Visitável na Galleria Borghese, até 14/9/2025, a exposição
“Poemas da Terra Negra” da renomada artista Wangechi Mutu. Natural do Quénia,
ela tem neste museu de Roma um conjunto de obras em que fica clara a sua forma
de encarar questões de poder, de ecologia, de violência de género, de relações
humanas, através da arte, indo beber à ancestralidade africana. Uma artista que
une, diz a curadora, Cloé Perrone, enquanto que o ensaísta e editor, Filinto
Elísio, releva a figura da Wangechi Mutu.
Dulce Araújo - Vatican News
Quem passa em frente da residência, no século XVII, do
Cardeal Scipione, hoje Galleria Borghese, não pode não notar duas esculturas
peculiares e sentir-se convidado a visitar compreender melhor o que representam
e donde vêm. Outros querem simplesmente visitar este célebre Museu de Roma, e
por entre antigas obras famosas de Bernini, Canova e outros, como Apolo e
Dafne, descobrem as obras da artista queniana-estadunidense, Wangechi Mutu,
cujo estilo, visão, temas, materiais nos foram dados a conhecer na emissão
semanal "África em Clave Cultural: personagens e eventos" pela
curadora da mostra, Cloé Perrone, e pelo editor Filinto Elísio (Rosa de
Porcelana Editora) na sua crónica.
Crônica
Uma exposição atípica, intitulada "Poemas da
Terra Negra" e patente na Galleria Borghese até o próximo dia 14 de
setembro de 2025, chama a atenção para Wangechi Mutu. É uma exposição
instigante e desafiante fora dos habituais cânones museológicos explorando
poemas, suspensões, fragmentos e mitologias, assim como esculturas inspiradas
em contextos sociais e materiais contemporâneos.
Quem é Wangechi Mutu? Para já uma artista que
extravasa as molduras, conhecida pelo trabalho que mistura género, raça,
história da arte e identidade pessoal. Criando colagens complexas, vídeos,
esculturas e performances, a arte de Mutu apresenta razões misteriosas e
recorrentes, como as das mulheres mascaradas e representadas de forma híbrida.
Wangechi Mutu nasceu em 1972 em Nairobi, no Quénia.
Ela estudou no Convento de Loreto Msongari (1978-1989). Deixou Nairobi aos 16
anos para cursar o ensino médio, estudando no United World College of the
Atlantic, no País de Gales (até 1991). Mutu mudou-se para Nova Iorque no final
da década de noventa, com foco em Belas Artes e Antropologia na New School for
Social Research e na Parsons School of Art and Design. Ela obteve uma
licenciatura em Belas Artes pela Cooper Union para o Avanço das Artes e Ciências,
em 1996, e um mestrado em escultura pela Yale School of Art em 2000.
Na sua vida artística, tornou-se num dos expoentes em
esculturas e instalações do afrofuturismo que, assim como o afropunk, o
afro-surrealismo e o neo-hoodooísmo, são componentes dos imaginários culturais
e artísticos dos africanos e da diáspora africana neste momento histórico.
Mutu utiliza o afrofuturismo para explorar temas de
alienação, que se relacionam com feminismo, colonialismo, materialidade e
deficiência. Essa estética também permite liberdade criativa na representação
de corpos e identidades e experiências, como pode ser observado na presença de
ciborgues e figuras alienígenas das suas obras.
A presença de mulheres negras num cenário futurista
também atua como um retrocesso às ideias de evolucionismo e hierarquias
culturais e sociais. Ao contextualizar essas mulheres negras em espaços
hipermodernos, Mutu afirma que estas se posicionam no topo do ideário
evolucionista, recusando preconceitos coloniais, neocoloniais e racistas em
relação às pessoas negras.
As suas obras são baseadas numa ampla variedade de
modos de expressão: pinturas, colagens, vídeos, instalações, etc. e patentes
nas coleções de vários dos principais museus e galerias do mundo, tanto em
exposições individuais como coletivas.
Em 23 de fevereiro de 2010, Wangechi Mutu foi
homenageada pelo Deutsche Bank como sua primeira "Artista do Ano”. O
prémio incluiu uma exposição individual no Deutsche Guggenheim, em Berlim.
Intitulada "My Dirty Little Heaven", a mostra viajou em junho de 2010
para o Wiels Center for Contemporary Art, em Forest, na Bélgica.
Em 2013, recebeu o Prémio do Público do BlackStar Film
Festival de Filme Experimental Favorito, na Filadélfia, Pensilvânia, pelo seu
filme "The End of Eating Everything", bem como o prémio de Artista do
Ano do Brooklyn Museum, em Nova York.
Em 2014, ganhou o United States Artist Grant e, em
2017, foi homenageada com o Prémio Internacional de Artista, concedido pelo
Anderson Ranch Arts Center.
Mutu é uma artista multidisciplinar e de enorme
reputação, cujo trabalho tem recebido elogios da crítica a nível global.
As duas esculturas na entrada da Galleria representam
duas belas divindades em bronze, sentadas, vestidas de trajes ondulantes, uma
com um disco sobre a boca e a outra com um espelho dourado sobre os olhos, a
refletir a luz. Pertencem a um grupo de quatro, que foram encomendadas à
Wangechi Mutu, em 2018, pelo Metropolitan Museum of Art para colocar em nichos
da fachada do edifício que estavam vazios havia mais de cem anos. “Criei
quatro divindades sentadas.” - explicou Wangechi, frisando que
representam a tranquilidade, a dignidade, a africanidade e o divino feminino.
Mas entremos na Galleria Borghese para compreender um
pouco mais através do olhar da curadora, Cloé Perrone, que foi entrevistada por
Maria Milvia Morciano da Vatican News:
“A arte de Wangechi na Galleria Borghese expressa-se
principalmente através da escultura que, no entanto, interage com este espaço
de uma forma bastante diferente. Ela optou por se inserir neste espaço,
carregado de mármore e decorações, de uma forma bastante invulgar, utilizando
aquilo a que poderíamos chamar de vazio, flutuando no espaço, ancorando-se ao
teto e apresentando estas esculturas como se fossem espíritos, fantasmas, obras
que giram à nossa volta...
A exposição intitula-se “Poemas da Terra Negra”, e a
mensagem não é de forma alguma de divisão ou arquivamento de várias práticas ou
géneros artísticos. É uma exposição que pretende trazer todos — todas as obras,
mas também todas as pessoas, todas as mensagens — de volta para esta mesma
terra, esta mesma terra negra de onde todos nós, de alguma forma, viemos.”
É certamente uma artista que não divide, mas reúne, e
estas mensagens que traz — esta pesquisa sobre este terreno comum, sobre estas
origens partilhadas, sobre esta forma de nos unir — são certamente algo
poderoso e muito específico da sua prática.”
Ao entrar na galeria - observa Maria Milvia Morciano - as
obras da Wangechi não se destacam imediatamente, poderiam parecer como que
engolidas pelas grandes obras do passado. Mas, em vez disso, vão surgindo
poderosas, como, por exemplo, a enorme folha de papel de seda com a inscrição
feita de chá e café e que fala de paz sobre símbolos de poder, símbolos
masculinos, símbolos do grande imperialismo do passado, gladiadores. Esta folha
com inscrições está, de facto, disposta no chão sobre mosaicos romanos do século
I e que retratam batalhas entre gladiadores humanos. Estas injustiças humanas,
repetidas ao longo dos séculos e aparentemente intermináveis, são o resultado.
“Sim, a obra a que se refere, que é uma peça muito
importante para Wangechi, mas também para a exposição, intitula-se "Os
Grãos das Palavras". É uma nova obra que o artista criou especificamente
para a Galleria Borghese, e é a letra de uma canção de Bob Marley, chamada
"War", pelo que também é bastante conhecida, letra que, por sua vez,
provém de um texto de Hailé Selassie, o último imperador da Etiópia, que
discursou nas Nações Unidas, em 1963, para exigir a igualdade e o fim da
injustiça racial. Portanto é um texto fundamental que também é cantado de alguma
forma por Bob Marley, mas se o público, o visitante, vê e lê, de alguma forma,
uma parte sonora da exposição também é ativada, um som silencioso, e este é um
trabalho muito importante; também remete para a poesia concreta e é também a
ideia de que as palavras são plantadas e, ao plantá-las neste solo, formando-as
neste solo, germinam então em algo maior.”
Mas como surgiu a ideia desta exposição na Galleria
Borghese? - perguntou Maria Milvi Morciano à curadora.
“Faz parte de um programa da Diretora, que queria
convidar Wangechi Mutu a conceber uma exposição para a Galleria Borghese. Foi
também uma forma de repensar e reler os mitos dentro da Galleria Borghese.
Wangechi analisa estes mitos, repensa-os, relê-os e reescreve-os numa
perspectiva diferente da europeia. Mas, ao procurarmos sempre as origens que
nos unem, verificamos que existem, de facto, mitos e rituais que se repetem em
todas as culturas. Portanto, embora à primeira vista não sejam europeus, de
alguma forma conseguimos interpretá-los, pô-los em diálogo, e formam relações
novas e inesperadas, e penso que essa foi uma das razões.”
Wangechi e a curadora, trabalham então juntas na colocação
das obras por forma a criar uma interação entre o antigo e o moderno na
Galleria.
“Trabalhámos juntos na instalação e no arranjo das
obras. Como deve imaginar, a Galleria Borghese não é um local fácil para
instalar arte contemporânea, porque é muito importante, e a prioridade do museu
é conservar e preservar todas as obras antigas. Depois de falarmos com todas as
equipas da galeria e de descobrirmos todas as limitações, trabalhamos sempre
com o museu para perceber o que é possível e o que não é, e depois pensamos nas
combinações. Penso que foi um processo longo, mas também muito interessante,
tendo constantemente ideias e tendo de as repensar e reformular para se
adaptarem ao espaço expositivo, que tem limitações diferentes das de um museu
de arte contemporânea.”
Mas nem todas as obras de Wangechi estão dentro do Museu.
Fora, nos jardins estão várias outras entre as quais, a lindíssima serena em
bronze...
“Temos um vídeo que se chama "O Fim do Comer
Tudo" e é um vídeo que fala, de alguma forma, sobre a crise ecológica.
Temos esta mulher monstro que engole tudo o que encontra no seu caminho até
que, finalmente, implode e esta é uma crítica a este mundo de consumo que não
pensa em proteger o ecossistema. Na fachada existem as duas grandes obras de
bronze. São referências às cariátides, mas não apenas às cariátides
greco-romanas, mas também às africanas ou também à estatuária egípcia. Mais uma
vez Wangechi consegue misturar todas estas referências para criar as suas
próprias "Cariatides", estas mulheres que parecem vir de outra época,
muito fortes, que convidam o visitante a entrar no museu, mas de alguma forma
também protegem a instituição. E nos jardins secretos, temos outras quatro
obras de bronze. Wangechi Mutu é uma artista que trabalha muito o bronze, com
cestos que contêm animais e outras criaturas que, mais uma vez, parecem vir de
outros mundos, e uma mulher sereia que, neste caso, é uma mulher sereia que
quase poderia ser um auto-retrato.”
Essa mulher aquática, lisa e brilhante, é uma versão da
mítica Nguva da tradição da África Oriental, uma criatura com o poder de
encantar, de instruir ou destruir, que fala diretamente com as criaturas
marinhas e com a própria água, conforma explicou Wangechi numa videoconferência. Wangechi
Mutu, artista multifacetada, que atravessa mundos e linguagens, amalgamando-os,
criando um novo mundo para todos. É o que se pode apreciar na mostra “Poemas da
Terra Negra” patente na Galleria Borghese de Roma até ao próximo dia 14 deste
mês e que foi aberta a 10 de junho. Da coleção ali apresentada faz parte também
a obra “Shavanah I” que está na Academia Americana de Roma e que é evocativa da
violência contra a mulher. A mulher é figura central na conceção
artística da Wangechi, representando a ancestralidade, a modernidade, o futuro.
“Desde que me lembro que faço arte, sempre fiz arte
sobre mulheres. Criei figuras com corpos femininos que, por vezes, parecem
criaturas grávidas ou mulheres feridas e depois recuperadas. Criei humanos
híbridos e até máquinas femininas ferozes. Tudo para mostrar como o corpo
feminino é uma visão poderosa sobre a qual a cultura expressa os seus
sentimentos de valor, de desejo ou desgosto, de divindade ou decrepitude, de
pertença ou de perda. As imagens que crio, como as que vi esculpidas nas
antigas rochas do deserto, são essencialmente a representação da presença do
feminino em todos nós.”
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