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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A Misericórdia na Sagrada Escritura - Parte 2

A Misericórdia na Sagrada Escritura (Opus Dei)

A Misericórdia na Sagrada Escritura

Neste editorial da série sobre a misericórdia, analisam-se as Escrituras, Palavra de Deus, onde a misericórdia de Deus é revelada.

22/08/2016

Deus é qualificado também como janún (misericors). Este adjetivo, que pode ser traduzido por “compassivo”, se deriva da palavra jen, que significa “graça, favor”: algo que se outorga por pura benevolência, que vai além da justiça estrita. Expressa a atitude de Deus que se reflete em um dos mandamentos do código da Aliança: “Se tomares como penhor o manto de teu próximo, lhe devolverás antes do pôr-do-sol, porque é a sua única cobertura, é a veste com que cobre sua nudez; com que dormirá ele? Se me invocasse, eu o ouviria, porque sou misericordioso (janún)”[22]. Trata-se de um mandato inspirado pela compaixão ao pobre, que não consegue pagar o que em justiça deveria: Deus não tolera vê-lo sofrendo, e, nessa compaixão – que Deus sabe inspirar aos seus –,abre-se um caminho à verdadeira justiça: “porque eu quero o amor mais que os sacrifícios, e o conhecimento de Deus mais que os holocaustos”[23]. Quem conhece a Deus de verdade sabe reconhecer o irmão que sofre. Se pedirmos ao Senhor esse olhar compassivo, quantas oportunidades de servir aos outros descobriremos! O ano jubilar é uma boa ocasião para que, junto com outras pessoas, façamos alguma obra de misericórdia corporal no lugar em que nos encontramos.

O Deus fiel que sabe esperar

Esse salmo diz também que o Senhor é um Deus de muita misericórdia, multae misericordiae (jésed), utilizando, nesse caso, uma palavra do vocabulário familiar, que se poderia traduzir literalmente por “piedade”. Refere-se, acima de tudo, à bondade própria das relações dos pais com os filhos, destes com seus pais, ou dos esposos entre si. Por isso, quando Jacó, já muito idoso, está a ponto de morrer, chama a seu filho José e lhe pede: “(...) promete-me, com toda a piedade(jésed) e fidelidade, que não me enterrarás no Egito”[24]. Ou seja, pede-lhe que se porte como corresponde a um filho bom e cumpra esse último desejo de seu pai. Dizer que Deus é pleno em jésed é a mesma coisa que afirmar que Deus nos olha sempre como seus filhos: seus dons e sua vocação são irrevogáveis[25]. “Deste Deus misericordioso também se diz que é “lento para a ira”, literalmente, tem um “longo respiro”, ou seja, o amplo respiro da longanimidade e da capacidade de suportar. Deus sabe esperar, os seus tempos não são os tempos impacientes dos homens; Ele é como o sábio agricultor que sabe esperar, dá tempo à boa semente para crescer, não obstante o joio (cf. Mt 13, 24-30)”[26].

A MISERICÓRDIA NÃO É UMA COMÉDIA QUE DISSIMULA AS OFENSAS E AS FERIDAS COMO SE NÃO TIVESSEM EXISTIDO

Por último, afirma-se que a misericórdia do Senhor está presidida pela abundância de verdade: et veritatis (émet). Efetivamente, a misericórdia não é uma comédia que dissimula as ofensas e as feridas como se não tivessem existido: as feridas não se enfaixam “sem antes serem tratadas e medicadas”[27], porque se infeccionariam. O Senhor “é Médico e cura o nosso egoísmo se deixamos que sua graça penetre até o fundo da alma”.[28] Deixar que nos cure significa reconhecer-nos pecadores, mostrar-lhe as feridas com a disposição de colocar os meios oportunos para tratá-las. “Se alguma vez cais, filho, acode prontamente à Confissão e à direção espiritual: mostra a ferida!, para que te curem a fundo, para que te tirem todas as possibilidades de infecção, mesmo que te doa como numa operação cirúrgica.”[29]. E então o Senhor promete que “se vossos pecados forem escarlates, tornar-se-ão brancos como a neve! Se forem vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã!”[30].

Uma relação estável e serena com Deus e com os outros somente se pode construir sobre a verdade. A verdadeira felicidade – escreve Santo Agostinho, refletindo sobre a nossa vida na terra e a que nos espera no céu – é a alegria da verdade, gaudium de veritate[31]. Viver na verdade é muito mais que “saber” algumas coisas. Por isso o termo hebreu émet significa tanto “verdade” como “fidelidade”: a pessoa sincera é fiel, e quem deseja ser fiel ama a verdade. “Uma ‘lealdade’ sem limites: eis aqui a última palavra da revelação de Deus a Moisés. A fidelidade de Deus nunca falha, porque o Senhor é o guardião que, como diz o Salmo, não dorme, mas vela continuamente sobre nós para levar-nos para a vida: ‘Não permitirá que teu pé escorregue, teu guardião não dorme, não dorme nem repousa o guardião de Israel (...). O Senhor te guarda de todo o mal, ele guarda a tua alma; o Senhor guarda tuas entradas e saídas agora e para sempre (121, 3-4.7-8)’”.[32]

Resumindo, no Antigo Testamento, a misericórdia divina é a acolhida materna e profundamente carinhosa que o Senhor oferece a quem se encontra necessitado e reconhece a verdade de sua situação: suas debilidades, erros, pecados ou infidelidades. Deus não somente o liberta daquilo que carrega sobre ele e o oprime, mas também o cura e restaura a sua dignidade de filho.

O rosto da misericórdia do Pai

“O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida...”[33]. Essas palavras vibrantes do apóstolo a quem Jesus amava chegam até nós com a mesma força com que foram escritas. Em Jesus, o apóstolo viu e tocou o amor de Deus coisa que todos os cristãos podemos fazer, “para que nossa alegria seja completa”[34].

Jesus Cristo “é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus”[35]. Por isso, São Josemaria nos convidava a não nos cansarmos de saborear “as cenas comoventes em que o Mestre atua com gestos divinos e humanos ou relata com modos de dizer humanos e divinos a história sublime do perdão, do Amor ininterrupto que tem pelos seus filhos”[36].

O AMOR INCONDICIONAL DO SENHOR CHEGA À SUA MÁXIMA EXPRESSÃO NA SUA PAIXÃO. AÍ TUDO É PERDÃO AOS HOMENS, PACIÊNCIA DIANTE DOS NOSSOS PECADOS, PALAVRAS SEM NENHUM SABOR DE AMARGURA.

Cristo é o bom samaritano[37], que não passa longe de quem padece qualquer necessidade espiritual ou material, mas que se comove e põe remédio à desgraça. “Deus se mistura com nossas misérias, se aproxima das nossas feridas e, com suas mãos, faz com que sejam curadas. Fez-se homem para ter mãos. É um trabalho de Jesus, pessoal: um homem cometeu o pecado, um homem vem curá-lo”[38]. Toda a vida de Jesus está cheia de gestos de misericórdia: perdoa os pecados do paralítico que descem numa maca pelo teto da casa em que o Senhor estava[39], ressuscita e entrega vivo à sua mãe, a viúva de Naim, o seu filho único [40], alimenta milagrosamente as multidões que o seguem para que não desfaleçam[41]. “O que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham”.

Esse amor incondicional do Senhor chega à sua máxima expressão na sua Paixão. Aí tudo é perdão aos homens, paciência diante dos nossos pecados, palavras sem nenhum sabor de amargura. Cravado em um madeiro, comove-se diante da confissão sincera de um ladrão – “para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum”[42] e imediatamente lhe pede: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!”[43]. Trata-se de uma imagem perfeita da misericórdia: Jesus acolhe a petição daquele homem necessitado de carinho, que reconhece com simplicidade o mal em sua vida; perdoa-o, e abre-lhe a porta de entrada para o céu: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”[44]. Essa resposta de Jesus mostra que Ele esperava esse momento, como o espera para cada um de nós uma vez, muitas vezes. “Jesus acolhia com bondade aos pecadores. Se pensarmos de modo humano, o pecador seria um inimigo de Deus, mas Ele se aproxima deles com bondade, amava-os e mudava o seu coração”[45].

Nossa Senhora estava ao pé da cruz. Confiados na sua intercessão, podemos nos dirigir a Deus com São Josemaria, que seguindo uma inspiração divina, rezava: “Adeamus cum fiducia ad thronum gloriae ut misericordiam consequamur”[46] – “Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia”.

Francisco Varo

Tradução: Mônica Diez


[22] Ex 22, 25-26.

[23] Os 6,6.

[24] Gn 47,29.

[25] Cfr. Rm 11, 29.

[26] Francisco, Audiência, 13-I-2016.

[27] Francisco, Discurso, 18-X-2014.

[28] São Josemaria, É Cristo que passa, nº. 93.

[29] São Josemaria, Forja, nº. 192.

[30] Is 1,18

[31] Santo Agostinho, Confissões, X.23.33.

[32] Francisco, Audiência, 13-I-2016.

[33] I Jo 1,1.

[34] I Jo 1,4.

[35] Joseph Ratzinger, Homilia, Missa pro eligendo pontifice, 18-IV-2005.

[36] Amigos de Deus, n. 216.

[37] Lc 10, 33-35.

[38] Francisco, Homilia em Santa Marta, 22-X-2013.

[39] Cfr. Mc 2, 3-12.

[40] Cfr. Lc 7, 11-15.

[41] Cfr. Mt 14, 13-21; 15, 32-39.

[42] Francisco, Misericordiae vultus, n. 8.

[43] Lc 23, 41-42.

[44] Lc 23, 43.

[45] Francisco, Audiência, 20-II-2016.

[46] Cfr. Hb 4, 16.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF