comuns e as diferenças entre a própria fé e as convicções dos diferentes grupos religiosos. O Concílio situa essa tarefa em uma tensão: por um lado contempla a unidade do gênero humano, fundada em uma origem comum (cf. NA 1). Por essa razão, ancorada na teologia da criação, "a Igreja católica não recusa nada do que nessas religiões há de verdadeiro e de santo" (NA 2). Porém, por outro lado, insiste na necessidade do anúncio da verdade que é o próprio Cristo: "Anuncia e tem a obrigação de anunciar constantemente a Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e em quem Deus reconciliou consigo todas as coisas [cf. 2Cor 5,18-19]" (ibid.).

101. Todo diálogo vive da pretensão de verdade dos que dele participam. No entanto, o diálogo entre as religiões se caracteriza, além disso, por aplicar a estrutura profunda da cultura de origem de cada um à pretensão de verdade de uma cultura estranha. É claro que esse diálogo é exigente e requer uma especial sensibilidade diante da outra cultura. Nos últimos decênios desenvolveu-se especialmente essa sensibilidade diante do contexto cultural tanto das diferentes religiões como do cristianismo e suas teologias. Basta recordar as "teologias em contexto" e a significação crescente do tema da inculturação no magistério e na teologia. A Comissão Teológica Internacional já tratou desses temas (2), de maneira que aqui parecem necessárias apenas duas indicações: (1). Uma teologia das religiões diferenciada, que se baseia na própria pretensão de verdade, é a base de qualquer diálogo sério e o pressuposto necessário para entender a diversidade das posições e seus meios culturais de expressão. (2). A contextualidade literária ou a sociocultural etc. são meios importantes de compreensão, às vezes os únicos, de textos e situações, são possível lugar da verdade, porém não se identificam com a própria verdade. Com isso se indicam a significação e os limites da contextualidade cultural. O diálogo inter-religioso trata com cautela e respeito as "coincidências e convergências" com as outras religiões. Para o trato das "diferenças" tem-se levar em conta que esse trato não deve anular as coincidências e elementos de convergência, e além disso que o diálogo sobre essas diferenças há de se inspirar na doutrina própria e sua ética correspondente; em outras palavras, a forma do diálogo não pode invalidar o conteúdo da fé própria e de sua ética.

102. A crescente inter-relação das culturas na atual sociedade mundial e sua constante interpenetração nos meios de comunicação fazem que a questão da verdade das religiões tenha passado ao centro da consciência cotidiana do homem de hoje. As presentes reflexões consideram alguns pressupostos dessa nova situação; nelas, porém, não se entra na discussão de conteúdos com as diferentes religiões. Esta deveria realizar-se na teologia dos diferentes lugares, ou seja, nos diferentes centros de estudo que estão era contato cultural direto com as outras religiões. Ante a situação de mudança da consciência do homem atual e a situação dos fiéis, é claro que a discussão com a pretensão de verdade das religiões não pode ser um aspecto marginal ou parcial da teologia. A confrontação respeitosa com essa pretensão deve representar um papel no centro do trabalho cotidiano da teologia, deve ser parte integral dessa mesma teologia. Com ela o cristianismo de hoje deve aprender a viver, no respeito pela diversidade das religiões, uma forma da comunhão que tem seu fundamento no amor de Deus pelos homens e se funda em seu respeito para com a liberdade do homem. Esse respeito pela "alteridade" das diferentes religiões está por sua vez condicionado pela própria pretensão de verdade.

103. O interesse pela verdade do outro compartilha com o amor o pressuposto estrutural do apreço de si mesmo. A base de toda comunicação, também do diálogo entre as religiões, é o reconhecimento da exigência de verdade. A fé cristã, porém, tem sua própria estrutura de verdade: as religiões falam "do" Santo, "de" Deus, "sobre" ele, "em seu lugar" ou "em seu nome". Apenas na religião cristã é Deus mesmo quem fala ao homem em sua Palavra. Só esse modo de falar possibilita ao homem seu ser pessoal em um sentido próprio, ao mesmo tempo que a comunhão com Deus e com todos os homens. O Deus tripessoal é o coração dessa fé. Apenas a fé cristã vive do Deus uno e trino. Do pano de fundo de sua cultura surgiu a diferenciação social que caracteriza a modernidade.

104.À única mediação salvífica de Cristo para todos os homens se lhe atribui, por parte da posição pluralista, uma pretensão de superioridade; por isso se pede que o cristocentrismo teológico, do qual se deduz necessariamente essa pretensão, seja substituído por um teocentrismo mais aceitável. Diante disso é preciso afirmar que a verdade da fé não está a nossa disposição. Perante uma estratégia de diálogo que pede uma redução do dogma cristológico para excluir essa pretensão de superioridade do cristianismo, optamos mais propriamente — com o fim de excluir uma "falsa" pretensão de superioridade — por uma aplicação radical da fé cristológica à forma de anúncio que lhe é própria. Toda forma de evangelização que não corresponde à mensagem, à vida, à morte e à ressurreição de Jesus Cristo compromete essa mensagem e, em última análise, ao próprio Jesus Cristo. A verdade como verdade é sempre "superior"; porém a verdade de Jesus Cristo, na clareza de sua exigência, é sempre serviço ao homem; é a verdade do que dá a vida pelos homens para fazê-los entrar definitivamente no amor de Deus. Toda forma de anúncio que procure antes de tudo e sobretudo se impor aos ouvintes ou dispor deles com os meios de uma racionalidade instrumental ou estratégica opõe-se a Cristo, evangelho do Pai, e à dignidade do homem da qual Ele mesmo fala.

Fonte: https://www.vatican.va/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF