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sábado, 24 de fevereiro de 2024

Primeira Pregação da Quaresma 2024 do cardeal Cantalamessa - Parte 2

1ª Pregação da Quaresma com o cardeal Cantalamessa (Vatican Media)

Primeira Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

"Nós, porém, encontramo-nos aqui no contexto da Cúria, que não é uma comunidade religiosa ou matrimonial, mas de serviço e de trabalho eclesial. As ocasiões para não desperdiçar, se quisermos também nós sermos moídos para nos tornarmos trigo de Deus, são muitas, e cada um deve identificar e santificar aquela que lhe é oferecida em seu posto de serviço".

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU O PÃO DA VIDA”
Primeira Pregação da Quaresma de 2024

Todo o discurso de Jesus tende, portanto, a esclarecer que a vida é aquela que ele dá: não vida da carne, mas vida do Espírito, a vida eterna. Não é, porém, nesta linha que eu gostaria de prosseguir a minha reflexão, nos poucos minutos que me restam. Em relação ao Evangelho, há sempre duas operações a se fazer respeitando rigorosamente a sua ordem: primeiro, a apropriação, depois, a imitação. Temos nos apropriado até agora do pão da vida mediante a fé e o fazemos cada vez que recebemos a Comunhão. Trata-se de ver agora como traduzi-los na prática em nossa vida.

Para fazer isso, colocamo-nos uma simples pergunta: Como ele, Jesus, se tornou pão de vida para nós? A resposta, deu-nos ele mesmo no Evangelho de João: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24). Sabemos bem a que aludem as imagens de cair na terra e apodrecer. Toda a história da Paixão está contida nelas. Devemos buscar ver o que essas imagens significam para nós. Jesus, de fato, com a imagem do grão de trigo não indica apenas o seu destino pessoal, mas o de cada seu verdadeiro discípulo.

Não se pode escutar a palavra dirigida à Igreja de Roma pelo bispo Inácio de Antioquia sem nos comover e sem permanecer atônitos, vendo o que a graça de Cristo é capaz de fazer de uma criatura humana:

Deixai que eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído... Suplicai a Cristo por mim, para que eu, com esses meios, seja vítima oferecida a Deus. Não vos dou ordens como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um condenado [4].

Antes dos dentes das feras, o bispo Inácio experimentou outros dentes que o moíam, não dentes de feras, mas de homens: “Desde a Síria até – escreve – luto contra as feras, por terra e por mar, de noite e de dia, acorrentado a dez leopardos, a um destacamento de soldados; quando se lhes faz bem, tornam-se piores ainda”[5]. Isto tem algo a dizer também para nós. Cada um de nós tem, em seu ambiente, destes dentes de feras que o moem. Santo Agostinho dizia que nós, seres humanos, somos “vasos de argila que se ferem uns com os outros”: lutea vasa quae faciunt invicem angustias[6]. Devemos aprender a fazer desta situação um meio de santificação e não de endurecimento do coração, de raiva e lamentação!

Uma sentença frequentemente repetida em nossas comunidades religiosas afirma Vita communis mortificatio maxima: “viver em comunidade é a maior de todas as mortificações”. Não só a maior, mas também a mais útil e mais merecedora de tantas outras mortificações de própria escolha. Esta sentença não se aplica apenas a quem vive em comunidades religiosas, mas em toda convivência humana. Onde ela se realiza no modo mais exigente é, na minha opinião, o matrimônio, e devemos ficar cheios de admiração diante de um matrimônio levado adiante com fidelidade até a morte. Passar a vida inteira, dia e noite, lidando com a vontade, o caráter a sensibilidade e as idiossincrasias de uma outra pessoa, especialmente em uma sociedade como a nossa, é algo de grande e, se feito com espírito de fé, já deveria ser qualificado como “virtude heroica”.

Nós, porém, encontramo-nos aqui no contexto da Cúria, que não é uma comunidade religiosa ou matrimonial, mas de serviço e de trabalho eclesial. As ocasiões para não desperdiçar, se quisermos também nós sermos moídos para nos tornarmos trigo de Deus, são muitas, e cada um deve identificar e santificar aquela que lhe é oferecida em seu posto de serviço. Menciono apenas uma ou duas que considero válidas para todos.

Uma ocasião é aceitar sermos contrariados, renunciar a nos justificar e querer ter sempre razão, quando não é pedido pela importância da coisa. Uma outra é suportar alguém, sujo caráter, modo de falar ou de fazer nos dá nos nervos, e fazê-lo nos irritar interiormente, pensando melhor que também nós talvez sejamos para alguém tal pessoa. O Apóstolo exortava os fiéis de Colossos com estas palavras: “Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro” (Cl 3,12-13). O que é mais difícil para “moer” em nós não é a carne, mas o espírito, isto é o amor próprio e o orgulho, e estes pequenos exercícios servem magnificamente ao objetivo.

Hoje infelizmente existe na sociedade uma espécie de dentes que moem sem piedade, mais cruelmente que os dentes de leopardo de que falava o mártir Santo Inácio. São os dentes dos meios de comunicação e das chamadas redes sociais. Não quando eles relevam as distorções da sociedade ou da Igreja (nisso merecem todo o respeito e a estima!), mas quando se enfurecem contra alguém por tomada de partido, simplesmente porque não pertence ao próprio lado. Com maldade, com intuito destrutivo, não construtivo. Coitado de quem acaba hoje neste moedor, seja ele um leigo ou um eclesiástico!

Neste caso, é lícito e um dever fazer valer as próprias razões nos lugares apropriados e, se isso não for possível, ou então se ver que não serve a nada, não resta a um fiel senão unir-se a Cristo flagelado, coroado de espinhos e no qual cuspiram. Na Carta aos Hebreus, lê-se esta exortação aos primeiros cristãos, que pode ajudar em ocasiões semelhantes: “Pensai pois naquele que enfrentou uma tal oposição por parte dos pecadores, para que não vos deixeis abater pelo desânimo” (Hb 12,3).

É algo difícil e doloroso ao máximo, sobretudo quando no meio disso está a própria família natural ou religiosa, mas a graça de Deus pode fazer – e frequentemente tem feito – de tudo isso ocasião de purificação e santificação. Trata-se de ter confiança de que, no fim, como aconteceu para Jesus, a verdade triunfará sobre a mentira. E triunfará melhor, talvez, com o silêncio, mais do que com as mais aguerridas autodefesas.

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Tradução de Frey Ricardo Luiz Farias

Notas

[4] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, IV,1.
[5] Cf. Ib. V,1.
[6] Cf. Agostinho, Discursos, 69,1 (PL 38, 440).

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF