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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

SOCIEDADE / MEIO-AMBIENTE : Muitos povos, a mesma terra

Memorial EBC

Muitos povos, a mesma terra

O Brasil tem povos tradicionais de mais de trezentas etnias e quase o mesmo número de línguas. Em comum, a preocupação com a saúde, a educação e, sobretudo, o território.

por AIRAM LIMA JÚNIOR   publicado em 26/06/2020

Desde o ano passado, a questão indígena voltou a ocupar o noticiário, sobretudo com as manifestações do presidente Jair Bolsonaro contra a extensão, a demarcação e as limitações de uso das terras demarcadas. Muito se fala sobre os indígenas, mas poucos os conhecem de verdade, até porque a grande maioria vive longe dos centros urbanos. Contudo, eles estão em todo o país e, mais do que isso, não podem ser descritos de uma única maneira. Eles não têm uma cultura única. Na verdade, são várias nações dentro da nação Brasil. “Cada povo conta sua história, canta seu canto e tem seu ritual”, explica a cantora, jornalista e ativista nativa Djuena Tikuna. “Nem de ‘índia’ a gente gosta de ser chamada, porque cada povo tem seu nome - eu sou tikuna”, esclarece ela.

O último censo, realizado em 2010, apurou que no Brasil existiam 305 povos indígenas, que reuniam 896.917 pessoas. Esses números mostraram a consolidação da recuperação do crescimento dessa população. Em 1500, quando Cabral chegou ao Brasil, calcula-se que havia 3 milhões ou mais de indígenas na área que equivale ao nosso território. Com o passar do tempo, foram sendo dizimados. Nos anos 1960, não havia mais que 70 mil no Brasil e muitos consideravam a sua extinção inevitável. A partir dos anos 1970, a curva do gráfico mudou. De 1991 a 2010, o censo apurou que essa população triplicou.

EM TODO O PAÍS, 274 LÍNGUAS

Com tantos povos diferentes, ocorre o mesmo com os idiomas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou, no censo de 2010, 274 línguas indígenas em todo o país. Djuena Tikuna é casada com um guajajara. Se eles conversassem em suas línguas maternas, um não entenderia o outro. É difícil contar um número preciso de idiomas dos povos nativos, porque muitos deles não têm escrita. Além disso, à medida que passam a usar o português, as línguas maternas correm o risco de cair em desuso e se extinguir.

A grande maioria deles vive na Amazônia. Mas eles estão presentes em todos os estados e até no Distrito Federal. Aliás, dentro do município mais populoso do país, São Paulo, há três terras indígenas registradas.

Outro ponto a ser considerado é que o Brasil é um país de grande miscigenação. Assim, em 2018, respondendo a outra pesquisa do IBGE, 21,4% dos entrevistados em todo o Brasil declararam descender desses povos. Os estudiosos atribuíram o aumento dessa população verificado nas últimas décadas também a uma mudança de comportamento. Na hora de responder ao censo, mais gente passou a se identificar como indígena. Foi o que aconteceu com a antropóloga Inara Nascimento. Ela nasceu na aldeia de seu povo, os sateré-mawé, perto de Maués (AM). Foi estudar em Manaus e, para sobreviver ao preconceito contra os seus ascendentes, por alguns anos deixou de lado sua origem. Só depois assumiu sua etnia. “Eu sou um exemplo de indígena que se conscientiza de sua origem mais tarde”, afirma ela.

Se os povos originários brasileiros são muito diferentes em termos de etnia, língua e lugar onde vivem, em todos eles está presente, de alguma maneira, a preocupação com a preservação de suas culturas. Um exemplo vem do campo da saúde. Em Manaus, foi criado, por iniciativa dos indígenas, um centro de medicina que conta com a presença de pajés dando palestras e apresentando os conhecimentos tradicionais. “Essa é uma possibilidade de diálogo com a medicina ocidental”, explica o pedagogo Marcos Estácio.

UM APRENDIZADO CRUEL

A especialidade de Estácio é a educação. E aqui está outro campo da preocupação dos indígenas com sua cultura. Ele é professor na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), onde iniciou um projeto de extensão para valorizar a cultura dos povos tradicionais e, assim, reduzir a evasão desse público da universidade (veja mais na Cidade Nova de dezembro de 2019). A UEA tem uma cota reservada de 5% dos alunos ingressantes para esse público, mas, quando chega o final do período escolar, o número desses estudantes é menos da metade dos que entraram. “É que a gente (não indígenas) pratica uma educação para eles e não com eles”, explica o docente. Por isso, o projeto propõe a adoção de um ensino “que respeite os princípios da educação indígena, com o significado da terra, da vida coletiva”. O projeto busca ainda dar apoio também fora da sala de aula. “O aluno vem de fora e não consegue permanecer na universidade porque encontra outra cultura, está separado da família, precisa de dinheiro todo dia...”, lembra Estácio.

Mais do que a solidão e as necessidades materiais, o nativo que deixa a aldeia e vai estudar na cidade encontra dois problemas graves: a barreira da língua e o preconceito. Quando era criança, Djuena Tikuna teve aulas com professores nativos em sua aldeia, em Tabatinga (AM). Aos nove anos de idade, ela foi viver em Manaus, onde foi alfabetizada em português, e o impacto da chegada foi “cruel”. “A professora me obrigou a falar uma frase que eu não conseguia”, recorda ela. “Eu me senti humilhada, tinha acabado de sair da aldeia”.

Inara Nascimento contribui para a luta por educação dessa parcela da população. Na Universidade Federal de Roraima, ela forma professores e gestores indígenas na área de saúde e de gestão de territórios. Recentemente, para fazer o doutorado, ela se mudou para o Rio de Janeiro, e aí também teve de enfrentar um choque cultural. “Eu tenho que fazer um esforço para conseguir comprar legumes, frutas, verduras na feira, porque eu não sei de onde isso vem, se tem muito agrotóxico...”, explica ela. “Eu sempre plantei esses alimentos”.

TERRA, BASE DA IDENTIDADE

O relato de Inara mostra que nada é mais representativo da identidade indígena do que a terra. Não por acaso, a maioria dos indígenas brasileiros, diferentemente da população geral, está concentrada na zona rural. A área da aldeia é o lugar onde praticam sua língua e seus ritos e de onde tiram seu sustento e suas tradições. E, como acontece desde 1500, sua terra está sob ameaça.

Desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro questiona a existência das terras indígenas. Já declarou abertamente que não vai demarcar nenhuma reserva e, em fevereiro, enviou ao Congresso um projeto de lei que permite a exploração econômica dessas áreas. “O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”, declarou, acrescentando que, em Rondônia, “tem R$ 3 trilhões debaixo da terra”. O presidente está de olho, especialmente, na possibilidade de gerar divisas com a extração de minérios e de madeira, recursos abundantes na Amazônia.

Só a proximidade entre reservas indígenas e centros urbanos já causa conflitos. “Vêm alcoolismo, droga, tudo isso pra cá, e o jovem não quer mais trabalhar na roça”, conta Mariano Wadzerepruwe Babaté, que até o início do ano era o cacique de uma aldeia xavante localizada no município de Barra do Garças (MT). Essas mudanças interferem nas tradições da comunidade. Mariano conta que, enquanto sua geração vivia caçando animais como anta, queixada e tatu para a subsistência da aldeia, os jovens já preferem comer carne bovina e de porco; “tudo que é criado”, queixa-se ele.

LIMITAÇÕES

A Constituição de 1988 determina que nossos povos originários têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. A lei diz também que a União deveria demarcar essas áreas em até cinco anos, mas isso só aconteceu em parte. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), há 1.296 terras indígenas no Brasil, mas até agora só 31% foi efetivamente demarcado. Em outros 41%, nem o processo demarcatório foi iniciado. Já a Fundação Nacional do Índio (Funai) reconhece a existência de 625 áreas em diferentes estágios de regularização, que cobrem mais de 1,2 milhão de quilômetros quadrados. Bolsonaro disse em fevereiro que acha “um tanto quanto abusivo” que essa extensão toda de terra, que corresponde a quase 14% do território nacional, fique reservada para apenas 0,47% da população.

Coincidentemente ou não, aumentaram as invasões das terras indígenas, sobretudo por garimpeiros, madeireiros e até grileiros, que tomam posse da área para loteá-la, segundo o Cimi. Até setembro do ano passado, a entidade havia registrado 160 casos de invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio indígena, o que já era um número 47% maior que o apurado em todo o ano de 2018.

Ao lado das invasões, aumenta também a violência contra as pessoas. Em 2018 (últimos dados consolidados pelo Cimi), 135 indígenas foram assassinados. Por aí se explica o choque que Djuena Tikuna sofreu quando foi à sua aldeia natal no ano passado. Djuena é natural da reserva Umariaçu, junto à fronteira com Colômbia e Peru. “Eu me lembro de que meu avô ia de canoa, sem preocupação, para as plantações de melancia, milho, banana”, recorda ela. “Hoje, tem horário para passar ali, porque estão matando as pessoas”. A região é assediada por traficantes e piratas, que assaltam e matam os viajantes, afirma Tikuna.

PROJETO QUER EXPLORAR O SAGRADO

Há um motivo muito forte para a reserva dessas terras: são seus habitantes que preservam a floresta. Mais do que manter essas áreas intocadas, é o manejo florestal dos indígenas que faz com que o ecossistema continue vivo e renovado. O antropólogo Tiago Moreira dos Santos afirma que, nos últimos quarenta anos, 20% da floresta amazônica foi desmatada. Mas, se forem consideradas somente as terras em questão, esse número cai para 1,9%.

Contudo, com o aumento das queimadas e do desmatamento registrado no ano passado, até essas regiões começaram a ser ameaçadas. Entidades que estudam a questão, como o Instituto Socioambiental, atribuem esses fatos à redução do poder de fiscalização de órgãos como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que perderam orçamento e diminuíram a aplicação de multas aos infratores ambientais.

Assim que o projeto de exploração econômica das reservas foi apresentado pelo governo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil divulgou uma nota de repúdio. “Trata-se de um projeto de morte para os povos indígenas, que virá na forma de descaracterização dos seus territórios, violação dos seus direitos e perda da sua autonomia”, declarou a entidade. “O território, para nós, é sagrado”, proclama Djuena Tikuna. “A terra é que nos dá alimento, ela é mãe”. Se esse é o sentido cultural do território para o indígena, a questão vai muito além do aspecto econômico. Para o nativo, sua pergunta pode ser algo como: eu vou deixar que outra pessoa venha explorar a minha mãe?

Fonte: https://www.cidadenova.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF