OPÇÃO NÃO BASTA: OS POBRES E O REINO
08/10/2025
Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)
Chamar o cuidado com os pobres de “opção” soa civilizado,
mas trai a realidade. Uma opção oferece alternativas, admite que possamos
escolher outra coisa. O Evangelho não nos deixa essa saída. Os pobres e os
últimos não têm quem os ajude, e por isso não pedem apenas simpatia, mas
reclamam responsabilidade.
A tradição bíblica encontrou uma palavra para esse vínculo
que não depende do gosto. Chama-se goel,
o resgatador, o parente que, por direito e por amor, se interpõe entre a
miséria e a pessoa ferida.
Quando a terra era perdida, o goel a recomprava ou redimia (Lv
25,23-28.47-55; Rt 2–4). Quando a honra era pisada, ele se punha diante (Nm
35). Era dever, não cortesia!
Havia ainda um último recurso, reservado a quem não tinha
parente nem voz – o de poder recorrer diretamente autoridade máxima, como fez a
sunamita que pediu ao rei a devolução de sua casa e seus campos (2Rs 8,3-6). O
trono, em Israel, existia para julgar a causa do pobre e do aflito, não para
ornamentar banquetes (Sl 72,1-4.12-14; Pr 31,8-9). Nesse horizonte, dizer que
“preferimos” o pobre é pouco.
No pacto de Deus com o seu povo, o pobre não entra como
preferência, mas como prioridade.
Os profetas repetiram que o Senhor se apresenta como goel do órfão, da viúva, do
estrangeiro (Dt 10,18-19; Is 41,14; 43,1; 54,5). Não o faz porque eles são
moralmente superiores, mas porque não têm defesa. Quando todos os vínculos
falham, Deus se declara parente deles. É por isso que a Escritura atrela a
justiça à forma como tratamos quem não tem com quem contar: “Não maltratarás a
viúva nem o órfão” (Ex 22,21).
O critério é fidelidade à aliança, não filantropia. Jesus
assume essa herança e a leva mais alto. Em Nazaré, ao proclamar o cumprimento
de Isaías — “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar
a boa-nova aos pobres” (Lc 4,18; cf. Is 61,1), — Ele se apresenta como o grande goel. Devolve a vista,
levanta quem está caído, perdoa dívidas que acorrentavam. No Calvário, paga com
a própria vida o preço que estava além de nossas posses. A Igreja recebeu essa
herança jurídica e afetiva ao se propor de ser, na história, o corpo do Ressuscitado
que continua a obra do goel.
A literatura compreendeu isso antes de muitos tratados
teológicos. Dostoiévski, em Crime
e Castigo (1866),
apresenta em Sônia Marmieládova essa mesma gravidade do amor. Uma jovem que
escolhe os últimos para permanecer junto deles quando todos recuam, e essa
permanência revela o que o Evangelho chama de misericórdia.
Shakespeare, no Rei
Lear (1606), pôs nos
lábios do rei, já moribundo, a intuição tardia de que não cuidara dos “pobres
desprovidos” e que o poder, sem essa justiça, é vento (Ato III, Cena 4).
Dickens repete, em romances como Oliver
Twist (1838) e Bleak
House (1853), que a
caridade anônima e distante é uma ficção benigna.
Muda o destino dos pequenos quem entra na casa, aprende o
nome e interrompe o inevitável curso da ruína. Em todos esses mundos, o pobre
não é causa para adeptos, é vínculo que interpela, como parente de
sangue.
O goel age por direito; e o rei, quando
é digno da coroa, torna-se o último goel do seu povo (Sl 72,12-14). A
Bíblia ama retratar Deus como esse rei acessível. Jesus acolhe esse critério e
o inscreve no coração de sua autoridade: “Tudo o que fizestes a um destes
pequeninos, meus irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25,40).
Não é só opção. Há a construção de uma identidade, onde
tocar o pobre é tocar o próprio Cristo. A Igreja herdou esse ministério do goel para que a
terra, a liberdade e a honra dos últimos não permaneçam entregues à
sorte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário