DANTE NOS ESTADOS UNIDOS
Arquivo 30Dias nº 05 - 2006
E então saímos para ver as estrelas e as listas
O interesse por Dante nos Estados Unidos, explicado por uma
docente da James Madison University da Virgínia.
de Giuliana Fazzion
A presença de Dante na cultura americana remonta a
1867, quando o poeta Henry Wadsworth Longfellow concluiu a primeira tradução
americana da Divina Comédia. O poeta Longfellow, em 1865, fundou um
círculo para a tradução de Dante em sua casa em Cambridge, Massachussetts. O
poeta James Russell Lowell, o médico Oliver Wendell Holmes, o estudioso de
história George Washington Greene, o editor James Fields e Charles Norton,
professor de história da arte, colaboraram com Longfellow na primeira tradução
integral da Divina Comédia. Seu grupo se chamou “Dante Club” e, em
1881, tornou-se oficialmente “The Dante Society of America”, cujos três
primeiros presidentes foram Longfellow, Lowell e Charles Elliot Norton. Antes
da tradução de Longfellow, Dante era pouco conhecido nos EUA (na cultura
popular), onde não se falava italiano, não se ensinava frequentemente a língua
italiana, não se viajava para a Europa com assiduidade, e os poucos italianos
presentes no País estavam espalhados um pouco por toda a parte.
Como Dante chegou à América? Via Inglaterra, onde, na época
do Renascimento, havia um grandíssimo interesse pela língua e pela literatura
italianas. Depois, esse interesse diminuiu com o fim da era elisabetana. Mas
foi retomado nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros dez anos do XIX,
e se concentrou muitíssimo no estudo da poesia de Dante. Assim, foi em inglês
britânico que a Divina Comédia foi traduzida inteiramente pela
primeira vez. E foi assim que atravessou o oceano e encontrou seus primeiros leitores
americanos.
Não foi, porém, um caso de “vim, vi, venci”: Dante, como
todos os imigrantes do Velho Continente, teve de esperar muitos anos,
pacientemente, antes de conquistar seu lugar na nova terra.
Por muitos aspectos, poderia parecer singular o fato de o
interesse por Dante ter encontrado nos Estados Unidos da América um
fertilíssimo terreno de desenvolvimento, desde o início e das mais diversas
formas. A imagem da América expansiva e um pouco barulhenta, difundida pelo
cinema e por parte da literatura, não corresponde totalmente à verdade. Pois,
na realidade, a América oculta componentes complexos, tortuosos, e continua a
ser atravessada, como escreveu Perry Miller (autor de estudos sobre a ideologia
puritana), pela “corrente subterrânea” das tensões ético-religiosas ligadas às
suas origens, ao seu nascimento. Essa sensibilidade perante o aspecto
ético-religioso é um dado fundamental para entender a América, que “nasceu como
mito religioso e se configurou inicialmente como sonho de uma nova polis do
outro lado do oceano, de uma nova Jerusalém desejada com intensidade quase
agostiniana e ao mesmo tempo com vigor dinâmico e ativista. Essa vasta e
intacta paisagem, esse espaço americano era um campo de aventura e terreno
cheio de misteriosas simbologias”. Apesar de todas as enormes mudanças que
ocorreram e do fato de milhões de imigrantes terem depois, de todas as partes,
se transferido para o Novo Mundo, a base de tudo continuou a ser a aventura dos
grupos puritanos, os quais, perseguidos na Inglaterra, atravessaram o Atlântico
a bordo da “Mayflower” no final do outono de 1620 e fundaram nas vizinhanças de
Cape Cod a colônia de Plymouth.
Os puritanos eram zelosos, rigorosos, exasperavam até o mais
lúgubre fanatismo o princípio protestante da consciência livre, da relação
direta e dramática entre o homem e Deus. E, sobretudo, tinham uma sensibilidade
pronta a inflamar-se pelos símbolos e pelas alegorias, enquadravam eventos,
pessoas e natureza numa espécie de código de sinais e figuras, quase
tardo-medieval. Além disso, como diz um escritor ao falar da filosofia
americana, o caráter da religiosidade puritana se desenvolveu desde as origens
numa direção rigorosamente lógico-intelectualista, graças à qual não era
possível chegar, ou tentar chegar, a entender o próprio Deus sem desenvolver
“uma história de disciplina da mente humana”.
Para uma cultura como a puritana, caracterizada por um
trabalho de escavação tenaz, muitas vezes obsessivo (basta lembrar os diários
dos puritanos), e pela recorrente análise dos temas do pecado e da salvação,
boa parte da literatura italiana veio a parecer “cheia de um caráter profano”,
impregnada de espírito “papista” e “paganizante”. Aos puritanos mais
obstinados, poderia chegar a parecer que na literatura italiana se concentrasse
tudo aquilo de que o homem puritano e “virtuoso” deveria fugir.
Enquanto isso, Dante parecia ser o único, ou quase o único, passível de ser “recuperado”, pelas qualidades de energia ética e firmeza de caráter. A própria mídia protestante já havia lançado mão, para as suas polêmicas antipapistas, de posturas e trechos de Dante. Um exemplo significativo nos é oferecido, nos Estados Unidos, pelo eminente teólogo e pregador John Cotton, que incluiu Dante numa série de figuras que considera chamadas por Deus a testemunhar em favor de um “primeiro renascimento”, ao qual se seguiria, por obra do protestantismo, uma completa “ressurreição” do cristianismo baseado no “ministério do Evangelho”.
Entre o Iluminismo e o Pré-Romantismo
Mas no século XVIII e no período pré-romântico, o puritanismo ia já absorvendo
outros filões culturais e, com as influências exercidas pela nova física
newtoniana, por Locke e pelo movimento iluminista em geral, ia-se cada vez mais
estreitando “a relação entre Deus e a razão”. Durante todo o século XVIII, o
intelectualismo teológico e o ativismo puritano iam-se fundindo com posições de
iluminismo moderado e com conceitos como liberdade e salvação cada vez mais
empregados em sentido político-constitucional. A respeito da literatura e da
própria imagem da Itália continuava, porém, a prevalecer a postura de
desconfiança-deferência. Associava-se à imagem da Itália a evocação de paixões
exageradas, de fascinantes e ao mesmo tempo desastrosas seduções expressas numa
“língua elegante”. No entanto, Dante parecia situar-se numa espécie de zona de
grandeza severa e solitária, o que foi ainda mais sublinhado com a difusão das
primeiras tensões e inquietações pré-românticas, do gosto pelo excelso e pelo
sublime. Não deve admirar que a primeira tradução de um trecho de Dante que
surgiu nos Estados Unidos tenha sido a do famosíssimo episódio, horrível e
patético, do conde Ugolino, publicado na revista New York Magazine em
1791. O autor era William Dunlap, escritor, pintor, ativíssimo e aventureiro
empreendedor teatral, diretor e operador cultural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário