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domingo, 28 de dezembro de 2025

EXEGESE: Sua verdadeira carne transfigurada (Parte 2/2)

A Transfiguração de Jesus Cristo (Catholic News Agency)

EXEGESE

Arquivo 30Dias nº 12 - 2001

Relatório do Prefeito da Biblioteca Ambrosiana na conferência sobre "A Face das Faces"

Sua verdadeira carne transfigurada

"O Cristo glorioso não apaga a verdade da Encarnação." Publicamos o relatório do Prefeito da Biblioteca Ambrosiana na conferência "A Face das Faces", realizada em outubro de 2001 na Pontifícia Universidade Urbaniana. A conferência, organizada pelo Instituto Internacional de Pesquisa sobre a Face de Cristo, publicou um volume contendo os seus trabalhos.

Por Gianfranco Ravasi

Os três espectadores, Pedro, Tiago e João,
na solene epifania do protagonista, são três atores de particular importância nos Evangelhos. Trata-se de um grupo privilegiado que, em diversas ocasiões, ocupa uma posição eminente, a ponto de constituir, como observou o exegeta Joachim Gnilka 4, “os portadores especiais da revelação de Cristo”. Na mesma lista dos Doze, emerge esse tipo de primazia: “Simão, a quem deu o nome de Pedro; depois Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago, a quem deu o nome de Boanerges, isto é, filhos do trovão” ( Mc 3,16-17). Quando Jesus testemunhou a ressurreição da filha de Jairo, “não permitiu que ninguém o seguisse, senão Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago” ( Mc 5,37). Mesmo na noite escura do Getsêmani, “levou consigo Pedro, Tiago e João...” ( Mc 14,33).

Em nossa narrativa, a lista apresenta algumas variações: Pedro, Tiago e João ( Mt 17,1; Mc 9,2); Pedro, João e Tiago ( Lc 9:28). O que resta é a primazia de Pedro (cf. Mt 11:10) .10.2) que também tem a função de porta-voz em nosso “drama”. De fato, sua é a única declaração que vem da terra e se cruza com a celestial: “ kyrie , rabbi , epistáta , é bom estarmos aqui”; a isso se segue, com ligeiras variações de acordo com os três Sinópticos, a proposta de erguer três tendas, uma para cada um dos três atores da teofania, Jesus, Moisés e Elias. Não é nossa tarefa, aqui, buscar as razões para tal reação que, entre outras coisas, é considerada insensata por Marcos ( Mc 9.6), nem isolar sua matriz simbólica ou sinaítica, ou sua conexão com a solenidade dos Tabernáculos ( Lv 23.42; Zc 14.16-19) ou com as “moradas eternas” ( Lc 16.9).

Evidentemente, as palavras de Pedro são marcadas por um mal-entendido: o discípulo deseja conservar para sempre aquele antegosto da bem-aventurança celestial, evitando assim seguir o caminho da cruz e apagando a Paixão e a Morte. Os três, na verdade, são envolvidos pela luminosa nuvem teofânica, participando assim da intimidade divina e, após ouvirem a voz celestial, prostram-se no chão e são tomados pelo temor ( Mt 17,6-7), típico das experiências epifânicas ( Lc 1,12; 1,29; 2,9; 5,10; 8,35). Estas são as características das "apocalipses" divinas ( Dn 8,17; 10,9-10; Ap 1,17).

Os três discípulos, portanto, vivenciam uma verdadeira entrada no transcendente e no misterioso na montanha, e é Jesus quem os reconduz, com seu toque e seu clássico chamado "não tenham medo" nas teofanias, à história na qual a jornada da Encarnação deve se cumprir. Uma história que inclui, precisamente, sofrimento ( Mt 17,12) e morte ( Mt 15,23). Dessa experiência emocionante, porém, um eco permanecerá no coração de Pedro, como atesta uma passagem da Segunda Carta que a tradição atribui ao apóstolo: "...fomos testemunhas oculares da grandeza [de nosso Senhor Jesus Cristo]. Ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando esta voz lhe foi dirigida da Majestosa Glória: 'Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo'. Ouvimos esta voz vinda do céu, quando estávamos com ele no monte santo..." ( 2Pe 1,16-18).

As duas grandes testemunhas, Moisés e Elias

No centro da epifania que tem Jesus como protagonista estão também duas grandes testemunhas da Primeira Aliança, aliás, «os mediadores extremos da Aliança: representam o início e o fim da história que se cumpre em Jesus, juiz escatológico» (assim escreve um comentador do Evangelho de Mateus, Jean Radermakers5).

Curiosamente, Marcos inverte os dois personagens, talvez para enfatizar a tipologia profético-eliana com a qual o Rosto de Jesus é frequentemente retratado nos Evangelhos. A ordem histórico-tradicional, contudo, antecipa a figura de Moisés, o legislador do Sinai. De fato, se seguirmos a orientação do Êxodo até o Sinai, perceberemos que não faltam possíveis alusões presentes em nossa cena. Moisés também sobe a montanha acompanhado por três discípulos escolhidos, Arão, Nadabe e Abiú ( Êx 24:1,9); mesmo na teofania do Sinai há menção do último dia, quando Deus chama Moisés ( Êx 24:16). A nuvem e o fogo, semelhantes à nuvem luminosa da Transfiguração, aparecem como sinal da Glória do Senhor ( Êx 24:16-17). E Moisés, como Cristo, também terá o rosto resplandecente após ter estado em comunhão com Deus ( Êx 34:29).

Se Moisés é, por excelência, a encarnação da lei divina que revela a Israel, Elias representa a profecia que, idealmente, começa com ele. Uma profecia que é lida no Novo Testamento como um dedo apontando para Cristo, tanto que, imediatamente após a Transfiguração, "enquanto desciam do monte", Jesus declara que "Elias já havia vindo" e os discípulos entendem que "ele estava falando de João Batista" ( Mt 17:12-13). Elias, portanto, é o Precursor por excelência com a sua palavra. Mas ele também o é com a sua morte gloriosa, que é revelada como uma ascensão ao céu ( 2 Reis 2:11), antecipando a de Cristo. De fato, sob essa perspectiva, até mesmo Moisés pode estar envolvido, porque a sua morte no túmulo misterioso ( Dt 34:5-6) foi interpretada pela tradição judaica como uma assunção à glória divina (daí o apócrifo Assunção de Moisés ) e a própria tradição judaico-cristã ( Jd 9) seguiu essa linha.

Não é por acaso que Lucas – que tem o cuidado de colocar a ascensão como o objetivo da vida de Cristo (cf. Lc 9,51; 24,50-51; At 1,9-11) – introduz em seu relato da Transfiguração também o tema do diálogo de Jesus com Moisés e Elias, que “aparecem em glória”: eles falam do “ êxodo que [Cristo] estava para completar [ pleroun ] em Jerusalém” ( Lc 9,31). Assim, delineia-se a gloriosa exaltação do Ressuscitado; a cruz que aguarda Cristo e sua morte conduzem à Ascensão, isto é, à entrada no horizonte da eternidade, do infinito e do divino. Uma entrada que fora indicada pelo fim da história de Moisés e Elias e que se realiza plenamente ( pleroun).) por Jesus ressuscitado e exaltado em glória. Chegamos agora ao limiar do ato final do "drama" da Transfiguração. Agora será do céu que o último personagem aparecerá para selar o evento, revelando-se como o outro protagonista com Jesus.

O protagonista final, o Pai

O que decifra completamente o perfil do primeiro protagonista, Jesus, e resolve o enigma da cena da Transfiguração é uma presença-ausência, a do Pai, o protagonista final que sela todo o "drama" apresentando-se com a sua voz. A sua palavra é um sinal de transcendência (o seu Rosto, de fato, não aparece), mas também de proximidade e comunicação. O seu propósito é delinear o retrato perfeito de Cristo, desenvolvido através do recurso às Escrituras. É também evidente que esta intervenção torna a Transfiguração paralela ao batismo, onde a mesma voz divina apresentou solenemente Jesus ao mundo como o filho amado enviado pelo Pai ( Mt 3,17; Mc 1,11; Lc 3,22). As declarações dos Sinópticos na Transfiguração refletem substancialmente dois esquemas.

O esquema de Mateus ( Mt 17:5) também incorpora a fórmula de Marcos ( Mc 9:7), expandindo-a: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo". Em primeiro lugar, há o perfil messiânico do Filho, seguindo o Salmo 2:7; há a proclamação de sua singularidade e predileção divina, com referência também a Isaque, o filho amado e sacrificado ( Gn 22:2); há a satisfação que é adesão, aprovação, exaltação, com referência ao Servo sofredor do Senhor "em quem Deus se compraz" ( Is 42:1). Agora, a outra fórmula, a de Lucas ( Lc 9:35), concentra-se mais nesta última característica: «Este é o meu Filho, o Escolhido», uma expressão que segue precisamente Is 42:1: «Eis... o meu Escolhido, em quem me comprazo». Portanto, em todos os Evangelhos Sinópticos, ainda que com diferentes ênfases, o Pai revela que o Filho será glorificado, mas através do caminho do sofrimento. Jesus é entronizado em sua pessoa divina, mas também em sua missão salvífica.

O Pai, portanto, completa o retrato da Face de Cristo, que é certamente Senhor, rabino, mestre, ápice da lei e da profecia, mas que é acima de tudo Filho e Salvador. Toda a cena e a adesão dos três espectadores que representam os discípulos de toda a história cristã devem convergir para Ele. O imperativo final: «Escutem-no!» não é apenas um apelo para se voltar para Cristo como o profeta definitivo, segundo a releitura messiânica de Deuteronômio ( Dt 114: 11).18:15, 19): “O Senhor teu Deus te suscitará, dentre ti, dentre teus irmãos, um profeta como eu; a ele ouvireis...

Se alguém não der ouvidos às palavras que ele falar em meu nome, eu o responsabilizarei.” O imperativo do Pai é também um convite à plena obediência ao Filho, estabelecido como Senhor da história. Assim, como escreveu o exegeta H. Baltensweiler num ensaio dedicado precisamente à Transfiguração, “o verdadeiro discipulado de Jesus Cristo não consiste em alguma atividade sem sentido e iniciativa vazia, como vemos nos discípulos quando querem construir cabanas, mas somente em ouvir adequadamente o Kyrios, o Jesus transfigurado.”7

No centro da cena, portanto, está o Filho entronizado pelo Pai. Aquele Filho que não perde a sua humanidade deixando-a evaporar na teofania. No final, como vimos, ele toca as mãos ( Mt 17,7) dos três apóstolos espectadores, aproximando-se deles, dissipando seu temor sagrado e descendo com eles as encostas da montanha para retornar a percorrer os vales e planícies da história onde o mal e o demônio se aninham ( Mt 17,14-21; Mc 9,14-29; Lc 9,37-42) e seguir em direção a Jerusalém, a cidade do sofrimento e da morte, mas também do "êxodo" ( Mt 17,22-23; Mc 9,30-32; Lc 9,44-45).

O Venerável Beda comentou com razão: «Transfiguratus Salvator non substantiam verae carnis amisit»8, o Cristo glorioso não apaga a verdade da Encarnação. E nós o deixamos no cume da “alta montanha”, recordando as sete presenças que povoavam aquele espaço místico e geográfico, isto é, transcendente e histórico. Aqui está Jesus, Senhor, rabino, mestre, legislador, profeta, Filho unigênito e Servo sofredor. Em seguida, vem a Primeira Aliança com Moisés e Elias, e os discípulos do Novo Evangelho, Pedro, Tiago e João. E aqui, no final, está o Pai que coloca o primeiro protagonista, Jesus, de volta ao centro da cena.

NOTAS

5 J. Radermakers, Leitura Pastoral do Evangelho de Mateus , Bolonha 1974, p. 248.
6 «Lucas, ao substituir agapetós , ​​amado, por eklelegménos , escolhido, segundo Is 42:1, assimila o texto mais a Is 42:1 (cf. 23:35)... Desta forma, Lucas quer expressar com a devida ênfase a importância única deste Filho e da sua missão» (H. Schürmann, O Evangelho de Lucas , I, Brescia 1983, p. 876).
7 H. Baltensweiler, A Compreensão de Jesus. Relatórios Históricos e Sinópticos , Zurique 1959, p. 136.
PL 92.217.

Fonte: https://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF