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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

SANTO AGOSTINHO: As poucas coisas simples da liturgia cristã

Santo Ambrósio celebra a missa em sufrágio de São Martinho, detalhes de uma cena do mosaico da abside, Basílica de Sant'Ambrogio, Milão | 30Giorni.

Arquivo 30Dias nº 11/12 - 2002

As poucas coisas simples da liturgia cristã

Por volta da virada do século IV, Agostinho foi confrontado com algumas questões litúrgicas. Além da resolução das questões da época, duas cartas de Agostinho (cartas 54 e 55 de seu epistolário) lançaram luz sobre como o mistério cristão deve ser concebido e amado hoje.

por Lorenzo Cappelletti

A modernidade de Agostinho é sempre marcante, isto é, a correspondência de seu modo de ser cristão com as sensibilidades atuais. Tanto que, às vezes, as palavras de Agostinho bastam para despertar o interesse gratuito de pessoas que, de outra forma, permaneceriam completamente indiferentes a Cristo, apesar do entusiasmo daqueles cuja profissão é se interessar por Cristo e por eles. Isso é demonstrado, por exemplo, pelas recentes declarações surpreendentes de Gérard Dépardieu (ver 30Giorni n.º 9, setembro de 2002, p. 63). Confiando na força das palavras de Agostinho, deixemo-las ecoar mais uma vez.

Por volta da virada do século IV, um homem cujo nome apenas conhecemos, Januário, colocou questões litúrgicas a Agostinho. Muito além de resolver as questões da época, duas cartas de Agostinho (cartas 54 e 55 de seu epistolário) lançam luz sobre como o mistério cristão deve ser concebido e amado hoje.

"O que deve ser feito na quinta-feira da última semana da Quaresma [Quinta-feira Santa]?", pergunta Januário. "O sacrifício deve ser oferecido de manhã e novamente à noite, após a ceia, porque lemos 'Da mesma forma, após a ceia...', ou devemos jejuar e celebrar somente após a ceia? Ou devemos jejuar e, como costumamos fazer, cear após o sacrifício?" (Carta 54, 5, 6).

Agostinho, antes de entrar em detalhes, nega antes de tudo que o que é proposto seja um problema e estabelece o critério para toda prática cristã: «Antes de tudo, quero que tenhais por certo que Nosso Senhor Jesus Cristo, como ele mesmo diz no Evangelho, nos sujeitou ao seu suave jugo e a um leve fardo e por isso quis estabelecer, como vínculos do povo novo, sacramentos em número muito limitado, muito fáceis de praticar e de significado sublime : como o batismo, consagrado em nome da Trindade, a comunhão com seu corpo e sangue e todos os outros meios recomendados nas escrituras canônicas, abandonando aqueles ritos dos quais lemos nos cinco livros de Moisés, que serviam à escravidão do povo antigo e eram adequados às disposições de seus corações e daquele tempo profético» (Carta 54,1,1; grifo nosso). Na Carta seguinte (55,7,13), Agostinho não falará somente novamente do número limitado de sacramentos, mas também das pouquíssimas coisas simples que constituem a sua matéria: «Usamos um número muito limitado de coisas, como a água, o trigo, o vinho e o azeite».

Há, contudo, também disposições não escritas – continua Agostinho na Carta 54 – mas transmitidas pela tradição, que são observadas por toda a Igreja porque são recomendadas e estabelecidas pelos apóstolos ou pelos concílios plenários, "cuja autoridade na Igreja é tão útil" (54,1,1), como a celebração anual dos mistérios da Paixão, da Ressurreição, da Ascensão e da Descida do Espírito Santo. Mesmo nisso não pode haver discrepância.

Mas há práticas que variam de acordo com o lugar, para as quais não se pode recorrer à Escritura ou às prescrições dos apóstolos ou dos concílios plenários. Nestes casos, e este é também o caso proposto por Januário, sua observância é deixada à liberdade de cada indivíduo e, se há uma obrigação, é a de se conformar ao uso da Igreja em que se encontra, "porque tudo o que não se possa provar ser contra a fé e contra os costumes deve ser considerado indiferente e deve ser observado por respeito àqueles entre os quais se vive" (54,2,2). Agostinho recorda quando, apenas para agradar a sua mãe Mônica, escandalizada porque em Milão não se jejuava aos sábados como em Roma, pediu conselho a Ambrósio, que lhe respondeu o que fazia: em Roma jejuava e em Milão não.

Agostinho diz ter pensado nesse conselho várias vezes, considerando-o quase um oráculo. É evidente que o conselho de Ambrósio era para ele algo diferente da solução de um problema, que na época não era seu, dado que talia non curabat (54,2,3). Essa contingência foi para Agostinho um encontro com uma liberdade desconhecida e surpreendente.

O outro exemplo dado por Agostinho diz respeito à prática da comunhão diária. O importante, afirma ele, não é se alguém se aproxima ou não da Eucaristia diariamente, mas a honra que se dá ao sacramento da nossa salvação. Em última análise, tanto Zaqueu, ao acolhê-lo, quanto o centurião, ao declarar-se indigno de recebê-lo, honraram o Salvador: "Zaqueu e o centurião não brigaram entre si, nem se consideraram superiores um ao outro, porque um, cheio de alegria, recebeu o Senhor em sua casa, enquanto o outro disse: 'Não sou digno de que entres em minha casa'. Ambos honraram o Senhor de maneiras diferentes e, por assim dizer, contrárias. Ambos eram pecadores miseráveis, ambos obtiveram misericórdia" (54,3,4). Segundo Agostinho, há apenas uma coisa que deve ser evitada diante desse alimento: o desprezo, isto é – ele continua citando a primeira Carta aos Coríntios – não distingui-lo de outros alimentos pela veneração devida unicamente a ele (veneratione singulariter debita). Por um lado, aqui apreciamos plenamente a magnanimidade pastoral da disposição com a qual Pio X, já em 1910, quis condicionar a recepção da Primeira Comunhão a este único elemento: a capacidade de distinguir o alimento eucarístico do alimento comum. Por outro lado, aqui reconhecemos o chamado apostólico, que mais uma vez se tornou fortemente relevante, a saber, ter cuidado para não comer e beber a própria condenação.

Mas voltemos a Agostinho. Diante de costumes diferentes, portanto, não se trata de importar nem exportar costumes que, como tais, só poderiam ser justificados em termos subjetivos, por pura curiosidade. A consequência seria, de fato é, como ele pôde observar com grande dor, a perturbação dos fracos. Somente em vista da fé ou da moral se deve corrigir um costume contrário ao bem ou instituir outro que antes não existia. De fato, toda mudança de costumes, mesmo que ajude por ser útil, traz confusão, com sua novidade; "Por isso, uma mudança que não é útil, pelo próprio fato de produzir confusão infrutífera, é prejudicial" (54,5,6). Portanto, se um determinado costume não é atestado pela Escritura nem pela Tradição unívoca de toda a Igreja, é-se livre para observá-lo ou não, porque evidentemente não diz respeito à fé ou à vida moral.

No entanto, Agostinho nem sequer absolutiza essa sua posição, que poderíamos chamar de liberal. E parece-nos que aqui reside um aspecto de seu gênio cristão.

De fato, na subsequente Carta 55, ele se arrisca: por um lado, afirma que, em relação aos salmos e hinos cantados, embora haja grande diversidade nessa prática, não há absolutamente nada melhor, nada mais útil, nada mais santo a fazer quando os cristãos se reúnem, porque isso move a alma à devoção e inflama o coração com amor a Deus (sem mencionar que se poderiam encontrar exemplos e preceitos do Senhor e dos apóstolos que o inculcam).

Por outro lado, ele diz que há práticas que, embora não se possa demonstrar de que forma são contrárias à fé, o são pelo simples fato de multiplicarem as obrigações, a ponto de tornar-se mais tolerável a condição dos judeus que, pelo menos, obedecem à Lei Mosaica e não a invenções humanas: "Quanto a outras práticas que são introduzidas fora do costume e que são prescritas para serem observadas como se fossem sacramentos, não posso aprová-las", diz Agostinho, "embora não ouse reprovar abertamente muitas dessas coisas por medo de escandalizar pessoas santas ou turbulentas. Mas o que mais me entristece é que, enquanto muitas coisas saudavelmente prescritas nas Escrituras são negligenciadas, tudo está repleto de uma massa de invenções", que um neófito que anda descalço durante a Oitava Pascal é mais severamente repreendido do que aquele que afogou sua mente na embriaguez. Penso, portanto, que, tendo o poder, todos os costumes que não se baseiam na autoridade da Sagrada Escritura, estabelecidos pelos sínodos episcopais ou confirmados pelo uso de toda a Igreja, devem ser suprimidos sem mais delongas. Esses costumes sofrem infinitas variações de acordo com as diferentes sensibilidades de cada lugar, a ponto de ser difícil ou totalmente impossível encontrar as causas de seu estabelecimento. Pois, embora não se possa demonstrar de que maneira são contrários à fé, eles oprimem, no entanto, com laços servis a própria religião que a misericórdia de Deus quis isenta de qualquer celebração além da de alguns sacramentos muito poucos e bem definidos . Tanto assim que a condição dos judeus parece mais tolerável, os quais, embora não tenham reconhecido o tempo da liberdade, estão, no entanto, sujeitos às imposições da Lei, não às invenções humanas" (55,18,34-19,35; grifo nosso).

Mas, justamente por serem chamados a uma lei de liberdade, a paciência e a caridade têm a última palavra: "Mas a Igreja de Deus, vivendo entre muita palha e joio, tolera muitas coisas" (55,19,35).

Fonte: https://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF