TEOLOGIA
Arquivo 30Dias nº 03 - 1999
A face autêntica da Igreja na comunidade cristã de
Jerusalém
Algumas notas do Cardeal, antigo Presidente do Pontifício
Conselho para a Interpretação dos Textos Legislativos, sobre um estudo
histórico-jurídico de Dante Gemmiti, professor da Universidade de Roma Tor
Vergata.
Por Cardeal Vincenzo Fagiolo
A Igreja, que é, em Cristo, “sacramento ou sinal e
instrumento de união com Deus e da unidade de toda a raça humana” ( LG 1),
encontramos inicialmente na primeira comunidade de Jerusalém. Historicamente,
apresenta-se a nós como uma comunidade que vive o mistério de Cristo na
comunhão da mesma fé, esperança e caridade, celebrando-o na Eucaristia,
proclamando-o com a Palavra de Deus, testemunhando-o comunitariamente como um
só coração e uma só alma (cf. At 4,32-37). Tudo se revela como
fruto da efusão do Espírito Santo enviado pelo Ressuscitado (cf. At 2,42-47).
O Vaticano II recordou-nos que a única Igreja de Cristo é aquela que professamos no Credo como una, santa, católica e apostólica, e que o nosso Salvador, após a sua ressurreição, confiou a Pedro o seu pastoreio, confiando-lhe a ele e aos outros apóstolos a sua difusão e orientação (cf. LG 8). Como Cristo quis e estabeleceu, a Igreja, no próprio lugar onde Cristo viveu, morreu e ressuscitou, foi dada aos apóstolos. Teve sua primeira configuração histórica na comunidade de Jerusalém, que se tornou modelo e fonte de inspiração; nela, as outras comunidades se sentiram chamadas a refletir-se. São Paulo permanece o exemplo mais emblemático dessa referência. Temendo ter ido em vão, dirigiu-se a Jerusalém, àqueles que eram considerados as colunas, e os confrontou (cf. Gl 2,1-2).
Mas a comunidade de Jerusalém não foi apenas o modelo para
todas as outras Igrejas fundadas em várias partes do mundo pelos apóstolos e
seus sucessores. Foi também um modelo para todas as comunidades mais
específicas do que a particular ou – como se dizia mais comumente – diocesana.
Foi também uma fonte privilegiada de inspiração para todas as comunidades de
monges ou religiosos, isto é, de homens e mulheres convictos de deixar o mundo
( fuga mundi ) para buscar a Deus na solidão, no ascetismo e
para reviver radicalmente a mesma experiência dos primeiros cristãos de
Jerusalém. Assim nasceu a anacorese e o início daquela jornada histórica das
comunidades de vida consagrada, da qual o Vaticano II também nos lembrou, ao
introduzir a discussão sobre a "renovação da vida religiosa"
(decreto Perfectae caritatis ): "Desde os primórdios da Igreja
houve homens e mulheres que, pela prática dos conselhos evangélicos, se
propuseram a seguir a Cristo..." ( PC 1).
Por meio de um estudo sistemático de fontes antigas sobre a
comunidade cristã primitiva, vista como uma presença e uma norma de
comportamento, o professor Dante Gemmiti, da Universidade de Tor Vergata, em
Roma, explica o sentido e a extensão em que a comunidade de Jerusalém serviu de
modelo para o pensamento dos primeiros escritores eclesiásticos. Esta pesquisa
também permite uma avaliação mais adequada de todos os desvios eclesiológicos
ou comportamentais que ocorreram durante a Idade Média e a era moderna. O
estudo se limita aos séculos III, IV e V e examina "testemunhos orientais,
especialmente de Orígenes, Eusébio, Basílio e Crisóstomo; e ocidentais, com
referências a Tertuliano, Cipriano, Hilário de Poitiers, Jerônimo, Ambrósio e
Agostinho". Segue-se um apêndice sobre o monasticismo oriental e
ocidental, estudado a partir da perspectiva de seu respectivo modelo na
comunidade de Jerusalém (Dante Gemmiti, La Chiesa nascente ideale di
vita cristiana , Nápoles-Roma, LER, 1999, p. 370).
A comunidade cristã, toda comunidade cristã, nasce, vive,
trabalha e se desenvolve segundo o modelo da de Jerusalém. Os elementos
essenciais que deram vida àquela comunidade tornaram-se as exigências de
existência e conduta para todas as outras que surgiram nos séculos
subsequentes. Esta é uma prova irrefutável da norma canônica que, ao definir a
natureza essencial da Igreja, nos apresenta a sua imagem. De fato, «uma diocese
é aquela porção do povo de Deus confiada aos cuidados pastorais de um bispo, com
a cooperação do presbitério, de modo que, unida ao seu pastor e reunida por ele
no Espírito Santo, através do Evangelho e da Eucaristia, constitui uma Igreja
particular na qual a Igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo está
verdadeiramente presente e operante» (cân. 369). Esta configuração teológica e
normativa da comunidade eclesial é tão essencial e autêntica que o próprio
Código, seguindo o Vaticano II (cf. LG 23), declara que “as
Igrejas particulares [são aquelas comunidades] nas quais e das quais subsiste a
única Igreja Católica” (cân. 368).
A imagem da Igreja universal é ao mesmo tempo ideal e
histórica, abstrata e concreta. A determinação ou definição doutrinal deriva do
modelo da primeira comunidade, em seu comportamento como assembleia de fiéis em
Cristo, unidos como um só coração e uma só alma, porque se alimentavam à mesma
mesa (como expressou Santo Agostinho ao explicar o Salmo 132 aos “servos de
Deus” em Hipona) com a Palavra e a Eucaristia. E se descermos da comunidade
diocesana para a comunidade paroquial, que é uma parte dela, a configuração,
com os elementos que a constituem substancialmente, pode igualmente ser
rastreada até o modelo da comunidade de Jerusalém (cf. cânones 515 §1, 528).
Isso explica não apenas a origem histórica, mas também a natureza essencial do
ser e do funcionamento de toda autêntica comunidade cristã. Esse era o
compromisso dos antigos Padres da Igreja, tanto do Oriente quanto do Ocidente.
A vida comunitária estabelecida pelos próprios apóstolos e praticada pelos
primeiros cristãos em Jerusalém teve sua origem bíblica nos resumos ,
o primeiro grande resumo encontrado em Atos 2:42-47
e o segundo, igualmente, em Atos 4:32-37.
O professor Gemmiti aprofunda-se nas fontes patrísticas para
nos mostrar seu propósito. Os Padres da Igreja dos séculos III, IV e V
voltaram-se para o modelo de Jerusalém para, primeiramente, identificar o
significado preciso dessa maravilhosa experiência eclesial, interpretando-a em
seus diversos contextos — teológico, normativo e social — e, ao mesmo tempo,
para compreender como e em que medida esse modelo poderia e deveria ser seguido
no momento histórico específico da Igreja.
A análise do autor começa em meados do século III. Isso,
contudo, não significa que os autores cristãos anteriores tenham omitido
qualquer referência à vida eclesial primitiva, conforme descrita nos Atos
dos Apóstolos e, em particular, segundo a fase inicial da história da
comunidade cristã nascida em Jerusalém (cf. Atos 1-5).
Significa, antes, que, se alguém deseja encontrar uma referência explícita e
consciente à comunidade primitiva, deve voltar-se para o período que se inicia
por volta de meados do século III. Ou seja, quando houve uma avalanche de
notícias sobre a crise na comunidade cristã, devido às numerosas, porém
inconsistentes, conversões do clero, que se mostrava apenas um representante da
fé, e não alguém que realmente era, e pela disseminação de vícios e hábitos
pagãos entre os cristãos (temos uma denúncia disso no Sínodo de Elvira, em
305). Foi nesse contexto, pouco edificante do ponto de vista cristão, que o
recurso ao texto dos Atos dos Apóstolos (2:42-47; 4:32-37)
começou a ser valorizado significativamente para alertar as comunidades cristãs
sobre seu comportamento, que diferia do da comunidade em Jerusalém.
De Orígenes, para o Oriente, e de Cipriano, para o Ocidente,
o autor reúne a primeira documentação que atesta a veracidade de suas
conclusões. O mesmo ocorrerá para os períodos subsequentes, até o século V.
Algumas referências nos ajudarão a compreender a realidade histórica que o
autor extrai dos textos dos principais escritores eclesiásticos dos séculos
III, IV e V. A partir das obras de Orígenes, por exemplo, emerge uma imagem
muito negativa do comportamento cristão das comunidades onde Orígenes viveu e trabalhou:
Alexandria e Cesareia, na Palestina.
A conduta das pessoas é julgada negativamente por sua
ausência no culto, por distrair os presentes e por seu interesse em coisas
mundanas: "Eles vão à igreja apenas alguns dias para ouvir a Palavra de
Deus, mas logo a abandonam, e não dedicam mais tempo à meditação da própria
Palavra divina" ( Números hom. 13, 7: Die
griechischen christlichen Schriftsteller 7, Leipzig, pp. 116-117,
abreviado daqui em diante para GCS).Contra as mulheres: «Como se
pode pensar que as mulheres, especialmente, concebem em seus corações se
fofocam e tagarelam, de modo a não deixar espaço para o silêncio?»
( Êxodo, hom. 13, 3: GCS 56, p. 272). Novamente: «…Se entre
vós houver alguns que [...] não se esforçam para melhorar sua conduta, corrigir
suas ações, abandonar os vícios, praticar a castidade, apaziguar a ira,
reprimir a avareza, refrear a ganância, eliminar de suas bocas a calúnia, a
insensatez ou a obscenidade e o veneno da difamação…» ( João,
hom. 10, 3: GCS 7, p. 360). E continua denunciando
aqueles que não observam suas promessas batismais. E não poupa o clero, a quem
denuncia por hipocrisia, orgulho e sede de poder, ganância por riquezas e a
tendência de colocar os interesses da comunidade acima dos da família. Ele
lamenta isso, também porque vê o destino do clero atrelado ao do povo.
A partir de todas essas observações amargas, Orígenes apela
para o modelo insuperável da Igreja primitiva. Ele a chama de insuperável em um
sentido absoluto, não historicamente, mas apenas porque fala do caráter
transcendente da verdadeira Igreja, a celestial. A Igreja histórica de
Jerusalém constitui um evento bastante temporal, realizado no presente de cada
comunidade cristã, de cada verdadeiro crente que acolhe a ação do Espírito.
Todos os imitadores de Cristo são pedras, e em cada um deles a Igreja é construída.
Em cada Igreja, descobrimos a Igreja primitiva através de sua relação com Deus
na oração de seus membros, formando uma verdadeira comunidade fraterna. O texto
que Orígenes segue é surpreendente, centrado na koinonìa , e
que nosso autor relata na íntegra, demonstrando como Orígenes avaliava a
comunidade cristã primitiva (ver D. Gemmiti, op. cit. , pp.
50-117).
***
Mais do que um apêndice, o foco no importante fenômeno do monasticismo
constitui uma segunda parte do tratamento único dos elementos constitutivos de
uma comunidade cristã. Mesmo com suas conotações teológicas, normativas e
ascéticas específicas, o monasticismo — e, em geral, toda forma de vida
consagrada — encontra sua origem e a natureza essencial de seu ser Igreja
naquela comunidade cristã que foi historicamente a primeira a seguir a Cristo,
desapegando-se do modo de vida do mundo por causa do que o mundo tinha de
contrário ao Evangelho e por causa da novidade da criatura humana inserida no
mistério de Cristo pelo batismo. De fato, o Vaticano II (seguido pelo Código de
Direito Canônico) afirmará que o estado de vida daqueles que professam os
conselhos evangélicos, fundados nas palavras e no exemplo do Senhor e
recomendados pelos apóstolos, "embora não diga respeito à estrutura
hierárquica da Igreja, pertence, contudo, à sua vida e à sua santidade"
( LG 44; cf. cân. 574 §1), isto é, à constituição divina
da Igreja. Ao abordar este tema, este estudo começa com o elemento que
demonstra mais imediatamente, ou poderíamos dizer quase visivelmente, a
primeira característica essencial de toda autêntica comunidade cristã, mesmo
que no monasticismo — e em toda forma de vida consagrada em geral — essa mesma
característica seja vivida de forma mais radical e una de modo especial a
Cristo, à sua Igreja e ao seu mistério (cf. LG 44; cânones
573, 607 §1). Refiro-me às expressões: "deixar para trás os seus
bens", "doá-los", etc., que o nosso autor cita e cuja essência
nos ajuda a apreender através da citação de uma exegese de Orígenes sobre um
texto de Lucas. «Após tal concepção e tal nascimento [=chamado divino], [...]
era conveniente que [João] se retirasse, fugindo do tumulto das cidades e da
contenda das massas populares, e que fosse para o deserto [...] para que
pudesse se dedicar à oração por um crescimento surpreendente» ( In Luc.
hom. 11: GCS 9, p. 80).
Portanto, não surpreende que alguns escritores eclesiásticos
identifiquem o monasticismo com a Igreja primitiva (Cassiano, por exemplo),
mesmo quando se destacam formas específicas de monasticismo, como o egípcio, o
basiliano e o ocidental. Contudo, deparamo-nos sempre com certezas que, ao
assegurarem os dados legislativos que regulam a vida monástica em geral,
garantem a santidade da própria vida. São, de fato, certezas da continuidade do
movimento monástico com a tradição evangélico-apostólica, da autenticidade
da koinonìa.
que provém de Cristo, pois fala de "comunhão com Ele" e, portanto,
com todos os irmãos.
E isso tem um significativo valor teológico-jurídico e
ascético, porque tudo está relacionado "à disciplina dos Evangelhos,
encerrada na pedra angular, o Senhor Jesus Cristo". E, nesse aspecto, o
monasticismo ocidental não difere substancialmente das formas que surgiram no
Oriente, e não se pode dizer que dele tenha surgido. Do solo fértil das Igrejas
locais do Ocidente, de fato, floresceu aquele monasticismo que se caracteriza
essencialmente por uma vivência radical e existencial do Evangelho.
Assim, Santo Agostinho indicaria o aspecto primordial do
monasticismo na simplicidade de coração na busca do único Deus e Senhor, e na
vivência, de modo muito particular, da pobreza evangélica, capaz, entre outras
coisas, de abrir o indivíduo à concretude da caridade fraterna. A partir daqui,
o pensamento agostiniano se desenvolve ainda mais, ampliando a dimensão do
ascetismo inteiramente pessoal para uma espiritualidade que se reveste da forma
comunitária modelada na dos primeiros cristãos da Igreja de Jerusalém, com
ênfase particular nos valores essenciais: caridade, fraternidade e humanidade.
Isso se evidencia pelas frequentes referências aos resumos
dos Atos dos Apóstolos, a partir dos quais toda a pesquisa acadêmica
do autor teve início. Ele vê uma originalidade na exegese de Santo Agostinho da
frase " anima una et cor unum " . A isso,
Santo Agostinho acrescenta " in Deum " para
enfatizar a natureza sobrenatural e o propósito da união fraterna. O vínculo
que Agostinho destaca entre a comunidade monástica e a de Jerusalém
permitiu-lhe ressaltar a vida apostólica da comunidade monástica: "Que ninguém
reivindique nada como seu, seja no vestuário ou em qualquer outra coisa, pois
desejamos viver segundo a norma dos apóstolos " . O
projeto monástico estará presente nos desejos de Santo Agostinho ao longo de
toda a sua vida. nele, ele nos permite vislumbrar um prenúncio da "cidade
celeste", como será consistentemente enfatizado pelo Magistério, e o
encontramos novamente na própria legislação da Igreja sobre a vida consagrada,
definida como um "sinal da vida futura" (cân. 607 §1), uma vez
que os religiosos e religiosas, "tendo-se tornado sinal luminoso na
Igreja, prenunciam a glória celeste" (cân. 573 §1).
É, portanto, fácil reconhecer neste estudo, de elevado
perfil científico e de rigorosa pesquisa histórica e exegética das fontes, essa
dimensão não só histórica, mas também teológica e canônica, o que o torna
valioso para especialistas na área, para as comunidades eclesiais, tanto
diocesanas quanto paroquiais, e para a vida consagrada.

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