NÃO PASSE À FRENTE
09/09/2025
Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)
“Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não
pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Nesta sentença breve, o Evangelho concentra
uma gramática inteira do seguimento que tem a cruz como condição e a posição do
discípulo como alguém que vem “atrás”. O grego sublinha o caráter continuado do
gesto (bastázei, “carrega”, no presente durativo) e a relação espacial e
existencial do seguimento (érchetai opíso mou, “vem atrás de mim”). Trata-se de
uma forma de vida moldada passo a passo no ritmo de Cristo. A correção dirigida
a Pedro: “Vai para trás de mim” (Mt 16,23) torna explícita essa disposição. O
erro do apóstolo não foi apenas doutrinário, foi posicional.
Ao tentar afastar a cruz, Pedro passou à frente do Senhor, e
a voz de Jesus, mais que refutar um argumento, recoloca o discípulo em seu
lugar. O problema do coração humano, porém, é que não nasce pronto para aceitar
esse lugar. O livro da Sabedoria enuncia com lucidez: “o corpo corruptível
torna pesada a alma, e a tenda de barro oprime a mente preocupada com muitas
coisas” (Sb 9,15). A frase grega acentua tanto a precariedade (phthartón sōma,
corpo corruptível) quanto a gravidade que se abate sobre a alma (barynei
psychēn, pesa a alma). Não é um desprezo do corpo, mas do reconhecimento de que
a condição mortal, quando deixada a si mesma, multiplica cuidados, dispersa o
desejo, puxa a vida para baixo. Paulo retoma a imagem da tenda (2Cor 5,1-4)
para falar do provisório que geme em nós; e, Romanos 7, descreve a tensão de
uma vontade dividida, na qual o bem reconhecido não se realiza com facilidade.
Aqui insere-se a exegese espiritual do “peso”. Não apenas a fadiga física, mas
a densidade de amores desordenados que nos inclinam a “chegar antes” de Deus.
Orígenes, ao comentar a corrida da alma atrás do Esposo no
Cântico, percebe esse arrasto como apego que retarda o desejo; só o Espírito,
diz ele, sustenta a alma para que corra sem se esgotar.
O amor curvado sobre si arrasta para baixo; a caridade,
orientada para Deus, dá à alma uma nova gravidade que a eleva. O Evangelho
assume esse drama e o transfigura com a forma pascal. “Negue-se a si mesmo,
tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23). É um convite a recusar a
pretensão de ditar os termos do caminho. O Cristo que “se esvaziou” e “fez-se
obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-11) revela essa obediência
filial como a verdade da liberdade.
Em Cristo, a finitude humana, descrita por Rahner como a
condição transcendental que nos abre ao Mistério, torna-se um “sim” radical ao
Pai. A cruz, lugar em que toda autossuficiência se cala, é também o lugar onde
a liberdade finita é dilatada pela graça numa obediência que personaliza. Por
isso, o jugo de Cristo se manifesta paradoxalmente “suave” e seu fardo “leve”
(Mt 11,30).
Sob o regime da caridade, o peso muda de qualidade
Se perguntamos, então, o que de fato impede o seguimento, a resposta já não é
“a cruz em si”, mas o impulso de evitá-la; não é o peso do madeiro, mas o peso
da de se colocar à frente. O orgulho que prefere mandar a obedecer; a ansiedade
que confunde missão com eficiência; a ideologização que usa o nome de Jesus
para selar agendas; o apego à reputação que recusa a humilhação evangélica
(1Cor 1,23); a impaciência que não suporta o tempo do Reino (Mc 4,26-29). Tudo
isso nos desloca do lugar “atrás” para a vã pretensão de ir à frente.
O antídoto bíblico é uma purificação do olhar e do passo:
“deixemos de lado tudo que nos atrapalha e o pecado que nos envolve. Corramos
com perseverança na competição… com os olhos fixos em Jesus, que vai a frente
da nossa fé… [e] Em vista da alegria que o esperava, suportou a cruz” (Hb
12,1-2).
Fixar o olhar naquele que vai à frente nos restitui a
posição do discípulo; e, restituída a posição, a cruz torna-se praticável. A
Eucaristia é a escola terna e severa dessa disposição, pois ali não somos
protagonistas, seguimos o Cordeiro (cf. Ap 14,4), aprendendo o ritmo da graça
que nos dessubjetiva sem nos despersonalizar, porque nos centra no amor. Na
vida concreta, essa pedagogia se traduz em exercícios discretos da obedientia
fidei que nos corrige e produz a sobriedade que integra o corpo como
aliado, a caridade paciente que ajusta o passo ao dos pequenos (Mt 25),
desaprendendo a pressa que nos fazia correr à frente.
Se em Sabedoria o “peso” aparece como obstáculo, em Paulo
ele é surpreendentemente transfigurado em promessa, pois, “com efeito, o
momentâneo, leve peso de nossa aflição, produz para nós, uma glória
incomensurável e eterna” (2Cor 4,17).
O que operou a virada? Não foi a subtração da cruz, mas a
reposição do discípulo em seu lugar. Atrás de Jesus, o peso que puxava para o
chão torna-se gravidade de glória; o fardo que o orgulho tornara insuportável
converte-se em algo novo que leva para o alto. A existência passa do horizonte
anônimo do Mistério para o consentimento explícito ao Deus de Jesus Cristo.
No fim, permanece o discernimento simples e decisivo: estou
atrás ou à frente? A teologia se complica onde este critério se obscurece; e a
espiritualidade se desvia onde o discípulo, encantado consigo mesmo, abdica da
posição de seguidor. O maior peso, então, não é a cruz, mas é a obstinação de
guiar o Guia.
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