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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A Criação - Parte 1

A Criação (Opus Dei)

A Criação

A doutrina da Criação constitui a primeira resposta às indagações fundamentais sobre nossa origem e nosso fim.

06/01/2015

Introdução

A importância da verdade da criação vem de que é “o fundamento de todos os projetos divinos de salvação; (...) o início da história da salvação, que culmina em Cristo” (Compêndio, 51). Tanto a Bíblia (Gn 1,1) como o Credo começam com a confissão de fé no Criador.

Diferentemente dos outros grandes mistérios da nossa fé (a Trindade e a Encarnação), a criação é “a primeira resposta às questões fundamentais do homem acerca sua própria origem e do seu fim” (Compêndio, 51), que o espírito humano se propõe e, em parte, pode também responder, como mostra a reflexão filosófica e os relatos das origens pertencentes às culturas religiosas de tantos povos (cf. Catecismo, 285); não obstante, a especificidade da noção de criação só foi de fato entendida com a revelação judaico-cristã.

A criação é, pois, um mistério de fé e, ao mesmo tempo, uma verdade acessível à razão natural (cf. Catecismo, 286). Esta peculiar posição entre fé e razão faz da criação um bom ponto de partida na tarefa de evangelização e de diálogo que os cristãos estão sempre – particularmente em nossos dias[1] – chamados a realizar, como já fizera São Paulo no Areópago de Atenas (At 17,16-34).

Costuma-se distinguir entre o ato criador de Deus (a criação active sumpta) e a realidade criada, que é efeito de tal ação divina (a criação passive sumpta)[2]. Seguindo este esquema, são expostos a seguir os principais aspectos dogmáticos da criação.

1. O ato criador

1.1. “A criação é obra comum da Santíssima Trindade” (Catecismo, 292)

A Revelação apresenta a ação criadora de Deus como fruto da sua onipotência, da sua sabedoria e do seu amor. Costuma-se atribuir a criação ao Pai (cf. Compêndio, 52), assim como a redenção ao Filho e a santificação ao Espírito Santo. Ao mesmo tempo, as obras ad extra da Trindade (a primeira delas é a criação) são comuns às três Pessoas, e por isso, faz sentido perguntar-se pelo papel específico de cada Pessoa na criação, pois “cada Pessoa divina cumpre a obra comum segundo a sua propriedade pessoal” (Catecismo, 258). Este é o sentido da igualmente tradicional apropriação dos atributos essenciais (onipotência, sabedoria, amor) respectivamente ao agir criador do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

No Símbolo Niceno-Constantinopolitano, confessamos a nossa fé “em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”; “em um só Senhor Jesus Cristo (...) por ele todas as coisas foram feitas”; e no Espírito Santo, “Senhor que dá a vida” (DH 150). A fé cristã fala, portanto, não somente de uma criação ex nihilo, do nada, que indica a onipotência de Deus Pai; mas também de uma criação feita com inteligência, com a sabedoria de Deus – o Logos por meio do qual tudo foi feito (Jo 1, 3) -; e de uma criação ex amore (GS 19), fruto da liberdade e do amor que é o próprio Deus, o Espírito que procede do Pai e do Filho. Consequentemente, as processões eternas das Pessoas estão na base de seu agir criador[3].

Assim, como não há contradição entre a unicidade de Deus e o seu ser três Pessoas, de modo análogo não se contrapõe a unicidade do princípio criador com a diversidade dos modos de agir de cada uma das Pessoas.

“Criador do céu e da terra”

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Três coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo “criar” – em hebraico, “bara” – sempre tem como sujeito Deus). Tudo o que existe (expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende daquele que lhe dá o ser” (Catecismo, 290).

Somente Deus pode criar em sentido próprio[4], o que significa dar origem às coisas do nada (ex nihilo), e não a partir de algo pré-existente; para isso, requer-se uma potência ativa infinita que só Deus possui (cf. Catecismo, 296-298). É congruente (adequado), portanto, apropriar a potência criadora ao Pai, já que Ele é, na Trindade – segundo uma expressão clássica – fons et origo, quer dizer, a Pessoa de quem procedem as outras duas, princípio sem princípio.

A fé cristã afirma que a distinção fundamental, de fato, é a que se dá entre Deus e as criaturas. Isto supôs uma novidade nos primeiros séculos, nos quais a polaridade entre matéria e espírito dava motivo a visões inconciliáveis entre si (materialismo e espiritualismo, dualismo e monismo). O cristianismo rompeu estes esquemas, principalmente com sua afirmação de que também a matéria (do mesmo modo que o espírito) é criatura do único Deus transcendente. Mais tarde, São Tomás desenvolveu uma metafísica da criação que descreve a Deus como o próprio Ser subsistente (Ipsum Esse Subsistens). Como causa primeira, é absolutamente transcendente ao mundo; e ao mesmo tempo, em virtude da participação de seu ser nas criaturas, está presente intimamente nelas, as quais dependem, em tudo, de quem é fonte do ser. Deus é superior summo meo (maior do que o que há de maior em mim) e, ao mesmo tempo, intimior intimo meo (mais íntimo do que o que há de mais íntimo em mim) (Santo Agostinho, Confissões, 3,6,11; cf. Catecismo, 300).

“Por Ele todas as coisas foram feitas”

A literatura sapiencial do Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da sabedoria de Deus (cf. Sab 9,9). “O mundo não é o produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso” (Catecismo, 295), mas tem uma inteligibilidade que a razão humana, participando na luz do entendimento divino, pode captar, não sem esforço e em espírito de humildade e de respeito ante o Criador e sua obra (cf. Jo 42,3; cf. Catecismo, 299). Este desenvolvimento chega à sua expressão plena no Novo Testamento: ao identificar o Filho, Jesus Cristo, com o Logos (cf. Jo 1, 1ss), afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo encarnado, por quem tudo foi feito (Jo 1, 3). São Paulo formula esta relação do criado com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas nele, por ele e para ele (Col 1, 16-17).

Há, pois, uma razão criadora na origem do cosmos (cf. Catecismo, 284)[5]. O Cristianismo tem, desde o começo, uma grande confiança na capacidade da razão humana de conhecer; e uma enorme segurança em que jamais a razão (científica, filosófica etc.) poderá chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas provêm da mesma origem.

Não é raro encontrar pessoas que apresentam falsos dilemas, como, por exemplo, entre criação e evolução. Em realidade, uma epistemologia adequada não só distingue os âmbitos próprios das ciências naturais e da fé, mas, ainda, reconhece, na filosofia, um elemento necessário de mediação, pois as ciências, com seu método e objeto próprios, não cobrem todo o âmbito da razão humana; e a fé, que se refere ao mesmo mundo do qual tratam as ciências, necessita, para formular-se e entrar em diálogo com a racionalidade humana, de categorias filosóficas[6].

É lógico, portanto, que a Igreja, desde o início, buscasse o diálogo com a razão: uma razão consciente de seu caráter criado, pois não se deu a si própria a existência, nem dispõe completamente de seu futuro; uma razão aberta àquilo que a transcende, em suma, a Razão originária. Paradoxalmente, uma razão fechada sobre si, que acredita poder achar dentro de si a resposta às suas interrogações mais profundas, acaba por afirmar a falta de sentido da existência, e por não reconhecer a inteligibilidade do real (niilismo, irracionalismo, etc.).

“Senhor que dá a vida”

“Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participarem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade: "Pois tu criaste todas as coisas; por tua vontade é que elas existiam e foram criadas". (Ap 4,11). (...). "O Senhor é bom para todos, compassivo com todas as suas obras"” (Catecismo, 295). Em consequência, “Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: "E Deus viu que isto era bom... muito bom": Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 31). Pois a criação é querida por Deus como um dom...” (Catecismo, 299).

Este caráter de bondade e de dom livre permite descobrir na criação a atuação do Espírito – que “movia-se sobre as águas” (Gn 1,2) –, a Pessoa Dom na Trindade, Amor subsistente entre o Pai e o Filho. A Igreja confessa sua fé na obra criadora do Espírito Santo, que dá a vida e é fonte de todo bem[7].

A afirmação cristã da liberdade divina criadora permite superar a estreiteza de outras visões que, atribuindo uma necessidade a Deus, acabam por sustentar um certo fatalismo ou determinismo. Não há nada, nem “dentro”, nem “fora” de Deus, que o obrigue a criar. Qual é então o fim que o move? O que se propôs ao criar-nos?

Santiago Sanz

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Bibliografia básica

Catecismo da Igreja Católica, 279-374.

Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 51-72.

DH, nn. 125, 150, 800, 806, 1333, 3000-3007, 3021-3026, 4319, 4336, 4341.

Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 10-18, 19-21, 36-39.

João Paulo II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I), Palabra, Madri 1996, 181-218.

Leituras recomendadas

Santo Agostinho, Confissões, livro XII.

São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, qq. 44-46.

São Josemaria, Homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, em Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 113-123.

Joseph Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.

João Paulo II, Memoria e identidade, Ed. Objetiva, 2005.

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[1] Entre muitas outras intervenções, cf. Bento XVI, Discurso aos membros da Cúria Romana, 22-12-05; Fé, Razão e universidade (Discurso em Regensburg), 12-09-06; Ângelus, 28-01-07.

[2] Cf. São Tomás, De Potentia, q. 3, a. 3, co.; o Catecismo segue este mesmo esquema.

[3] Cf. São Tomás, Super Sent., lib. 1, d. 14, q. 1, a. 1, co.: “são a causa e a razão da processão (procedência) das criaturas”.

[4] Por isso se diz que Deus não tem necessidade de instrumentos para criar, já que nenhum instrumento possui a potência infinita necessária para criar. Decorre daí, também, que quando se fala, por exemplo, do homem como criador, ou, inclusive, como capaz de participar do poder criador de Deus, o emprego do adjetivo “criador” não é analógico, mas metafórico.

[5] Este ponto aparece com frequência nos ensinamentos de Bento XVI, por exemplo, na Homilia de Regensburg, 12-09-06; Discurso em Verona, 19-10-2006; Encontro com o clero da diocese de Roma, 22-02-2007 etc.

[6] Tanto o racionalismo cientificista como o fideísmo científico necessitam uma correção por parte da filosofia. Além disso, há que evitar, da mesma forma, a falsa apologética de quem vê forçadas concordâncias, buscando nos dados fornecidos pela ciência uma verificação empírica ou uma demonstração das verdades da fé, quando, na verdade, como dissemos, trata-se de dados que pertencem a métodos e disciplinas distintas.

[7] Cf. João Paulo II, Carta Encíclica Dominum et vivificantem, 18-05-1986, 10.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF