EXEGESE
Arquivo 30Dias nº 12 - 2001
Relatório do Prefeito da Biblioteca Ambrosiana na
conferência sobre "A Face das Faces"
Sua verdadeira carne transfigurada
"O Cristo glorioso não apaga a verdade da
Encarnação." Publicamos o relatório do Prefeito da Biblioteca Ambrosiana
na conferência "A Face das Faces", realizada em outubro de 2001 na
Pontifícia Universidade Urbaniana. A conferência, organizada pelo Instituto
Internacional de Pesquisa sobre a Face de Cristo, publicou um volume contendo
os seus trabalhos.
Por Gianfranco Ravasi
Os três espectadores, Pedro, Tiago e João,
na solene epifania do protagonista, são três atores de particular
importância nos Evangelhos. Trata-se de um grupo privilegiado que, em diversas
ocasiões, ocupa uma posição eminente, a ponto de constituir, como observou o
exegeta Joachim Gnilka 4, “os portadores
especiais da revelação de Cristo”. Na mesma lista dos Doze, emerge esse tipo de
primazia: “Simão, a quem deu o nome de Pedro; depois Tiago, filho de Zebedeu, e
João, irmão de Tiago, a quem deu o nome de Boanerges, isto é, filhos do trovão”
( Mc 3,16-17). Quando Jesus testemunhou a ressurreição da
filha de Jairo, “não permitiu que ninguém o seguisse, senão Pedro, Tiago e
João, irmão de Tiago” ( Mc 5,37). Mesmo na noite escura do
Getsêmani, “levou consigo Pedro, Tiago e João...” ( Mc 14,33).
Em nossa narrativa, a lista apresenta algumas variações:
Pedro, Tiago e João ( Mt 17,1; Mc 9,2);
Pedro, João e Tiago ( Lc 9:28). O que resta é a primazia de
Pedro (cf. Mt 11:10) .10.2) que também tem a função de porta-voz em
nosso “drama”. De fato, sua é a única declaração que vem da terra e se cruza
com a celestial: “ kyrie , rabbi , epistáta ,
é bom estarmos aqui”; a isso se segue, com ligeiras variações de acordo com os
três Sinópticos, a proposta de erguer três tendas, uma para cada um dos três
atores da teofania, Jesus, Moisés e Elias. Não é nossa tarefa, aqui, buscar as
razões para tal reação que, entre outras coisas, é considerada insensata por
Marcos ( Mc 9.6), nem isolar sua matriz simbólica ou
sinaítica, ou sua conexão com a solenidade dos Tabernáculos ( Lv 23.42; Zc 14.16-19)
ou com as “moradas eternas” ( Lc 16.9).
Evidentemente, as palavras de Pedro são marcadas por um mal-entendido: o discípulo deseja conservar para sempre aquele antegosto da bem-aventurança celestial, evitando assim seguir o caminho da cruz e apagando a Paixão e a Morte. Os três, na verdade, são envolvidos pela luminosa nuvem teofânica, participando assim da intimidade divina e, após ouvirem a voz celestial, prostram-se no chão e são tomados pelo temor ( Mt 17,6-7), típico das experiências epifânicas ( Lc 1,12; 1,29; 2,9; 5,10; 8,35). Estas são as características das "apocalipses" divinas ( Dn 8,17; 10,9-10; Ap 1,17).
Os três discípulos, portanto, vivenciam uma verdadeira entrada no transcendente
e no misterioso na montanha, e é Jesus quem os reconduz, com seu toque e seu
clássico chamado "não tenham medo" nas teofanias, à história na qual
a jornada da Encarnação deve se cumprir. Uma história que inclui, precisamente,
sofrimento ( Mt 17,12) e morte ( Mt 15,23).
Dessa experiência emocionante, porém, um eco permanecerá no coração de Pedro,
como atesta uma passagem da Segunda Carta que a tradição atribui ao apóstolo:
"...fomos testemunhas oculares da grandeza [de nosso Senhor Jesus Cristo].
Ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando esta voz lhe foi
dirigida da Majestosa Glória: 'Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo'.
Ouvimos esta voz vinda do céu, quando estávamos com ele no monte santo..."
( 2Pe 1,16-18).
As duas grandes testemunhas, Moisés e Elias
No centro da epifania que tem Jesus como protagonista estão também duas
grandes testemunhas da Primeira Aliança, aliás, «os mediadores extremos da
Aliança: representam o início e o fim da história que se cumpre em Jesus, juiz
escatológico» (assim escreve um comentador do Evangelho de Mateus, Jean
Radermakers5).
Curiosamente, Marcos inverte os dois personagens, talvez
para enfatizar a tipologia profético-eliana com a qual o Rosto de Jesus é
frequentemente retratado nos Evangelhos. A ordem histórico-tradicional,
contudo, antecipa a figura de Moisés, o legislador do Sinai. De fato, se
seguirmos a orientação do Êxodo até o Sinai, perceberemos que não faltam
possíveis alusões presentes em nossa cena. Moisés também sobe a montanha
acompanhado por três discípulos escolhidos, Arão, Nadabe e Abiú ( Êx 24:1,9);
mesmo na teofania do Sinai há menção do último dia, quando Deus chama Moisés
( Êx 24:16). A nuvem e o fogo, semelhantes à nuvem luminosa da
Transfiguração, aparecem como sinal da Glória do Senhor ( Êx 24:16-17).
E Moisés, como Cristo, também terá o rosto resplandecente após ter estado em
comunhão com Deus ( Êx 34:29).
Se Moisés é, por excelência, a encarnação da lei divina que
revela a Israel, Elias representa a profecia que, idealmente, começa com ele.
Uma profecia que é lida no Novo Testamento como um dedo apontando para Cristo,
tanto que, imediatamente após a Transfiguração, "enquanto desciam do
monte", Jesus declara que "Elias já havia vindo" e os discípulos
entendem que "ele estava falando de João Batista" ( Mt 17:12-13).
Elias, portanto, é o Precursor por excelência com a sua palavra. Mas ele também
o é com a sua morte gloriosa, que é revelada como uma ascensão ao céu ( 2
Reis 2:11), antecipando a de Cristo. De fato, sob essa perspectiva,
até mesmo Moisés pode estar envolvido, porque a sua morte no túmulo misterioso
( Dt 34:5-6) foi interpretada pela tradição judaica como uma
assunção à glória divina (daí o apócrifo Assunção de Moisés )
e a própria tradição judaico-cristã ( Jd 9) seguiu essa linha.
Não é por acaso que Lucas – que tem o cuidado de colocar a
ascensão como o objetivo da vida de Cristo (cf. Lc 9,51;
24,50-51; At 1,9-11) – introduz em seu relato da
Transfiguração também o tema do diálogo de Jesus com Moisés e Elias, que
“aparecem em glória”: eles falam do “ êxodo que [Cristo]
estava para completar [ pleroun ] em Jerusalém” ( Lc 9,31).
Assim, delineia-se a gloriosa exaltação do Ressuscitado; a cruz que aguarda
Cristo e sua morte conduzem à Ascensão, isto é, à entrada no horizonte da
eternidade, do infinito e do divino. Uma entrada que fora indicada pelo fim da
história de Moisés e Elias e que se realiza plenamente ( pleroun).)
por Jesus ressuscitado e exaltado em glória. Chegamos agora ao limiar do ato
final do "drama" da Transfiguração. Agora será do céu que o último
personagem aparecerá para selar o evento, revelando-se como o outro
protagonista com Jesus.
O protagonista final, o Pai
O que decifra completamente o perfil do primeiro protagonista, Jesus, e
resolve o enigma da cena da Transfiguração é uma presença-ausência, a do Pai, o
protagonista final que sela todo o "drama" apresentando-se com a sua
voz. A sua palavra é um sinal de transcendência (o seu Rosto, de fato, não
aparece), mas também de proximidade e comunicação. O seu propósito é delinear o
retrato perfeito de Cristo, desenvolvido através do recurso às Escrituras. É
também evidente que esta intervenção torna a Transfiguração paralela ao
batismo, onde a mesma voz divina apresentou solenemente Jesus ao mundo como o filho
amado enviado pelo Pai ( Mt 3,17; Mc 1,11; Lc 3,22).
As declarações dos Sinópticos na Transfiguração refletem substancialmente dois
esquemas.
O esquema de Mateus ( Mt 17:5) também
incorpora a fórmula de Marcos ( Mc 9:7), expandindo-a:
"Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo". Em primeiro lugar,
há o perfil messiânico do Filho, seguindo o Salmo 2:7; há a proclamação de sua
singularidade e predileção divina, com referência também a Isaque, o filho
amado e sacrificado ( Gn 22:2); há a satisfação que é adesão,
aprovação, exaltação, com referência ao Servo sofredor do Senhor "em quem
Deus se compraz" ( Is 42:1). Agora, a outra fórmula, a de
Lucas ( Lc 9:35), concentra-se mais nesta última
característica: «Este é o meu Filho, o Escolhido», uma expressão que segue
precisamente Is 42:1: «Eis... o meu Escolhido, em quem me
comprazo». Portanto, em todos os Evangelhos Sinópticos, ainda que com
diferentes ênfases, o Pai revela que o Filho será glorificado, mas através do
caminho do sofrimento. Jesus é entronizado em sua pessoa divina, mas também em
sua missão salvífica.
O Pai, portanto, completa o retrato da Face de Cristo, que é
certamente Senhor, rabino, mestre, ápice da lei e da profecia, mas que é acima
de tudo Filho e Salvador. Toda a cena e a adesão dos três espectadores que
representam os discípulos de toda a história cristã devem convergir para Ele. O
imperativo final: «Escutem-no!» não é apenas um apelo para se voltar para
Cristo como o profeta definitivo, segundo a releitura messiânica de
Deuteronômio ( Dt 114: 11).18:15, 19): “O Senhor teu Deus te
suscitará, dentre ti, dentre teus irmãos, um profeta como eu; a ele ouvireis...
Se alguém não der ouvidos às palavras que ele falar em meu
nome, eu o responsabilizarei.” O imperativo do Pai é também um convite à plena
obediência ao Filho, estabelecido como Senhor da história. Assim, como escreveu
o exegeta H. Baltensweiler num ensaio dedicado precisamente à Transfiguração,
“o verdadeiro discipulado de Jesus Cristo não consiste em alguma atividade sem
sentido e iniciativa vazia, como vemos nos discípulos quando querem construir
cabanas, mas somente em ouvir adequadamente o Kyrios, o Jesus transfigurado.”7
No centro da cena, portanto, está o Filho entronizado pelo
Pai. Aquele Filho que não perde a sua humanidade deixando-a evaporar na
teofania. No final, como vimos, ele toca as mãos ( Mt 17,7)
dos três apóstolos espectadores, aproximando-se deles, dissipando seu temor
sagrado e descendo com eles as encostas da montanha para retornar a percorrer
os vales e planícies da história onde o mal e o demônio se aninham ( Mt 17,14-21; Mc 9,14-29; Lc 9,37-42)
e seguir em direção a Jerusalém, a cidade do sofrimento e da morte, mas também
do "êxodo" ( Mt 17,22-23; Mc 9,30-32; Lc 9,44-45).
O Venerável Beda comentou com razão: «Transfiguratus
Salvator non substantiam verae carnis amisit»8,
o Cristo glorioso não apaga a verdade da Encarnação. E nós o deixamos no cume
da “alta montanha”, recordando as sete presenças que povoavam aquele espaço
místico e geográfico, isto é, transcendente e histórico. Aqui está Jesus,
Senhor, rabino, mestre, legislador, profeta, Filho unigênito e Servo sofredor.
Em seguida, vem a Primeira Aliança com Moisés e Elias, e os discípulos do Novo
Evangelho, Pedro, Tiago e João. E aqui, no final, está o Pai que coloca o
primeiro protagonista, Jesus, de volta ao centro da cena.
NOTAS
5 J. Radermakers, Leitura Pastoral do Evangelho de Mateus ,
Bolonha 1974, p. 248.
6 «Lucas, ao substituir agapetós , amado, por eklelegménos ,
escolhido, segundo Is 42:1, assimila o texto mais a Is 42:1
(cf. 23:35)... Desta forma, Lucas quer expressar com a devida ênfase a
importância única deste Filho e da sua missão» (H. Schürmann, O
Evangelho de Lucas , I, Brescia 1983, p. 876).
7 H. Baltensweiler, A Compreensão de Jesus. Relatórios Históricos e
Sinópticos , Zurique 1959, p. 136.
8 PL 92.217.

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