As bem-aventuranças (2): enriquecer-se com a pobreza
Dirigido especialmente aos jovens, o segundo editorial sobre as bem-aventuranças aborda o conselho de Jesus: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus".
27/05/2016
O panorama que se via do alto daquela pequena montanha devia
ser impressionante. Centenas de pessoas foram para a Galileia porque queriam
conhecer o novo profeta de quem todo mundo falava e que, pelo que diziam,
pregava maravilhas. Jesus veria as pessoas aproximando-se pouco a pouco pela
colina e, ao final, quando fizeram silêncio, começou a falar com uma voz
potente: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino
dos Céus"[1].
Os pobres? Muitos daqueles que o escutavam, eram realmente
pobres. Tinham ido até lá porque sofriam a pobreza e sabiam bem que é algo que
ninguém deseja: Deus quer que tenhamos coisas boas para comer, um lugar digno
para viver e que aproveitemos as comodidades necessárias. No entanto, o Senhor
nos mostra que existe um tipo de pobreza que vale a pena procurar.
A "pobreza de espírito" parece ser uma condição
necessária para que as outras bem-aventuranças possam tornar-se realidade. Por
isso, não é por acaso que Jesus a propõe no início do seu discurso, antes de
todas as outras, para que sirva de base firme sobre a qual possamos construir
uma vida grande e bela. Mas, o que significa exatamente ser pobre de
espírito?
Deus somente sabe dar
Em outra ocasião, Jesus caminhava por uma cidade e todos
queriam chegar perto dEle. Os apóstolos se esforçavam para abrir caminho e
atravessar a multidão, que tinha saído para conhecer o famoso Rabbi.
Esmagada no meio daqueles entusiastas, uma mulher concentrava as suas poucas
forças em chegar até o Senhor. A massa a atirava de um lado para outro. Como
sabemos, estava fraca e doente, pois fazia muitos anos que estava perdendo
sangue e tinha gastado todo o seu dinheiro com médicos que não souberam
curá-la. Sem saúde nem dinheiro, Jesus representa uma última esperança para
ela.
Certamente, antes de ver Jesus, essa mulher já tinha
aceitado a sua doença, colocando-se nas mãos de Deus. Quase como uma resposta
imediata do Céu, o Messias passava pela sua cidade naquele dia. Por isso,
estava convencida de que nEle encontraria a solução que tanto desejava. Desse
modo, sem grandes discursos, simplesmente confiando em Deus, consegue arrancar
do Mestre a força que cura os seus males.
Esta mulher é um exemplo de pobreza de espírito, porque
depositou toda a sua fé no Senhor. Era pobre e sabia que não podia fazer mais
nada. Tinha que aceitar como um presente tudo o que lhe faltava. Como ela, o
pobre de espírito é aquele que confia completamente em Deus, porque compreende
que Ele somente sabe dar e, se tira alguma coisa, é para abrir mais espaço para
os seus dons na nossa vida. Será que, se ela não tivesse perdido a confiança em
todas as coisas, teria lutado com tanta força para tocar Deus? Certamente que
não. Portanto, a pobreza pode chegar ou teremos que buscá-la: em qualquer caso,
é necessário estar disposto a perder tudo para ganhar o que realmente vale a
pena, isto é, chegar a ser pobres para que Deus nos faça ricos. Por isso, a
pergunta seguinte é: o que devo deixar para ser pobre?
Menos é mais
Conta-se que no século VII, o imperador Heráclio entrou em
guerra contra os persas para recuperar a cruz em que Jesus foi crucificado.
Seus inimigos tinham-na roubado de Jerusalém e a mantinham em um palácio perto
de Bagdá. Depois de quinze anos de batalhas, no ano 630, o exército bizantino
pôde recuperar o lenho santo e o imperador, à frente de suas tropas, retornou
triunfante para a Cidade Santa.
Quase sem perceber, criamos muitas necessidades para
nós mesmos. Precisamos assistir ao capítulo da nossa série favorita, precisamos
escutar música sempre que estamos sozinhos, precisamos olhar o WhatsApp...
Enquanto entrava em Jerusalém, Heráclio quis levar a cruz
ele mesmo, mas, quando foi pegar a relíquia, ela ficou muito pesada. Para
surpresa dos seus soldados, o imperador, que tinha lutado em mil batalhas, não
aguentava carregar um simples tronco sobre seu cavalo. Envergonhado, desceu do
cavalo e tentou levar o madeiro a pé, mas não conseguia ir adiante. Pouco a
pouco, para concentrar suas forças na cruz, ele foi se libertando de outros
pesos: a sua coroa, o manto real, a armadura, a espada e o escudo... Finalmente,
quando vestia somente sua túnica, conseguiu levantar o lenho. Foi só então,
despojado de todas as suas riquezas materiais, que a imagem do imperador
recordou a todos aquele Cristo que, seis séculos antes, tinha carregado a cruz
por essas mesmas ruas.
Como aconteceu com o imperador Heráclio, a pobreza nos
ajudará a parecer-nos com Jesus e seremos capazes de seguir os seus passos. Por
outro lado, o dinheiro ou as coisas, podem se converter em um grande obstáculo,
porque tiram espaço de Deus e enchem a alma de preocupações. Não porque ter
coisas seja algo mau, mas porque chegamos a dar muita importância a elas e a
nossa felicidade começa a depender exageradamente disso.
Basta fazer exame para notar que, quase sem perceber,
criamos muitas necessidades para nós mesmos. Precisamos assistir ao capítulo da
nossa série favorita, precisamos escutar música sempre que estamos sozinhos,
precisamos olhar o WhatsApp... e, se alguma dessas coisas não é possível,
ficamos inquietos porque unimos a nossa felicidade a essas necessidades.
Da mesma forma, todos já experimentamos o quanto é bom
comprar coisas novas. Um novo videogame, uma música nova ou uma roupa nova
podem alegrar um dia que começou mal. Às vezes parece que o dinheiro fica queimando quando
está na nossa carteira! Gastar não é uma coisa má, mas temos que prestar
atenção para que não se converta no único remédio para nos manter alegres.
Se para ter um pouco de emoção na vida, precisamos de ajudas
artificiais (drogas brandas ou álcool), a nossa reação terá que ser ainda
maior. Usá-las para se divertir ou por pura curiosidade é manifestação clara de
uma personalidade fraca, de um espírito que precisa se enriquecer com coisas e
que desistiu de melhorar ou de se divertir aproveitando os talentos pessoais.
Em algumas ocasiões, pode ser um bom exercício abrir mão de
alguma necessidade aparentemente imprescindível e, dessa forma, não depender
demais de algo que talvez tenha se convertido em algo muito importante na nossa
vida.
Algumas pessoas costumam propor a si mesmas, cada dia, dois
ou três pequenos sacrifícios para manter a vontade livre e ágil, em forma. Se
tentarmos e não conseguirmos, será sinal de que precisamos recuperar a nossa
liberdade o quanto antes. Sempre será útil o conselho de São Josemaria: «Não o
esqueças: tem mais aquele que precisa de menos. – Não cries necessidades»[2].
«Vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e
depois vem e segue-me»[3]:
é a condição de Jesus ao jovem rico que tinha pedido para segui-Lo. Esse jovem
era bom – "vivia os mandamentos", o que já é muito – mas não era
livre. Tudo o que ele possuía tinha se tornado numa cadeia que o mantinha atado
e que o impediu de aproveitar a melhor oportunidade da sua vida. Não foi capaz
de ver Jesus e entender a grandeza da proposta que Ele fazia.
Se os Evangelhos contam este episódio, é porque o Senhor quer nos fazer a mesma
oferta... E corremos o risco de dar a mesma resposta.
Avestruzes, ouriços e máscaras
Existe outra pobreza, talvez mais importante ainda: é a
pobreza interior, a humildade de quem se conhece bem e sabe que – sem Deus –
vale muito pouco. Quem, ao contrário, está muito confiante em si mesmo e não
aceita ajuda de ninguém, é parecido a muitos dos escribas e fariseus,
personagens que Jesus foi muitas vezes forçado a enfrentar. Eles tinham
resposta para tudo, e nunca pedem ajuda ou fazem perguntas com interesse
sincero, nem reconhecem as suas próprias dúvidas ou fraquezas.
Dizíamos que Deus somente sabe dar, mas temos que estar
dispostos a receber. Também nós, às vezes, podemos obstinar-nos com uma
opinião, ser teimosos, não dar o braço a torcer ou não reconhecer humildemente
que erramos. Por outro lado, como sabemos que o Senhor ajuda a quem quer se
deixar surpreender, é bom pedir conselho, aprender a ouvir, aceitar com
simplicidade as sugestões das pessoas que querem nos ajudar. «(...) que saibam
como és e te desprezem. – Não tenhas pena de ser nada, porque assim Jesus tem que
pôr tudo em ti»[4],
aconselhava São Josemaria. O próprio Deus nos ajudará se nos aproximamos aos
sacramentos ou à leitura da Palavra de Deus, mesmo que pensemos que não é o que
necessitamos neste momento de nossa vida.
Dizem que o avestruz esconde a cabeça quando vê o perigo (na
realidade, não é bem assim). Mas, algo parecido pode acontecer conosco quando
percebemos que alguma coisa não está bem na nossa vida: por exemplo, quando
vemos que é difícil fazermos amigos ou somos incapazes de controlar nossas
paixões, ou temos pavor de fracassar ou de que debochem de nós ou de ficar
sozinhos... A pessoa que não é pobre de espírito prefere não encarar a verdade.
Procura esconder o perigo ou disfarçá-lo. Prefere não ver ou se fecha em si
mesma – como os ouriços – com o silêncio ou inclusive atacando os outros –
criticando-os, por exemplo – para que ninguém perceba a sua fraqueza.
Quem não é humilde, logo vai comprovar que a sua vida
se converteu num complicado labirinto. E o melhor modo, às vezes o único, de
fugir dos labirintos é voando.
Quem não enfrenta os seus erros, precisa fazer uma máscara
para que os outros acreditem que é uma pessoa diferente (despreocupada, sempre
feliz, segura de si mesma...). A longo prazo, a sua vida se converterá num
teatro, numa farsa. Cedo ou tarde se perguntará: quem eu sou na realidade? Em
que acredito? Meus amigos gostam de mim ou do personagem que acreditam que eu
sou?
«Senhor — pedia São Josemaria — que eu me decida a arrancar,
mediante a penitência, a triste máscara que forjei com as minhas misérias... »[5].
Quem não é humilde, logo vai comprovar que a sua vida se
converteu num complicado labirinto. E o melhor modo, às vezes o único, de fugir
dos labirintos é voando: por isso, se nos elevamos com nossa oração até a
presença de Deus, ele nos ajudará a ser sinceros e humildes. Uma pessoa pobre
de espírito não se considera humilhada quando reconhece as suas fraquezas e
pede ajuda nos sacramentos ou a um diretor espiritual. Assim, viveremos com a
cara lavada, mostrando nosso verdadeiro rosto e a nossa verdadeira alma, com
alegria e otimismo.
"A pessoa que tem o coração livre e desprendido das
coisas do mundo – disse o Papa –, é 'esperada' no Reino dos Céus"[6].
Pobreza material e pobreza interior: só assim estaremos preparados para
continuar escutando atentamente o Senhor – sem outras distrações ou
preocupações – na montanha da Galileia, junto com os apóstolos. Se formos
pobres de espírito, livres do consumismo e da soberba, seremos capazes de nos
abrirmos incondicionalmente à felicidade que as outras bem-aventuranças nos
prometem.
* * *
Perguntas para a oração pessoal
– Eu posso economizar em alguns gastos? O dinheiro dura
pouco tempo na minha carteira? Dou alguma esmola, na medida das minhas
possibilidades?
– Em que coisas procuro segurança? Nas coisas materiais
(roupas, aparelhos eletrônicos, programas caros)? Na imagem que os outros têm
de mim? No relacionamento com Deus e na amizade verdadeira? Fico muito
preocupado(a) com o que os outros pensam sobre mim?
– Procuro alongar a vida útil das coisas que eu uso
(roupa, celular...) ou preciso mudá-las em pouco tempo? Preciso urgentemente
das coisas que meus amigos ou amigas têm?
– Procuro fazer dois ou três sacrifícios todos os dias
que me ajudem para que nada superficial seja necessário (por exemplo, uso do
celular, da televisão, do elevador...)?
–Mostro-me como sou? Fico chateado(a) se recebo alguma
crítica razoável? Quando foi a última vez que pedi desculpas? Tenho o bom
costume de pedir conselho?
J. Narbona / J. Bordonaba
Tradução: Mônica Diez
[1] Mt
5, 3.
[2] São
Josemaria, Caminho, 630.
[3] Mt
19, 20.
[4] São
Josemaria, Caminho, 596.
[5] São
Josemaria, Via Sacra, VI estação.
[6] Papa
Francisco, Homilia, 1-XI-2015.



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