Formação da personalidade (2): Protagonistas da nossa
vida
Quando explicamos o porquê de nossas reações espontâneas, muitas vezes, em vez de dizer “é que sou assim”, teríamos que admitir: “eu me fiz assim”. Editorial sobre a formação do caráter na vida do cristão.
20/01/2015
Caminhar acompanhados
Dentro dos planos divinos, a vida foi feita para ser
compartilhada: o Senhor conta com a ajuda mútua entre os seres humanos.
Constatamos isso, de fato, todos os dias: quantas vezes nem sequer somos
capazes de satisfazer as necessidades mais básicas e primárias de maneira
individual. Ninguém pode ser completamente autônomo. Num nível mais profundo,
todas as pessoas notam essa necessidade de abrir-se a outra pessoa, de
compartilhar a existência, de dar e receber amor. «Ninguém vive só.
Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Continuamente entra na minha
existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço e realizo. E,
vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem»[9].
Esta natural abertura para os outros chega ao seu auge nos
planos redentores do Senhor. Quando recitamos o Símbolo dos Apóstolos,
confessamos que cremos na comunhão dos santos, comunhão que é o núcleo da
Igreja. Por isso, na vida espiritual, também é indispensável aprender a contar
com a ajuda dos outros, que estão implicados de um modo ou de outro em nossa
relação com Deus: recebemos a fé através dos ensinamentos de nossos pais e
catequistas; participamos dos sacramentos que celebra um ministro da Igreja; acudimos
ao conselho espiritual de outro irmão na fé, que também reza por nós; etc.
Saber que caminhamos acompanhados na vida cristã enche-nos
de alegria e tranquilidade, sem que diminua nosso próprio empenho por alcançar
a santidade. Mesmo que muitas vezes nos deixemos levar pelas mãos, nosso papel
não se limita a isso. São Josemaria, ao referir-se à vida espiritual,
manifestava que o conselho não elimina a responsabilidade pessoal.
E concluía: a direção espiritual deve tender a formar pessoas de
critério[10].
Por isto, não queremos que tomem resoluções por nós, nem deixar de pôr esforço
nas tarefas que assumimos.
Ao mesmo tempo em que reconhecemos a ajuda indispensável dos
outros, temos de ser conscientes de que, na vida espiritual é o Senhor quem
atua através deles para transmitir-nos a sua luz e força. Isto nos dá segurança
para continuar caminhando para a santidade quando, por um motivo ou outro,
faltam aquelas pessoas que tinham um papel importante na nossa vida cristã.
Neste sentido, também temos uma profunda liberdade de espírito em relação às
pessoas que Deus pôs ao nosso lado, a quem amamos pelo coração de Cristo, e
cujo apoio agradecemos profundamente.
Livres para amar sem condições
Os cristãos sabemos que a plenitude pessoal chega como fruto
da livre e total disponibilidade aos desejos do Amor de um Deus Criador,
Redentor e Santificador. Os dons que recebemos alcançam seu rendimento máximo
ao abrir-nos à graça de Deus, como confirma a experiência de tantos santos e
santas. Ao deixarem que o Senhor entrasse nas suas vidas, souberam pôr-se
amorosamente a seu serviço, como Santa Maria que, no momento da Anunciação
pronuncia a resposta firme: Fiat! - faça-se em mim segundo a tua
palavra! -, o fruto da melhor liberdade: a de decidir-se por Deus[11].
Quando uma pessoa decide-se por Deus, empenha seus sonhos e
energias no que vale mais a pena. Percebe o sentido último da liberdade, que
não está simplesmente em poder escolher uma coisa ou outra, mas em dispor da
vida para algo grande, aceitando compromissos definitivos. Dedicar as próprias
qualidades a seguir a Cristo, mesmo que implique recusar outras opções, traz
felicidade, o cem por um na terra e a vida eterna[12].
Reflete também um alto grau de maturidade interior, pois só quem tem una
personalidade com convicções é capaz de comprometer-se de uma maneira
total: Livremente, sem coação alguma, porque me apetece, eu me
decido por Deus[13].
Abandonar passado, presente e futuro no Senhor
A alma que opta por Deus move-se com uma paz interior que
supera qualquer tribulação. Sei em quem acreditei[14]:
são palavras que expressam a confiança de São Paulo em meio às dificuldades por
ser fiel à sua vocação de apóstolo das gentes. Quem põe o fundamento no Senhor
goza de uma segurança inquebrantável, e isto lhe permite doar-se também aos
outros: vivendo o celibato por motivos apostólicos, no matrimônio ou em tantos
outros caminhos que pode levar a existência cristã. É uma entrega que envolve
presente, passado e futuro, como rezava São Josemaria: Senhor, meu
Deus! Em tuas mãos abandono o passado, o presente e o futuro, o pequeno e o
grande, o pouco e o muito, o temporal e o eterno[15].
Ninguém pode mudar o passado. No entanto, o Senhor pega a
história de cada um, perdoa os pecados que possam ter existido através do
sacramento da Reconciliação e reintegra harmoniosamente esses eventos na vida
de seus filhos. Tudo é para o bem[16]:
inclusive os erros que cometemos, se sabemos recorrer à misericórdia divina e,
com a graça de Deus, procuramos viver no presente mais pendentes dEle. Assim se
está também em condições de ver com confiança o futuro, pois sabemos que está
nas mãos de um Pai que nos ama: quem está nas mãos de Deus, cai e se levanta
sempre nas mãos de Deus!
Decidir-se por Deus é aceitar o seu convite para escrever
nossa biografia com Ele. Reconhecendo humildemente a liberdade como um dom,
aplicamo-la em cumprir, em companhia de tantas outras pessoas, a missão que o
Senhor nos confia. E experimentamos com alegria que seus planos superam nossas
previsões, como dizia São Josemaria a um jovem: Deixa-te levar pela
graça! Deixa teu coração voar! (...). Faça tua pequena novela: uma novela de
sacrifícios e de heroísmos. Com a graça de Deus ficareis aquém[17].
J.R. García-Morato
[9] Bento
XVI, Enc. Spe Salvi, n. 48
[10] São
Josemaria Escrivá, Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 93
[11] São
Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 25
[12] Mt
19, 29
[13] São
Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 35
[14] 2
Tim 1,12
[15] São
Josemaria Escrivá, Via Sacra, VII estação, n. 3
[16] Rom
8,28
[17] São
Josemaria, anotações tomadas numa tertúlia, 29/11/1974 (AGP, biblioteca, P04,
p. 45).
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