Arquivo 30Dias, número 04 – 2006
Leigo, isto é, cristão
Bento XV promoveu a caridade, a paz e a liberdade dos filhos
de Deus por meio do respeito às pessoas e às instituições. Quarta e última
etapa da resenha dos papas que adotaram o nome Bento.
de Lorenzo Cappelletti
A eleição ao pontificado
Justamente por representar essa posição mais moderada, Della Chiesa, mesmo tendo chegado ao cardinalato poucos meses antes, estava entre os papáveis e foi eleito papa, apesar da resistência imposta a seu nome do início ao fim do conclave por aqueles que gostariam de manter o leme na rota da intransigência. Durante o seu pontificado, esses mesmos fizeram soprar ventos de revolta, tanto mais insidiosos quanto mais sopravam de junto do Pontífice. Foram conhecidos como o “pequeno Vaticano”. Dois meses antes da morte de Bento XV, Merry del Val, criticando-o, escrevia numa carta particular que era preciso “fugir às táticas da política humana [...]. Num tempo em que o mundo perdeu a orientação e busca ansiosamente um ancoradouro que só nós somos capazes de oferecer, não deveríamos nos deixar arrastar pela corrente e parecer gente disposta a brincar com os princípios”. Bento não deu ouvidos a isso e não fez grandes mudanças. A não ser no caso da Secretaria de Estado, na qual, agindo com o conhecimento direto que tinha dos homens e dos organismos vaticanos, fez opções decisivas. Basta lembrar, além da nomeação de Gasparri, chamado para o lugar de Merry del Val como secretário de Estado depois da inesperada morte de Ferrata, os nomes de Bonaventura Cerretti, de Pacelli, de Ratti, do próprio Valfrè di Bonzo (e também de Roncalli e de Montini, que dava então os primeiros passos de sua carreira), todos destinados a cargos de relevo durante o pontificado de Bento. Um papa que escolheu esse nome não apenas em referência ao santo monge de Núrsia, mas também, como ele mesmo dizia (ao que parece), a Bento XIV, que fora seu predecessor tanto na sé de Bolonha quando na de Roma, em meados do século XVIII: jurista como ele e como ele obrigado a se defender daqueles que queriam ensinar doutrina ao papa.
Caridade e obediência são os elementos-chave de sua primeira encíclica programática, Ad beatissimi, de novembro de 1914. Afinal, esses haviam sido os elementos distintivos do trabalho de Della Chiesa, e que caracterizariam seu magistério e sua ação também como papa. Categorias que deveriam valer não apenas ad intra (o que é uma coisa óbvia, mas, talvez também por isso, muito rara de ser praticada), mas também ad extra, frisando, por um lado, o dever de “amor recíproco entre os homens” e, por outro, o princípio apostólico da sujeição a toda e qualquer autoridade legítima.
É interessante sublinhar que a encíclica identificava a raiz última do amor recíproco entre os homens no fato de que Jesus Cristo derramou seu sangue por todos. O Papa o frisava três vezes. Acabava de estourar a guerra, e essa insistência já sugeria implicitamente o quanto era inútil qualquer novo derramamento de sangue. A famosa Nota aos beligerantes de 1º de agosto de 1917, a do “massacre inútil” - que não por acaso começava com Dès le début (“Desde o início de nosso pontificado...”) -, nada mais teria feito senão explicitar esse juízo, consolidado por novos sistemas de ataque, mais bárbaros e sanguinários, como o dos bombardeios aéreos, citando abertamente.
A finalidade dessa Nota, por outro lado, não era definir nem
denunciar, mas, sim, oferecer uma proposta concreta de paz. “Foi a primeira vez
durante a guerra que qualquer pessoa ou potência formulou um esquema detalhado
ou prático para uma negociação de paz” (Pollard, p. 148), com a consciência,
expressa mais de uma vez pelo Papa desde a Ad beatissimi, de que a
paz é a condição para que se realize o amor recíproco entre os homens: “A paz é
um grandíssimo dom de Deus; entre as coisas terrenas, não nos é dado ver nada
mais agradável, nem podemos desejar coisa mais doce: enfim, não podemos
encontrar nada melhor”, escrevia, citando Agostinho, já na Pacem Dei
munus.
Estes foram os artigos de Lorenzo Cappelletti sobre os
papas que adotaram o nome Bento anteriormente publicados em 30Dias:
<BR><BR> 1) Nomen omen, nº 10, outubro de 2005, pp. 64-69;
<BR> 2) Um ‘continuum’ descontínuo, nº 11, novembro de 2005, pp. 38-43;
<BR> 3) Benditos reformadores, nº 12, dezembro de 2005, pp. 40-45.
Mas o nacionalismo de muitos governos, hostis a qualquer solução que não fosse a sanguinolenta das armas, levou ao fracasso da proposta de 1917. Pesou também em sentido negativo a situação de menoridade em que se encontrava a Santa Sé do ponto de vista diplomático. De fato, o papado já não gozava desde 1870 de qualquer soberania, e Merry del Val, durante o pontificado anterior, promovera, se isso era possível, um crescente isolamento, quase se vangloriando de um encastelamento em torno dos valores: com a França, por exemplo, já não havia relações desde 1906. Com a Grã-Bretanha, elas haviam cessado três séculos e meio antes!
Assim, coube a Bento XV (apesar de ter reativado essas relações e muitas outras, mas sem chegar à reconciliação com a Itália) a tarefa de enfaixar as feridas produzidas pelo conflito, organizando campanhas de donativos, trocas de prisioneiros, coletas de informações. A maneira como depois foi louvado por sua ação pareceu às vezes expressar um reconhecimento diretamente proporcional à satisfação pela subalternidade a que essa ação havia se restringido.
Nem a guerra que havia terminado permitiu à Santa Sé participar da Conferência de Paz de Versalhes de meados de 1919. No entanto, Bento XV e Gasparri talvez fossem os analistas mais agudos naquele momento, diríamos hoje, e poderiam ter dado uma contribuição para a paz, se esta tivesse sido a finalidade da Conferência de Paz. Tanto assim, que perceberam logo que as condições impostas aos vencidos não diminuiriam as hostilidades, da mesma forma como sublinharam a impossível autossuficiência das nações que surgiram com a dissolução do Império Austro-Húngaro. “Uma previsão que a história, de maneira até dolorosa demais, demonstrou estar correta”, escreve Pollard.
Também a propósito de um Oriente Médio redesenhado pela queda do Império
Otomano, reinava grande preocupação no Vaticano: a coexistência multirreligiosa
que, no fundo, esse Império havia garantido estava começando a desmoronar bem
naquele momento, como se lê num belo ensaio de Andrea Riccardi de título
revelador, Bento XV e a crise da convivência religiosa no Império
Otomano.
Empreitadas cheias de lucidez
Até aqui, vimos a primeira parte do pontificado de Bento XV, dominada pela emergência da guerra, que durou bem além do final dela. A segunda parte, que cronologicamente mescla-se com a primeira, distingue-se por algumas empreitadas cheias de lucidez. Ainda que o projeto de todas elas não pertença ao Papa, ou que não sejam diretamente obra dele, devem porém a ele o fato de se terem tornado realidade: o Código de Direito Canônico, promulgado em 1917, coletânea iniciada já sob Pio X e devida em grande parte à competência e à capacidade de trabalho de Gasparri; também em 1917, o desmembramento, a partir de Propaganda Fide, de uma autônoma Congregação da Igreja Oriental (depois “das Igrejas Orientais”), cuja presidência foi assumida pelo próprio Papa, pelo interesse que o ligava a ela; e a criação de um Instituto de Estudos sobre o Oriente Cristão. Gestos aparentemente de simples cunho administrativo, mas na realidade significativos de uma concepção da catolicidade que não seria tal sem as Igrejas não-latinas, como frisou, num recente congresso desenvolvido em Anagni, o atual reitor daquele Instituto de Estudos: a abertura de uma nova temporada missionária, inaugurada pela encíclica Maximum illud, que programaticamente liberava a ação dos missionários dos laços perversos com o nacionalismo e o colonialismo, que penalizavam sobretudo o aparecimento de uma hierarquia autóctone na China; e, enfim, o início tímido mas real dos primeiríssimos diálogos ecumênicos, em Malines, com a autorização do Papa bem às vésperas da sua morte.
Além disso, com relação à Itália, ou melhor, à Questão Romana, foi por meio da relação leal entre Bento XV e o antigo colega de escola barão Carlo Monti, diretor-geral das Questões de Culto e, reservadamente, encarregado de negócios do governo italiano junto à Santa Sé, que começou a “Conciliação oficiosa” que dá título aos dois volumes recentemente publicados do diário de Monti, rico em “autenticidade e vigor singulares”, como escreve no prefácio o cardeal Silvestrini.
Da mesma forma, deve-se a Bento XV e a Gasparri o nascimento do Partido Popular
Italiano (o Apelo aos livres e fortes é de 18 de janeiro de
1919). Não no sentido de que o tenham imposto. “O Partido Popular surgiu por
geração espontânea, sem nenhuma interferência da Santa Sé nem pró nem contra”,
escreveu Gasparri em suas memórias. Mas no sentido de que nasceu e se desenvolveu
segundo as coordenadas de aconfessionalidade e reformismo que o teriam dado à
Itália como um fator decisivo do “maior bem-estar de sua convivência”, para
retomar ainda as palavras de Gasparri. Isso, sim, eles realmente quiseram,
escreve padre Sale, agindo também contra aquela parte dos católicos e dos
bispos que “pensava em criar um partido católico fortemente submisso às
diretrizes da hierarquia”.
Explicit.
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