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domingo, 19 de fevereiro de 2023

A antiga história de Nabot se repete cotidianamente (1/3)

Abel assassinado pelo seu irmão Caim. 
Catedral de Monreale (século XII), 
Palermo, Itália | 30Giorni

Arquivo de 30Dias – 04/2009

A antiga história de Nabot se repete cotidianamente

Assim inicia Santo Ambrósio a sua obra De Nabuthae, que toma o nome do mísero que contrariou o então potente do trono.

O retrato mais antigo de Santo Ambrósio, que remonta ao séc. V. Detalhe do mosaico da Capela de São Vítor, na Basílica de Santo Ambrósio em Milão | 30Giorni

de Lorenzo Cappelletti

Era uma vez um homem chamado Nabot que possuía em Jezrael um terreno desejado por Acab, rei de Samaria. Para tomar a posse do terreno, o rei fez várias ofertas, mas Nabot recusou todas: “O Senhor me livre de ceder-te a herança dos meus pais”. O orgulho do rei ficou ferido. À sua mulher Jezabel, não passou despercebido o quanto o marido se irritara e promete: “Eu te darei a vinha de Nabot”. Então ordena que se encontrem duas falsas testemunhas que lhe sejam hostis e acusem publicamente Nabot de ter amaldiçoado Deus e o rei. Dito e feito. Nabot foi lapidado e Acab tomou posse da vinha. Vigésimo-primeiro capítulo do Primeiro (Terceiro, nas antigas edições da Bíblia) Livro dos Reis. A história, que não é uma fábula, remonta à metade do século IX antes de Cristo. Mas a antiga história de Nabot se repete cotidianamente: Nabuthae historia tempore vetus est, usu cottidiana, assim inicia Santo Ambrósio na sua obra, o De Nabuthae, que toma o nome daquele mísero que contrariou o então potente do trono.
“Não nasceu apenas um Acab, mas o que é pior, a cada dia nasce um Acab e jamais morre por este mundo. Se há um a menos surgem logo outros; são mais numerosos os que roubam do que os que perdem. Não apenas um Nabot pobre foi assassinado; a cada dia um Nabot é oprimido, a cada dia um pobre é assassinado” (1, 1). Na verdade não ameniza a nossa curiosidade saber que a história de Nabot se repete cotidianamente. Se àquela de hoje assistimos, para poder entender a daquela época deveríamos ter diante dos nossos olhos o que tinha diante dos olhos Ambrósio, os rostos, as vozes, as fisionomias que não se repetem dos Acab e dos Nabot da época. Devemos nos contentar da reconstrução, por força de coisa genérica e parcial, operada pelos historiadores através dos documentos, e imaginar Milão no crepúsculo do século IV.
Daquilo que podemos entrever, na época, todo o Ocidente estava preocupado com uma crise demográfica que, acompanhada à política monetária deflacionária do tempo, significava geral diminuição da produtividade, redução do comércio, empobrecimento. Na Itália – dividida entre um Vicariatus Italiae que compreendia todo o norte e a atual Suíça, e onde se destacavam Milão, Turim e Ravena, e um Vicariatus Romae que compreendia todo o centro-sul e as ilhas, que gravitavam em torno da antiga capital imperial – a crise atingia especialmente o norte, onde, entre outras coisas, era maior a presença, digamos assim, dos imigrantes bárbaros. O aumento do latifúndio improdutivo às custas dos pequenos proprietários e a riqueza imponente de alguns resultavam particularmente escandalosas. Também porque muitos já eram cristãos. Imaginemos Ambrósio. Ambrósio é um observador pragmático, não concebe a fé como ligada a um projeto cultural. Salta da fé à política e da política à fé. Certamente levando consigo a cultura. Mas, como o Rodrigo Mendoza, de Mission, arrastava e não empurrava para frente a sua bagagem de quinquilharias barulhentas. Expiando assim aquela retórica clássica à sombra da qual crescera. Com efeito, por um lado (escrevia Pierre Courcelle, o latinista do Collège de France, falecido em 1980, concluindo um artigo seu que já é um clássico: Polemiche anticristiane e platonismo cristiano: da Arnobio a sant’Ambrosio) Ambrósio era impregnado mais do que os outros pelas teorias dos neoplatônicos: “Tão impregnado pela doutrina deles e pelo seu léxico metafórico, que algumas vezes chegava até a recair num verdadeiro e próprio neoplatonismo [...]. A síntese que fora apenas esboçada por Arnóbio, foi levada bem adiante por Ambrósio, quase adiante demais". Mas por outro lado a pesquisa sugere a Courcelle “uma importante correção. Aquele mesmo Ambrósio que nos testemunha um tão forte desejo de síntese, é também capaz, se colocado diante de uma doutrina que lhe parece absolutamente irreconciliável com a fé cristã, de rejeitá-la sem hesitações e de atacá-la com a mais cruel das ironias”. No caso estudado por Courcelle, Ambrósio, para salvaguardar o depositum fidei, estava pronto a armar um contra o outro, autores que faziam parte ambos da sua bagagem e usar “as velhas armas forjadas pelo cético Luciano contra o platonismo pitagorizante”. Para que assim, entre os dois adversários, pudesse sair ganhando o depositum fidei.

Fonte: http://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF