Santo Agostinho: o cristianismo como verdadeira religião
31/05/2010
Há uma interessante discussão entre Santo Agostinho e o
filósofo pagão Marcos Terêncio Varrão (116-27 a.C.), no livro “A Cidade de
Deus”, do santo doutor de Hipona. Primeiro Agostinho expõe o pensamento de
Varrão e depois irá argumentar a favor do cristianismo como vera
religio.
Aquele filósofo tinha a visão estóica de Deus e do mundo.
Deus era para ele entendido como “animam motu ac ratione mundum
gubernantem” (“alma que governa o mundo por meio do movimento e da
razão”). Essa alma do mundo não era objeto de culto para eles, quer dizer,
verdade e religião, inteligência racional e ordenamento do culto estavam em
âmbitos diferentes. Dessa forma, a religião não pertence ao âmbito da
realidade (res), mas ao âmbito dos costumes (mores). Sendo
assim, não foram os deuses que criaram o Estado, mas foi este que estabeleceu
os deuses que deveriam ser adorados, para assim manter a ordem do Estado. A
religião é pois um fenômeno político.
Segundo Varrão há três tipos de “teologia”: a theologia
mythica, a theologia civilis (politikéé) e a theologia naturalis (φυσιkή). Os
teólogos da primeira são os poetas, são os cantores de Deus; os teólogos da
segunda são os filósofos, isto é, os sábios que, indo além do costume indagam a
realidade, a verdade; os teólogos da teologia civil são os “povos”, que, na sua
escolha, não aderiram aos filósofos (e à verdade), mas aos poetas, às suas
formas e imagens. A teologia mítica corresponde ao teatro, que possuía
uma característica inteiramente religiosa e cultual; a teologia política
corresponde à urbe, porém o espaço da teologia natural seria o cosmos. A
teologia mítica teria como conteúdo as fábulas criadas pelos poetas; a teologia
estatal, o culto; a teologia natural responderá à pergunta: quem são os deuses?
Dessa forma, a teologia natural seria a desmitologização, o
esclarecimento (Ilustração) que vê criticamente para além da aparência mítica e
supera pelas ciências da natureza. Culto e conhecimento aqui se separam: o
culto permanece necessário como conveniência política; o conhecimento atua como
destruidor da religião, e por isso, não pode ser anunciado em público. Varrão
ainda diz que a teologia natural ocupa-se da “natureza dos deuses” (que no
existem) e as outras duas tratam da divina instituta hominum (as
instituições divinas dos homens). Com isso “a teologia não possui, nenhum
deus, apenas ‘religião’; a ‘teologia natural’ não tem religião, apenas uma
divindade”.
Santo Agostinho situa o cristianismo, segundo a tríade de
Varrão, sem nenhuma dúvida no âmbito da “teologia física”, isto é, no âmbito do
esclarecimento filosófico. Com isso continua a tradição antiga, de Paulo (Rom
1) aos apologistas do século II, que, por sua vez, seguem a teologia sapiencial
do Antigo Testamento (e os Salmos). Sendo assim, o cristianismo encontra sua
preparação interior no conhecimento filosófico e não nas religiões. Para
Agostinho, pois, o monoteísmo bíblico se identifica com os conhecimentos
filosóficos sobre a razão de ser do mundo.
Dessa forma, a religião cristão não se baseia em poesia ou
em política, mas o seu fundamento é o verdadeiro conhecimento. No cristianismo,
o conhecimento racional tornou-se religião, e não seu adversário. O
cristianismo entendeu-se, desde o início, como a vitória sobre o mito, como
vitória do conhecimento, como vitória da verdade e por isso, deve-se considerar
a si mesmo como universal, como aquilo que todos os povos buscam. O
cristianismo deve ser levado a outros povos, não pela força, mas como a verdade
que torna supérflua a aparência. Por isso, o cristianismo é visto como
intolerante com os deuses, como inimigo das religiões, até mesmo foi
considerado “ateísmo”, pelos pagãos. O cristianismo assim perturbava o
aproveitamento político das religiões. O cristianismo colocava em perigo as
bases do Estado, não querendo ser uma religião entre as religiões, mas a
vitória do conhecimento sobre as religiões.
Quando o Deus alcançado pelo pensamento vem ao nosso
encontro no interior de uma religião, como o Deus que age e fala, então
pensamento e fé se reconciliam. A partir de Cristo, o monoteísmo judaico
torna-se universal, e a unidade do pensamento e a fé, a religio vera,
é acessível a todos. Os primeiros cristãos (até a Idade Média) estavam
convencidos que o cristianismo era filosofia, a perfeita filosofia, isto é, a
filosofia que atingiu a verdade. A filosofia era entendida, então, como arte de
viver e morrer corretamente, o que é alcançado só pela luz da verdade.
Da união entre o conhecimento e a fé a teologia cristã
trouxe as seguintes correções na ideia filosófica de Deus antiga: 1) o Deus
adorado pelos cristãos é realmente natura Deus (Deus por natureza) diferente
dos deuses míticos e políticos. Ao mesmo tempo os cristãos sabiam que non
tamen omnis natura est Deus (nem tudo o que é natureza é Deus). Deus é
Deus por natureza, mas a natureza, enquanto tal, não é Deus. Dá-se então uma
separação entre a natureza que engloba tudo e o ser que a fundamenta e lhe dá
seu origem. Só assim se separam física e metafísica, natureza criada e Deus
criador. Só ao Deus que é reconhecido na natureza (por meio do nosso
pensamento) é adorado; 2) o Deus que antecede à natureza, como nos diz a
Bíblia, se volta para o homem, não é mera natureza, mas entrou na história,
veio ao encontro do homens, que por isso, podem encontrá-lo. Dessa forma o
conhecimento racional pode tornar-se religião, porque o próprio Deus do
conhecimento entrou na religião.
A conclusão é que no cristianismo o vínculo da religião com
a metafísica e o vínculo da religião com a história se harmonizam. A partir de
então a metafísica e história passam a constituir a apologia do cristianismo
como vera religio. Com o Cristianismo razão e fé se encontram em
harmonia, esse encontro “construiu o Ocidente”, renovou a cultura, transformou
os povos, unindo-os em uma grande família, apesar de todas as resistências.
Segundo Ratzinger, as Universidades, surgidas na Idade Média cristã tiveram a
sua origem na pergunta socrática: que é o homem? Só no seio do cristianismo,
quando fé e razão se encontraram, se pôde buscar com seriedade uma resposta a
essa pergunta.
Bibliografia:
RATZINGER, J. Fé, Verdade Tolerância: o Cristianismo e as
grandes religiões do mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e
Ciência Raimundo Lulio, 2007.
________________. Discurso do Santo Padre Bento XVI para o
Encontro na Universidade de Roma “La Sapienza”. 17 de janeiro de 2008.
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