Arquivo 30Dias, número 05 - 2010
A grande concepção pelagiana: o cristianismo é uma educação
“É evidente que Jonas simpatiza com a concepção de Pelágio,
pois sente-o mais próximo do estoicismo e de um certo tipo de judaísmo. De
fato, depois de ter dito que para Pelágio a graça de Cristo consiste em
‘estímulos para a vontade, não em auxílio ativo’ e que ‘não são uma transformação do
homem, mas uma educação do homem’, exclama admirado: ‘Essa é a
grande concepção pelagiana’. Esse é o ponto crucial do livro e do pensamento de
Jonas”. Resenha do texto inédito de Hans Jonas, Problemas de liberdade,
escrita por Nello Cipriani.
de Nello Cipriani
No início do ano, a editora italiana Aragno publicou uma obra até então inédita do filósofo de origem judaica Hans Jonas (1903-1993), em edição organizada por Emidio Spinelli, com texto original em inglês no apêndice e tradução para o italiano de Angela Michelis. O livro, intitulado Problemi di libertà (Problemas de liberdade), reúne uma série de conferências proferidas por Jonas na “New School for Social Research”, de Nova York, no primeiro trimestre de 1970. Nessas conferências, o filósofo faz uma análise aguda do modo como a ideia de liberdade se desenvolveu, primeiramente na filosofia grega, sobretudo aristotélica e estoica, e em seguida no cristianismo, passando pelo judaísmo. As seis primeiras conferências são dedicadas a aprofundar e explicar o conceito de liberdade dos filósofos gregos; a sétima salienta as novidades introduzidas pelo judaísmo; as sete conferências seguintes analisam o pensamento de São Paulo contido no capítulo 7 da Carta aos Romanos e, sobretudo, o pensamento de Santo Agostinho.
São particularmente interessantes as páginas em que Jonas, partindo da doutrina
da criação, aprofunda a diferença entre “a concepção judaico-cristã do homem e
a concepção grega clássica, que tinha os estoicos como representantes”. Na
filosofia estoica, que vê o mundo dominado pelo fatalismo, “o problema da
liberdade se traduz em alcançar o máximo possível de independência interior,
com uma espécie de recusa da relevância do engajamento exterior do homem” (p.
92). O mundo é visto como um ser vivo absolutamente autossuficiente, capaz,
pela ação do logos imanente, de reconduzir à ordem todos os
conflitos que nele acontecem em consequência do devir ininterrupto das coisas.
O homem é algo como uma síntese do mundo em que vive: pelo uso da razão, ele
também pode dominar todas as tensões exteriores que ameaçam sua tranquilidade
interior. Logo, para os estoicos “a verdadeira liberdade do homem consiste no
que eles chamam seu completo poder de assentir ou dissentir ante tudo o que se
apresenta” (ibid.). Depende unicamente de mim “dizer sim ou não, aceitar ou recusar”,
e esse poder “é alcançado mediante um processo de autoeducação interior e
autodisciplina” (ibid.). Enfim, a moralidade dos estoicos, segundo Jonas, é
“muito corajosa, e afirma a liberdade humana diante do Fado, ao mesmo tempo em
que insere a dimensão da relevância no ego racional do homem” (p. 93).
Com a crença na criação, ensinada pela Bíblia judaica, o mundo e o homem perdem
a autonomia e a autossuficiência: todas as criaturas devem sua existência ao
Deus criador. Todavia, o homem, segundo o Gênesis, foi criado à imagem de Deus
e, dessa forma, tornou-se capaz de governar as outras criaturas e de discernir
entre o bem e o mal. O fato de ser feito à imagem, observa Jonas, “significa
que o homem pode ‘vir a ser’ um certo tipo de homem, pode ‘transformar-se’,
desde que faça uso apropriado desse poder, já que a faculdade de discernir
entre o bem e o mal não é simplesmente o poder intelectual de reconhecer o bem
e o mal, mas um poder de escolha, uma capacidade de escolha” (p. 113). “Assim,
a liberdade da vontade moral do homem representa o pressuposto fundamental da
possibilidade de conformação do homem ao seu original divino” (p. 114). No
judaísmo, portanto, “o homem é um ser extremamente problemático” (ibid.): tem a
capacidade de ser filho de Deus, mas, também, de ser o oposto disso. O fato de
ter sido criado à imagem de Deus implica ter de ser santo como Deus é santo.
Foi com essa finalidade que a lei foi dada ao povo judeu, lei esta que foi
“imposta ao homem como uma obrigação e um fardo, e ao mesmo tempo como uma
grande concessão à sua estatura limitada” (p. 116). Com a lei, porém, surge um
outro grande problema para quem crê: “Como posso enfrentar o exame de Deus, a
cujos olhos nada está oculto? Essa é a origem de uma concepção que terá
tremendas consequências na história da autocompreensão humana: a concepção da
existência de um Ente diante do qual nada é oculto, de forma que o que me pode
agradar quando penso em mim mesmo ou aquilo que me pode fazer satisfeito comigo
mesmo pode não ser verdadeiro aos olhos desse Ente que a tudo vê e por nada é
corrompido ou enganado [...]. Os profetas judaicos foram os primeiros a
descobrir que não existe apenas o lado objetivo da lei, podendo ser acompanhado
de uma indiferença para com Deus ou de um espírito afastado da verdadeira
vontade de Deus [...]. É a partir desse ponto que o problema cristão do ‘si
mesmo’ do homem e da liberdade humana vieram a ser formulados, primeiramente
por Paulo e mais tarde por Agostinho” (pp. 117-118).
Segundo Jonas, o apóstolo Paulo teria diminuído o valor salvífico da lei, para exaltar a cruz de Cristo. Para tanto, ele teria acentuado o orgulho inerente ao homem, que leva até mesmo aquele que busca ser justo diante de Deus a arrogar-se o mérito de sua justiça, numa forma de autocomplacência. E esse orgulho inato se originaria da corrupção de nossa natureza, produzida pelo pecado de Adão, o primeiro homem. “Assim”, observa Jonas, “o problema cristão da liberdade repousa nesta doutrina de base não empírica, não filosófica, inverificável, em certo sentido atroz, mas ao mesmo tempo grandiosa, da impossibilidade de que a natureza humana seja ajudada diante do Mandamento moral” (p. 120). Se fôssemos capazes de cumprir a lei, não somente na letra, mas no espírito, poderíamos obter sozinhos a nossa salvação, mas Cristo, assim, teria morrido em vão. “No credo judaico”, continua, “a lei, com todas as ciladas que pode ter, oferece todavia os meios para satisfazer o que Deus exige do homem, que não está além das capacidades do próprio homem. O cristianismo é que abre aí um abismo. Cada ser humano carrega de certa forma um abismo em si mesmo, o abismo do pecado original, que sempre envenena tudo o que procuramos fazer, se contarmos apenas com nossas forças [...]. Só a graça dá a possibilidade de uma anistia” (pp. 120-121). Jonas reconhece que alguns rabinos também especularam sobre a “queda” de Adão. E admite que “com certeza já não estamos no paraíso, e a humanidade labuta e sofre, e tudo isso é consequência da ‘queda’”. Todavia, “essa consequência nunca foi entendida no sentido extremo de que com a ‘queda’ de Adão todos tenhamos perdido nossa capacidade moral. O modo de ser humano continua essencialmente o mesmo, e, por mais que já não seja inocente, o homem conservou o poder da livre escolha” (p. 121).
Com Paulo, acaba essa certeza, e o desenvolvimento da questão a que ele dá
início conclui-se com Agostinho. Estaria aqui, para Jonas, o ponto de ruptura
do cristianismo paulino e agostiniano com o estoicismo e o judaísmo: a negação
do poder da livre escolha. Em mais de um momento, Jonas reprova a atitude do
bispo de Hipona de forçar o pensamento de Paulo, levando-o a dizer algo que não
diz. Na polêmica antipelagiana, levado por sua experiência maniqueísta
anterior, Agostinho teria acentuado o pessimismo paulino, levando-o às últimas
consequências. Mas a tese que Jonas propõe em diversos momentos do texto é que esse
tipo de cristianismo encontrou resistências mesmo dentro da Igreja, sendo,
aliás, desconhecido até mesmo de Cristo: “Os sermões e as célebres palavras do
Senhor não formam, em si, a doutrina da Igreja. A doutrina da Igreja diz
respeito ao papel desse Jesus, concebido como o Cristo que
veio para a salvação do homem” (pp. 130-131).
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