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terça-feira, 30 de setembro de 2025

Arquitetura da verdade

Deus, o arquiteto da vida (Facebook)

ARQUITETURA DA VERDADE

29/09/2025

Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO) 

Durante muito tempo a vida comum avançou porque havia medida e referência. A política se equilibrava no juízo dos eleitores, a economia justificava o que produzia e distribuía, a religião repousava em instituições que atravessavam séculos. Com a virada do milênio as réguas se torceram e muitas paredes cederam. A política passou a medir barulho em vez de argumento, a economia multiplicou cifras que não chegam ao cotidiano, e até a religião se fragmentou em promessas sem memória de igrejas que surgiram como modo de negócios que ainda precisam ser examinados.  

A verdade precisa ser compartilhada, pois quando a verdade deixa de ser critério compartilhado o abismo deixa de ser metáfora e começa a organizar a vida pública. 

Sair desse terreno pede uma conversão paciente. É preciso recompor a confiança com pessoas responsáveis, processos confiáveis e fatos que possam ser examinadas por todos.  

O nosso tempo tornou visível, ainda, o risco das grandes fortunas tecnológicas. Há gênios da engenharia e da informática que, ao cruzarem a fronteira da política, revelam amadorismo, improviso e mentalidade tirânica. Plataformas que funcionam como praças digitais passam a refletir humores pessoais. Mudanças bruscas de regras, decisões tomadas em público como quem joga os dados, interferências que tocam a vida de países inteiros. 

Quando uma infraestrutura crítica depende da vontade de um único proprietário, a fronteira entre opinião e poder real se desfaz e a democracia fica exposta. Lembremos que nenhum talento individual substitui instituições, que um bilionário não pode funcionar como órgão regulador, que a esfera pública requer freios, contrapesos e prestação de contas. 

A política sofre ainda outro deslocamento. A figura do influenciador, que vive do ritmo das redes, impõe agenda e humor, mas quase nunca oferece projeto. Vence quem captura atenção e não quem constrói processos. A cidade, se quer amadurecer, precisa devolver tempo à deliberação. Espaços onde a opinião desacelera e vira argumento, dados públicos que permitam refazer contas, decisões que venham acompanhadas de razões minoritárias para que o dissenso tenha lugar. Democracia é o exercício de justificar-se diante de muitos, e não a vitória do barulho ruidoso. 

Na economia a planilha precisa enxergar pessoas. Progresso que suga tempo, saúde, vínculos e o chão do qual vivemos não merece esse nome. A riqueza deve ter substância e endereço. Isso começa quando medimos o que sustenta a vida e não apenas o que infla gráficos. Metodologias abertas de impacto social e ambiental, auditorias independentes, redes produtivas enraizadas no território, crédito paciente para transição de atividades predatórias para atividades regenerativas. A métrica existe para servir ao sentido e não para o substituir. Quando números e vidas conversam, a economia respira. 

Na religião a fidelidade não dispensa exame. O crescimento veloz de comunidades sem lastro institucional pode atrair muita gente, mas também expõe vulneráveis e fragiliza a própria fé. Autoridade pastoral sem medida e sem verificação degenera em culto de personalidade e busca de poder político. Comunidades adultas protegem o carisma com regras claras, conselhos que prestam contas, formação séria de ministros, proteção efetiva dos pequenos. A tradição não é peso morto, é critério que impede reinvenções oportunistas do Evangelho. 

Nada disso avança sem reeducação do juízo. Fomos capturados por uma política da atenção que inflama afetos e empobrece a reflexão. 

O caminho não pede a restauração de velhos muros nem a exibição de novas vitrines. Pede a passagem do carisma sem prova para o trabalho e a caridade com prova. Líderes que inspiram e se submetem a regras. Métricas que contam o que a vida sente. As grandes fortunas, os pastores carismáticos, os políticos da atenção podem continuar a contribuir, desde que aceitem a companhia dos processos. Se a modernidade ensinou a medir e o nosso tempo confundiu o que medir, a etapa seguinte é recuperar a medida como serva do significado.  

Verdade que volta para casa, porque pode ser habitada, examinada e partilhada.  

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF