Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta
Apostólica “Mulieris Dignitatem”
Estudo de Jutta Burggraf, Doutora em Sagrada Teologia e em Pedagogia, publicado em “Romana”, nº 7 (1988).
14/08/2020
2. Pessoa, comunidade, dom de si
Já nas catequeses das quartas-feiras de 1979 a 1981 sobre a
Teologia do Corpo, João Paulo II havia analisado a fundo os três primeiros
capítulos do livro do Gênesis. Seguindo aquela exegese, reafirma agora que os
textos sobre a criação do homem revelam “a base imutável de toda a antropologia
cristã” (MD, 6).
Gn 1,27 afirma explicitamente que Deus criou o
homem – homem e mulher – à sua imagem e semelhança. Isto significa, em primeiro
lugar, que os dois sexos possuem a mesma natureza de seres racionais e livres;
que ambos receberam o mandato comum de submeter a terra; e finalmente que cada
um dos dois tem uma relação direta e pessoal com Deus. Quer dizer, tanto o
homem como a mulher são pessoas: são – como repete frequentemente o Papa
citando a Gaudium et Spes (n. 24) – amados por Deus “por si
mesmos”, e nisto reside sua dignidade (cfr. MD, 7, 10, 13, 18, 20, 30). A
mulher não é, pois um ser definido através do homem e em função do homem. Não
recebe do homem a sua própria dignidade, mas a possui originariamente em si
mesma.
Gn 2, 18-25 continua posteriormente a ensinar as
verdades fundamentais sobre o homem. Narra a criação da própria matéria,
daquela costela, na qual João Paulo II vê uma expressão plástica da identidade
da natureza entre o homem e a mulher. Esta é como o “outro eu” na humanidade
comum (MD, 6). A unidade dos dois expressa assim, numa medida ainda mais
elevada, a semelhança com Deus na medida em que, de certo modo, reproduz aquela
unidade na distinção que existe de modo supremo na Trindade.
A fé trinitária, aqui pressuposta pelo Papa, afirma, com
efeito, que a vida divina é comunhão do Pai com o Filho e o Espírito Santo, os
quais sendo Um Único e o mesmo Deus Eterno e Onipotente, distinguem-se
realmente como Pessoas[4].
O Pai é o que é pelo Filho. Sua “personalidade” se realiza em ser Pai do Filho:
está em relação total e constitutiva com o Filho, com o Qual, pelo Qual e no
Qual é. Da mesma forma, o Filho é o que é pelo Pai. Sua “personalidade”
consiste em ser Filho do Pai e na correspondência ao amor que recebe
eternamente d’Ele. É com o Pai, no Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o Amor
subsistente do Pai e do Filho; procede de ambos como fruto da relação Pai-Filho
e, ao mesmo tempo, misteriosamente, torna possível tal relação. Por Ele, com
Ele e n’Ele, o Pai ama o Filho e o Filho ama o Pai. Eis como o Espírito Santo
consuma a unidade e a diversidade na Trindade.
João Paulo II destaca que, embora Deus tenha querido
revelar-se em seu desígnio de salvação, sobretudo com nomes masculinos, isso
não significa que Ele pode ser concebido segundo categorias finitas de
criaturas. N’Ele se baseiam todas as perfeições das criaturas e, portanto, não
só a paternidade, mas também a maternidade. O Santo Padre indica muitos textos
nos quais a Escritura nos mostra os traços maternos do Amor de Deus, que
consola seu próprio Filho (Is 66, 13), não O pode esquecer (Is 49, 14-15), abraça-O
carinhosamente (Sl 131, 2-3), cuida d’Ele e O nutre (Is 31, 20): “O amor de
Deus é apresentado em muitas passagens como amor masculino de
esposo e pai (cfr. Os 11, 1-4; Jr 3, 4-19) mas às vezes também como Amor
feminino de mãe” (MD, 8).
Alguns expoentes da teologia feminista[5].
insistiram frequentemente, recentemente e com gosto, sobre a “feminilidade” de
Deus. Estas teses, mesmo remediando indubitáveis lacunas da teologia
tradicional, nem sempre conseguiram respeitar a justa medida. João Paulo II
parece aceitar os detalhes mais relevantes que, por outro lado, se podem já
encontrar nos autores dos primeiros séculos[6],
mas os harmoniza com a tradição da Igreja. A descoberta do “rosto materno” de
Deus, tão querido para a teologia de hoje, contribuirá realmente para
enriquecer os contornos da imagem de Deus se não obscurecer o aspecto paterno.
Pode-se, pois, afirmar que em Deus encontramos tanto a “masculinidade” como a
“feminilidade”, não, no entanto, através de um processo de humanização de
estilo pagão, mas analogicamente, como arquétipo ideal, de modo exemplar e
eminente (cfr. MD, 8).
Ser pessoa à imagem e também à semelhança de Deus significa,
portanto, para o homem, existir “em relação” a outro e encontrar nisso um novo
eu na comunicação do amor. Ser homem quer dizer comunhão interpessoal (cfr.
MD, 7), já que o ser humano não foi criado sozinho, mas como homem e mulher
desde o princípio: “Na unidade dos dois, o homem e a mulher são chamados desde
o princípio não só a existir um ao lado da outra ou também juntos; mas são
também chamados a existir reciprocamente um para o outro” (MD7). Baseando-se
nesta observação, João Paulo II esclarece que a ajuda da qual fala o Gênesis é
uma “ajuda recíproca” do homem para a mulher e da mulher para o homem. Os dois
sexos se ajudam a ser plenamente humanos. A própria natureza os ordenou para
completar-se mutuamente, de modo que cada um seja, no próprio âmbito, superior
ao outro. Ambos possuem qualidades espirituais específicas, como confirma a
pesquisa médico-psicológica moderna[7].
Por outro lado, a palavra “ajuda” é levada por João Paulo II
a significar o fato de que a pessoa humana como tal, homem e mulher, alcança
sua própria plenitude só no dom sincero de si. Realiza-se em dar-se. Aqui está
o fundamento de todo o êthos humano. A pessoa é, pois, revelação de uma
dignidade e de uma vocação (cfr. MD, 7). Quanto às relações entre os dois
sexos, trazem consigo que o homem e a mulher foram criados para servir-se
mutuamente, em mútua e livre subordinação por amor.
3. A mulher e o domínio masculino
Os textos do Gênesis sobre a situação do homem e da mulher
no “princípio” contêm também a explicação das desarmonias da realidade: “O
pecado se inscreve precisamente neste princípio e se revela como contraste e
negação” (MD, 9). Como recorda o Concílio Vaticano II, a imagem de Deus no
homem, mesmo não tendo sido apagada pelo pecado, foi consideravelmente ofuscada
(MD, 9)[8].
A perda da íntima união originária com o Criador implica uma alteração na
relação recíproca entre os sexos. O homem e a mulher se encontram um frente à
outra e inclusive a natureza se rebela contra eles (cfr. MD, 9).
Quanto mais o homem se afasta de Deus pelo pecado, tanto
menos reconhece que só pode realizar a própria vida através da preocupação pelo
outro e menos respeita os outros homens. João Paulo II observa que as tristes
consequências desta alteração afetam sobretudo o sexo feminino: o homem
desrespeita a dignidade da mulher e a priva de seus direitos, degradando-a com
frequência ao fazê-la objeto de posse e de prazer. O domínio e o utilitarismo
substituem o amor e o dom de si, com todas as formas de traição à pessoa que
estas palavras encerram. O Santo Padre condena energicamente as injustiças à
quais está exposta a mulher e afirma que elas ferem também o homem: pois quando
ele ofende a dignidade e a vocação da mulher “age contra a própria dignidade
pessoal e a própria vocação” (MD, 10).
João Paulo II põe-se sem vacilações ao lado dos que lutam
pela igualdade de direitos sociais e políticos das mulheres. Também a propósito
disto, os ensinamentos do Concílio Vaticano II são claros. O texto mais famoso
não se encontra na Mulieris Dignitatem, mas está na Gaudium et Spes,
que por sua vez é citada 13 vezes na Carta Apostólica: “No entanto, qualquer
tipo de discriminação dos direitos fundamentais da pessoa, tanto no campo
social como no cultural, em razão do sexo, da estirpe, da cor (...) deve ser
superado e eliminado, como contrário ao desígnio de Deus”[9].
Em outro lugar, o documento diz: “As mulheres reivindicam a paridade com os
homens, não só de direito, mas também de fato, onde ainda não a alcançaram”[10].
Apesar de alguns abusos e da unilateralidade, os movimentos
pelos direitos da mulher contribuíram inegavelmente para significativos
progressos no desenvolvimento da sociedade. Mas não se pode esquecer que tais
passos em frente são, apesar de tudo, insuficientes, porque a defesa da
dignidade da pessoa representa, em cada geração, uma tarefa sempre nova para
cada homem e cada mulher (MD, 10). A oposição das mulheres ao domínio dos
homens não deve levar à “masculinização” e à deformação da natureza feminina. Neste
sentido, Mons. Escrivá escreveu: “Desenvolvimento, maturidade, emancipação da
mulher, não devem significar uma pretensão de igualdade – de uniformidade –
uma imitação do modo de atuar masculino: isso seria um logro,
seria uma perda para a mulher”[11].
A igualdade não deve ser confundida com a identidade, porque do contrário a
mulher perderia tudo o que constitui “a sua riqueza essencial”. “Os recursos
pessoais da feminilidade certamente não são menores que os recursos da
masculinidade, mas são diversos” (MD, 10); seu desenvolvimento requer a
libertação de qualquer coação arbitrária (MD, 10).
Sobre as consequências do pecado instaura-se, no entanto, a
redenção que, neste contexto, representa uma reintegração da ordem original a
um nível superior, restituição da dignidade da mulher e do homem. Como Eva é
“testemunha desde o princípio”, Maria é “testemunha do novo princípio e da nova
cultura” (MD, 11)[12].
Ela é “o novo princípio da dignidade e da vocação da mulher, de todas as
mulheres e de cada uma” (MD, 11). Tanto no início como no momento crucial da
história da humanidade, encontramos uma mulher que influi de modo determinante
no desenvolvimento da história. A consideração desta realidade poderia fazer
desaparecer definitivamente o costume de designar a mulher como o sexo “fraco”
ou “passivo”. Seu papel no destino da humanidade revelar-se-ia decisivo, se ela
realmente desenvolvesse as virtualidades das quais é depositária para a
salvação do mundo.
4. Cristo, supremo protetor da mulher
Cristo oferece um testemunho riquíssimo “do que a realidade
da redenção significa para a dignidade e a vocação da mulher” (MD, 12).
Inclusive quem escuta com atitude crítica o ensinamento da Igreja, reconhece
como Cristo “se constituiu, perante seus contemporâneos, promotor da verdadeira
dignidade da mulher” (MD, 12). Não é, pois, uma casualidade o fato de o
capítulo sobre Cristo e as mulheres marcar o núcleo central da Mulieris
Dignitatem: com efeito, é Cristo quem oferece a norma e a medida da ação
dos seus discípulos.
O Santo Padre recorda com alguns exemplos como Jesus
restabelece a ordem alterada pelo pecado, como reconcilia o homem com Deus e
com os outros homens, como promove a justiça acolhendo especialmente os débeis.
Entre os setores da população mais expostos à injustiça destacam-se, no
judaísmo tardio, as mulheres, às quais nem sequer era reconhecida plenamente
uma personalidade madura. Pesquisas recentes mostraram, entre outras coisas,
que o lugar da mulher na casa não era com o marido, mas ao lado dos filhos e
dos escravos. O estudo da Lei lhes era inclusive expressamente proibido. Um
famoso rabino formulou assim esta proibição: “melhor queimar as palavras da
Torá, antes que confiá-las a uma mulher”[13].
Cristo opôs-se radicalmente a semelhante discriminação. A
sua conduta mostra-o não apenas totalmente livre dos preconceitos sociais da
época, mas também positivamente disposto a testemunhar, através de relações
espontâneas e diretas, que Deus ama qualquer criatura “por si mesma” (MD, 13).
No acolhimento de Jesus às mulheres, os contemporâneos não conseguiram ver um
testemunho da igualdade dos dois sexos; assim, alguns se escandalizaram; os
próprios discípulos “se maravilharam” (Jo 4, 27). Mas Ele tinha
vindo liberar o homem, e não se deixou limitar pelos convencionalismos e
considerações de oportunidade, que teriam desnaturalizado a sua missão
salvadora. Os motivos que fizeram de Cristo “sinal de contradição” (Lc 2,
334) foram eminentemente teológicos e faziam referência à sua própria
personalidade divina; mas entre as razões de tão tenazes oposições aparece a
sua misericórdia para com as mulheres e, em particular, para com as que eram
consideradas “pecadoras públicas”. Com relação a semelhantes situações, João
Paulo II sublinha a atualidade do problema recordando o perpetuar-se do juízo
discriminatório que ainda tende a fazer da mulher a única culpada e condena-a a
pagar “sozinha”, enquanto esquece as transgressões ou os abusos do homem que a
abandona com sua maternidade, rejeita a própria responsabilidade diante da nova
vida e não raramente a empurra ao aborto (cfr. MD, 14).
E além de tudo isso, Cristo compromete profundamente as
mulheres no plano da redenção, chamando-as a colaborarem na instauração do
reino (MD, 15): fá-las participantes da mensagem evangélica não só através da
transmissão da fé, mas ainda lhes confia um papel de destaque no anúncio da
salvação. É impressionante naquele tempo que Ele se entretenha em dialogar com
as mulheres sobre os mistérios de Deus. E elas respondem-lhe mostrando uma
especial sensibilidade, que João Paulo II define como “autêntica ressonância da
mente e do coração” (MD, 15). É uma resposta de fé que supera qualquer
obstáculo e oferece a prova definitiva do sim aos pés da Cruz. Na hora suprema
são as mulheres que dão o testemunho mais vigoroso de união com Cristo. “Nesta,
que foi a mais dura prova de fé e de fidelidade, as mulheres se mostraram mais
fortes que os apóstolos” (MD, 15).
Elas foram também as primeiras que testemunharam a
Ressurreição. Os acontecimentos da manhã de Páscoa confirmam que Cristo confia
sobretudo às mulheres o anúncio da Boa Nova restituindo-lhes assim plenamente a
sua dignidade. Não surpreende que a defesa da igual dignidade dos filhos de
Deus e da “nova medida” alcançada em Cristo pela peculiar vocação da mulher,
realizada pelo Santo Padre, no n. 16 da Mulieris Dignitatem, tenha
levado a chamá-la de um documento do feminismo cristão.
Jutta Burggraf
[4] Cfr.
SÃO THOMAS DE AQUINO, S. Th. I, qq. 28-38; SANTO ALBERTO
MAGNO, S. Th. I, tr 9, qq. 37 ss; Ed. Col. (1951 ss), 34, 1.
[5] Cfr.
M. DALY, Jenseits von Gottvater, München 1980 (Boston 1973).
[6] Cfr.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Quis dives salvetur? 37, 2 ss: PG 9,
642 ss.
[7] Cfr.
B. FLAD-SCHNORRENBERG, Der wahre Unterschied. Frau sein-angeboren oder
angelernt? Freiburg 1978 ; F. MERZ, Geschleschtsunterschiede
und ihre Entwicklung. Lehrbuch der differenziellen Pyschologie III, Göttingen
1979 ; E. SULLEROT, die Wirklichkeit der Frau, Paris 1978.
[8] Cfr.
CONCÍLIO VATICANO II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 13.
[9] Ibid.,
n. 29
[10] Ibid.,
n. 9; cfr. também MD, 1
[11] JOSEMARIA
ESCRIVÁ, Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 87.
[12] Cfr.
SANTO AMBRÓSIO, De institutione virginum, V, 33: PL 16, 313.
[13] Cfr.
G. SIEGMUND, Die Stellung der Frau in der Welt von heute, Stein
am Rhein 1981, p. 54.
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