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terça-feira, 9 de setembro de 2025

ÁFRICA: Wangechi Mutu - A ancestralidade africana na Galleria Borghese em Roma

 
Wangechi Mutu - "Older Sisters" - Galleria Borghese

Visitável na Galleria Borghese, até 14/9/2025, a exposição “Poemas da Terra Negra” da renomada artista Wangechi Mutu. Natural do Quénia, ela tem neste museu de Roma um conjunto de obras em que fica clara a sua forma de encarar questões de poder, de ecologia, de violência de género, de relações humanas, através da arte, indo beber à ancestralidade africana. Uma artista que une, diz a curadora, Cloé Perrone, enquanto que o ensaísta e editor, Filinto Elísio, releva a figura da Wangechi Mutu.

Dulce Araújo - Vatican News

Quem passa em frente da residência, no século XVII, do Cardeal Scipione, hoje Galleria Borghese, não pode não notar duas esculturas peculiares e sentir-se convidado a visitar compreender melhor o que representam e donde vêm. Outros querem simplesmente visitar este célebre Museu de Roma, e por entre antigas obras famosas de Bernini, Canova e outros, como Apolo e Dafne, descobrem as obras da artista queniana-estadunidense, Wangechi Mutu, cujo estilo, visão, temas, materiais nos foram dados a conhecer na emissão semanal "África em Clave Cultural: personagens e eventos" pela curadora da mostra, Cloé Perrone, e pelo editor Filinto Elísio (Rosa de Porcelana Editora) na sua crónica. 

Crônica

Uma exposição atípica, intitulada "Poemas da Terra Negra" e patente na Galleria Borghese até o próximo dia 14 de setembro de 2025, chama a atenção para Wangechi Mutu. É uma exposição instigante e desafiante fora dos habituais cânones museológicos explorando poemas, suspensões, fragmentos e mitologias, assim como esculturas inspiradas em contextos sociais e materiais contemporâneos.

Quem é Wangechi Mutu? Para já uma artista que extravasa as molduras, conhecida pelo trabalho que mistura género, raça, história da arte e identidade pessoal. Criando colagens complexas, vídeos, esculturas e performances, a arte de Mutu apresenta razões misteriosas e recorrentes, como as das mulheres mascaradas e representadas de forma híbrida.

Wangechi Mutu nasceu em 1972 em Nairobi, no Quénia. Ela estudou no Convento de Loreto Msongari (1978-1989). Deixou Nairobi aos 16 anos para cursar o ensino médio, estudando no United World College of the Atlantic, no País de Gales (até 1991). Mutu mudou-se para Nova Iorque no final da década de noventa, com foco em Belas Artes e Antropologia na New School for Social Research e na Parsons School of Art and Design. Ela obteve uma licenciatura em Belas Artes pela Cooper Union para o Avanço das Artes e Ciências, em 1996, e um mestrado em escultura pela Yale School of Art em 2000.

Na sua vida artística, tornou-se num dos expoentes em esculturas e instalações do afrofuturismo que, assim como o afropunk, o afro-surrealismo e o neo-hoodooísmo, são componentes dos imaginários culturais e artísticos dos africanos e da diáspora africana neste momento histórico.

Mutu utiliza o afrofuturismo para explorar temas de alienação, que se relacionam com feminismo, colonialismo, materialidade e deficiência. Essa estética também permite liberdade criativa na representação de corpos e identidades e experiências, como pode ser observado na presença de ciborgues e figuras alienígenas das suas obras.

A presença de mulheres negras num cenário futurista também atua como um retrocesso às ideias de evolucionismo e hierarquias culturais e sociais. Ao contextualizar essas mulheres negras em espaços hipermodernos, Mutu afirma que estas se posicionam no topo do ideário evolucionista, recusando preconceitos coloniais, neocoloniais e racistas em relação às pessoas negras.

As suas obras são baseadas numa ampla variedade de modos de expressão: pinturas, colagens, vídeos, instalações, etc. e patentes nas coleções de vários dos principais museus e galerias do mundo, tanto em exposições individuais como coletivas. 

Em 23 de fevereiro de 2010, Wangechi Mutu foi homenageada pelo Deutsche Bank como sua primeira "Artista do Ano”. O prémio incluiu uma exposição individual no Deutsche Guggenheim, em Berlim. Intitulada "My Dirty Little Heaven", a mostra viajou em junho de 2010 para o Wiels Center for Contemporary Art, em Forest, na Bélgica.

Em 2013, recebeu o Prémio do Público do BlackStar Film Festival de Filme Experimental Favorito, na Filadélfia, Pensilvânia, pelo seu filme "The End of Eating Everything", bem como o prémio de Artista do Ano do Brooklyn Museum, em Nova York.

Em 2014, ganhou o United States Artist Grant e, em 2017, foi homenageada com o Prémio Internacional de Artista, concedido pelo Anderson Ranch Arts Center.

Mutu é uma artista multidisciplinar e de enorme reputação, cujo trabalho tem recebido elogios da crítica a nível global.

Wangechi Mutu no seu estúdio - foto: Kadidja Farah

As duas esculturas na entrada da Galleria representam duas belas divindades em bronze, sentadas, vestidas de trajes ondulantes, uma com um disco sobre a boca e a outra com um espelho dourado sobre os olhos, a refletir a luz. Pertencem a um grupo de quatro, que foram encomendadas à Wangechi Mutu, em 2018, pelo Metropolitan Museum of Art para colocar em nichos da fachada do edifício que estavam vazios havia mais de cem anos. “Criei quatro divindades sentadas.” - explicou Wangechi, frisando que  representam a tranquilidade, a dignidade, a africanidade e o divino feminino.

Seated I - Uma das duas esculturas expostas na entrada da Galleria Borghese

Mas entremos na Galleria Borghese para compreender um pouco mais através do olhar da curadora, Cloé Perrone, que foi entrevistada por Maria Milvia Morciano da Vatican News:

A arte de Wangechi na Galleria Borghese expressa-se principalmente através da escultura que, no entanto, interage com este espaço de uma forma bastante diferente.  Ela optou por se inserir neste espaço, carregado de mármore e decorações, de uma forma bastante invulgar, utilizando aquilo a que poderíamos chamar de vazio, flutuando no espaço, ancorando-se ao teto e apresentando estas esculturas como se fossem espíritos, fantasmas, obras que giram à nossa volta...

A exposição intitula-se “Poemas da Terra Negra”, e a mensagem não é de forma alguma de divisão ou arquivamento de várias práticas ou géneros artísticos. É uma exposição que pretende trazer todos — todas as obras, mas também todas as pessoas, todas as mensagens — de volta para esta mesma terra, esta mesma terra negra de onde todos nós, de alguma forma, viemos.”

É certamente uma artista que não divide, mas reúne, e estas mensagens que traz — esta pesquisa sobre este terreno comum, sobre estas origens partilhadas, sobre esta forma de nos unir — são certamente algo poderoso e muito específico da sua prática.”

Suspended Playtime - uma das obras da Wangechi na Galleria Borghese

Ao entrar na galeria - observa Maria Milvia Morciano - as obras da Wangechi não se destacam imediatamente, poderiam parecer como que engolidas pelas grandes obras do passado. Mas, em vez disso, vão surgindo poderosas, como, por exemplo, a enorme folha de papel de seda com a inscrição feita de chá e café e que fala de paz sobre símbolos de poder, símbolos masculinos, símbolos do grande imperialismo do passado, gladiadores. Esta folha com inscrições está, de facto, disposta no chão sobre mosaicos romanos do século I e que retratam batalhas entre gladiadores humanos. Estas injustiças humanas, repetidas ao longo dos séculos e aparentemente intermináveis, são o resultado.

Sim, a obra a que se refere, que é uma peça muito importante para Wangechi, mas também para a exposição, intitula-se "Os Grãos das Palavras". É uma nova obra que o artista criou especificamente para a Galleria Borghese, e é a letra de uma canção de Bob Marley, chamada "War", pelo que também é bastante conhecida, letra que, por sua vez, provém de um texto de Hailé Selassie, o último imperador da Etiópia, que discursou nas Nações Unidas, em 1963, para exigir a igualdade e o fim da injustiça racial. Portanto é um texto fundamental que também é cantado de alguma forma por Bob Marley, mas se o público, o visitante, vê e lê, de alguma forma, uma parte sonora da exposição também é ativada, um som silencioso, e este é um trabalho muito importante; também remete para a poesia concreta e é também a ideia de que as palavras são plantadas e, ao plantá-las neste solo, formando-as neste solo, germinam então em algo maior.”

A obra "The Grains of Words" na Galleria Borghese

Mas como surgiu a ideia desta exposição na Galleria Borghese? - perguntou Maria Milvi Morciano à curadora.

Faz parte de um programa da Diretora, que queria convidar Wangechi Mutu a conceber uma exposição para a Galleria Borghese. Foi também uma forma de repensar e reler os mitos dentro da Galleria Borghese. Wangechi analisa estes mitos, repensa-os, relê-os e reescreve-os numa perspectiva diferente da europeia. Mas, ao procurarmos sempre as origens que nos unem, verificamos que existem, de facto, mitos e rituais que se repetem em todas as culturas. Portanto, embora à primeira vista não sejam europeus, de alguma forma conseguimos interpretá-los, pô-los em diálogo, e formam relações novas e inesperadas, e penso que essa foi uma das razões.”

Wangechi e a curadora, trabalham então juntas na colocação das obras por forma a criar uma interação entre o antigo e o moderno na Galleria.

Trabalhámos juntos na instalação e no arranjo das obras. Como deve imaginar, a Galleria Borghese não é um local fácil para instalar arte contemporânea, porque é muito importante, e a prioridade do museu é conservar e preservar todas as obras antigas. Depois de falarmos com todas as equipas da galeria e de descobrirmos todas as limitações, trabalhamos sempre com o museu para perceber o que é possível e o que não é, e depois pensamos nas combinações. Penso que foi um processo longo, mas também muito interessante, tendo constantemente ideias e tendo de as repensar e reformular para se adaptarem ao espaço expositivo, que tem limitações diferentes das de um museu de arte contemporânea.

"Undergroud Hornship" - Galleria Borghese

Mas nem todas as obras de Wangechi estão dentro do Museu. Fora, nos jardins estão várias outras entre as quais, a lindíssima serena em bronze...

Temos um vídeo que se chama "O Fim do Comer Tudo" e é um vídeo que fala, de alguma forma, sobre a crise ecológica. Temos esta mulher monstro que engole tudo o que encontra no seu caminho até que, finalmente, implode e esta é uma crítica a este mundo de consumo que não pensa em proteger o ecossistema. Na fachada existem as duas grandes obras de bronze. São referências às cariátides, mas não apenas às cariátides greco-romanas, mas também às africanas ou também à estatuária egípcia. Mais uma vez Wangechi consegue misturar todas estas referências para criar as suas próprias "Cariatides", estas mulheres que parecem vir de outra época, muito fortes, que convidam o visitante a entrar no museu, mas de alguma forma também protegem a instituição. E nos jardins secretos, temos outras quatro obras de bronze. Wangechi Mutu é uma artista que trabalha muito o bronze, com cestos que contêm animais e outras criaturas que, mais uma vez, parecem vir de outros mundos, e uma mulher sereia que, neste caso, é uma mulher sereia que quase poderia ser um auto-retrato.”

A mulher sereia nos jardins da Galleria - Galleria Borghese

Essa mulher aquática, lisa e brilhante, é uma versão da mítica Nguva da tradição da África Oriental, uma criatura com o poder de encantar, de instruir ou destruir, que fala diretamente com as criaturas marinhas e com a própria água, conforma explicou Wangechi numa videoconferência.  Wangechi Mutu, artista multifacetada, que atravessa mundos e linguagens, amalgamando-os, criando um novo mundo para todos. É o que se pode apreciar na mostra “Poemas da Terra Negra” patente na Galleria Borghese de Roma até ao próximo dia 14 deste mês e que foi aberta a 10 de junho. Da coleção ali apresentada faz parte também a obra “Shavanah I” que está na Academia Americana de Roma e que é evocativa da violência contra a mulher. A mulher é  figura central na conceção artística da Wangechi, representando a ancestralidade, a modernidade, o futuro.

Desde que me lembro que faço arte, sempre fiz arte sobre mulheres. Criei figuras com corpos femininos que, por vezes, parecem criaturas grávidas ou mulheres feridas e depois recuperadas. Criei humanos híbridos e até máquinas femininas ferozes. Tudo para mostrar como o corpo feminino é uma visão poderosa sobre a qual a cultura expressa os seus sentimentos de valor, de desejo ou desgosto, de divindade ou decrepitude, de pertença ou de perda. As imagens que crio, como as que vi esculpidas nas antigas rochas do deserto, são essencialmente a representação da presença do feminino em todos nós.”

"Prayers and Older Sisters - Galleria Borghese
"First Weeping Head and Second Weeping Head " - Galleria Borghese
Uma outra obra da Wangechi nos jardins da Galleria Borghese

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF