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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Santa Sé publica nova Missa pelo Cuidado da Criação

Cardeal Michael Czerny (à direita), em entrevista coletiva anunciando a Missa pelo Cuidado da Criação hoje (3) no Vaticano. | Hannah Brockhaus/EWTN

Por Hannah Brockhaus*

3 de julho de 2025

A Santa Sé apresentou hoje (3) as orações e leituras da Missa pelo Cuidado da Criação.

Inspirada na encíclica Laudato si' , de 2015 publicada pelo papa Francisco, visa “para pedir a Deus a capacidade de cuidar da criação”, disse hoje o cardeal jesuíta Michael Czerny.

“Com essa missa, a Igreja dá apoio litúrgico, espiritual e comunitário ao cuidado que todos precisamos exercer da natureza, nossa casa comum”, disse Czerny. “Tal serviço é, de fato, um grande ato de fé, esperança e caridade”.

A Missa pelo Cuidado da Criação entra para o conjunto das missas para diversas necessidades e ocasiões que podem ser celebradas em dias da semana em que não haja outras celebrações litúrgicas com precedência.

A Santa Sé publicou o formulário da missa, com opções de leituras bíblicas e as fórmulas de orações recitadas pelo sacerdote: antífona de entrada, coleta, oração sobre as oferendas, antífona da comunhão e oração depois da comunhão.

Czerny disse que o papa Leão XIV vai celebrar uma missa privada usando as novas fórmulas de oração em Castel Gandolfo em 9 de julho. A missa será para funcionários da iniciativa Borgo Laudato si', que busca colocar em prática os princípios para o desenvolvimento integral delineados na encíclica Laudato si'.

Segundo o bispo Vittorio Francesco Viola, secretário do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, as conferências episcopais podem indicar um dia para a celebração da missa, se desejarem.

Viola disse também que “o tema da criação já está presente na liturgia”, mas a missa pelo cuidado da criação ajuda a enfatizar o que o papa Francisco escreveu no parágrafo 66 da Laudato si', que “a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra”.

O dicastério de liturgia da Santa Sé foi responsável pelo novo formulário de missa, pedido pelo papa Francisco e aprovado por Leão XIV, mas Czerny disse que o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, o Dicastério para a Doutrina da Fé e o Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos também colaboraram.

“A Sagrada Escritura exorta a humanidade a contemplar o mistério da criação e a dar infinitas graças à Santíssima Trindade por esse sinal da sua benevolência, que, como um tesouro precioso, deve ser amado, estimado e simultaneamente promovido e transmitido de geração em geração”, diz o decreto do Dicastério do Culto Divino.

“Neste momento, é evidente que a obra da criação está seriamente ameaçada devido ao uso e abuso irresponsáveis ​​dos bens que Deus confiou aos nossos cuidados”, diz também o decreto. “Por isso, considera-se apropriado acrescentar ao missal romano um formulário para a missa pro custodia creationis”.

*Hannah Brockhaus é jornalista correspondente da CNA em Roma (Itália). Ela cresceu em Omaha, no estado americano de Nebraska e é formada em Inglês pela Truman State University no Missouri (EUA).

Fonte: https://www.acidigital.com/noticia/63481/santa-se-publica-nova-missa-pelo-cuidado-da-criacao

O tempo em Santo Agostinho: entre a eternidade de Deus e a fragmentação humana

Entre o Tempo e a Eternidade (The VOZ Insight)

O TEMPO EM SANTO AGOSTINHO: ENTRE A ETERNIDADE DE DEUS E A FRAGMENTAÇÃO HUMANA 

04/07/2025

Dom João Santos Cardoso 
Arcebispo de Natal (RN)

A pergunta provocativa — “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — introduz, no Livro XI das Confissões de Santo Agostinho, uma das mais belas e profundas meditações já feitas sobre o tempo. Longe de ser uma curiosidade irrelevante ou uma especulação vazia, diante da qual se poderia responder jocosamente, como ele mesmo ironiza — “Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos” (Confissões, XI, 12) — trata-se, na verdade, de uma interrogação existencial sincera, nascida do desejo de compreender a própria condição humana à luz da fé. 

Recusando as respostas simplistas, Agostinho confessa: não sei. Mas logo afirma algo essencial: antes da criação, não havia tempo, pois o próprio tempo é criatura de Deus. “Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo” (Confissões, XI, 14). Com essa afirmação, Agostinho nos convida a reconhecer que o tempo não é eterno, apenas Deus o é. E se Deus é eterno, é porque nele não há sucessão de instantes, nem começo ou fim. Tudo o que para nós é passado, presente ou futuro, em Deus é um eterno presente. “Teu hoje é a eternidade” (Confissões, XI, 13), afirma ele, com a força de quem contempla esse mistério com reverência e assombro. A eternidade divina não se mede, não se divide, não se conta; nela tudo é, tudo permanece, tudo está presente. 

Essa reflexão se mostra atual em nossa cultura, marcada por um paradoxo profundo: nunca se correu tanto e nunca se sentiu tanto cansaço, dispersão e tédio. Vivemos como fugitivos do próprio tempo. As agendas estão lotadas, os compromissos se sobrepõem e o tempo escorre por entre os dedos. Há quem se sinta oprimido pela pressa; outros, esmagados pelo vazio, pelo tempo ocioso e sem sentido. O tempo, que deveria ser dom, tornou-se fardo. 

Essa experiência de inquietação diante do tempo já habitava o coração de Agostinho. “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar, já não sei” (Confissões, XI, 14). A célebre frase não expressa ignorância, mas sabedoria: o tempo é familiar a todos nós, mas nos escapa quando tentamos traduzi-lo em conceitos. Para Agostinho, o tempo não é uma entidade física mensurável em si mesma, mas uma experiência da alma. Ele está no interior do ser humano, como uma tensão entre o que foi, o que é e o que ainda virá. Por isso, Agostinho distingue o presente do passado (memória), o presente do presente (atenção) e o presente do futuro (expectativa). 

Ao refletir sobre o tempo, Agostinho distingue claramente entre a eternidade divina e a temporalidade humana. Deus é eterno, imutável, pleno. Nós somos temporais, instáveis, limitados. Deus não espera, não começa nem termina. Ele simplesmente é. Perguntar o que Deus fazia ‘antes’ de criar o mundo é um erro conceitual, pois o ‘antes’ só faz sentido dentro do tempo, e este só começou quando Deus criou todas as coisas. O tempo, o espaço e todas as criaturas foram criados por Deus. Ele está fora do tempo, mas entra nele por amor, por meio da Encarnação do Verbo. O Eterno fez-se tempo e, por isso, o tempo foi redimido. 

Embora Agostinho não utilize os termos gregos chronos e kairós, sua teologia nos ajuda a compreendê-los com clareza. Chronos é o tempo cronológico, linear, o tempo dos relógios e calendários. Já kairós é o tempo oportuno, o instante carregado de sentido, o momento da graça. Quando Agostinho suplica: “Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei […] tua palavra é minha alegria” (Confissões, XI, 2), ele não está pedindo mais horas no dia, mas um tempo novo, um tempo pleno, fecundado pela presença de Deus. Trata-se de transformar o tempo comum em tempo habitado, em tempo de salvação. 

Essa visão agostiniana do tempo como dom e espaço de encontro com o Eterno nos interpela profundamente. Vivemos em uma cultura que perdeu a capacidade de esperar, de contemplar, de simplesmente estar. Falta tempo para Deus, para os outros, para si mesmo. Refletir sobre o tempo, nesse contexto, não é evasão, mas resistência. É uma forma de resgatar o sentido da vida. O tempo, vivido com sabedoria, torna-se lugar de comunhão, espaço de graça, escola de paciência. 

As implicações dessa visão são múltiplas. Teologicamente, ela nos lembra que Deus, eterno, não apenas criou o tempo, mas quis entrar nele para salvá-lo. O tempo é, portanto, o lugar da revelação e da salvação. Espiritualmente, somos convidados a habitar o tempo com profundidade, atenção e gratidão. Cada instante pode ser kairós, um tempo favorável, uma visita da graça. E pastoralmente, há urgência de uma autêntica pedagogia do tempo. Precisamos redescobrir o valor do descanso, da alternância entre ação e contemplação, do domingo como dia do Senhor. A administração do tempo se tornou um desafio pastoral. Não basta ensinar a fazer mais coisas em menos tempo, é preciso aprender a viver com mais sentido e menos pressa. 

O tempo pode ser opressor quando mal vivido, mas torna-se libertador quando habitado com fé. Agostinho nos ensina que o tempo não é condenação, mas caminho. Somos peregrinos do tempo, destinados à eternidade. Quando vivemos o presente com fé e amor, já tocamos, em parte, o eterno. Em Cristo, o eterno entrou no tempo para transfigurá-lo. Viver bem o tempo é preparar-se para a eternidade. É permitir que a esperança nos modele. É compreender que até mesmo os instantes mais difíceis podem ser sagrados. E quando nos sentimos dispersos, vazios ou perdidos, resta-nos a oração que resume toda a vida de Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti” (Confissões, I, 1). 

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo (Parte 2/2)

Identidade e Missão (Opus Dei)

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo

Quarto artigo da série “A caminho do centenário”. Este artigo apresenta a visão de São Josemaria sobre o trabalho como participação na obra criadora de Deus, em continuidade com a tradição bíblica e o Magistério. Longe de ser uma tarefa meramente instrumental e extrínseca, o trabalho é uma colaboração ativa no aperfeiçoamento do mundo criado.

01/06/2025

Criação a caminho

Apresentar o trabalho humano como participação no poder criador de Deus é possível quando se reconhece que a criação possui uma dimensão histórica intrínseca, está in statu viae – em estado de caminho – e, portanto, destinada a ser concluída precisamente pelo trabalho. Um ponto do Catecismo da Igreja Católica (1997) ilustra de forma sugestiva este aspecto: “A criação tem sua bondade e sua perfeição próprias, mas não saiu completamente acabada das mãos do Criador. Ela é criada "em estado de caminhada" ("in statu viae") para uma perfeição última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou” (n. 302). O Concílio Vaticano II havia afirmado claramente esta mesma perspectiva, desenvolvendo-a em diversos pontos da constituição pastoral Gaudium et spes, com o fim de expor o valor das atividades humanas, sua legítima autonomia e sua elevação, pela caridade, ao mistério pascal de Jesus Cristo:

“Uma coisa é certa para os crentes: a atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus [...]. Os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria atividade que prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história” (Gaudium et spes, n. 34).

Ao prolongar a obra do Criador, o ser humano, por sua condição de criatura, não compartilha a transcendência do ato criador de Deus, mas coopera em seu desenvolvimento ao longo do tempo. Sua participação inscreve-se no progresso que a criação experimentou e continuará experimentando na história. E o faz com criatividade, reflexo de seu ser feito à imagem e semelhança de Deus.

Entendido e apresentado como participação no poder divino, o trabalho deixa de ser uma mera atividade extrínseca e transitória, limitada à satisfação de necessidades materiais. Não pode, tampouco, ser reduzido a uma carga imposta inexoravelmente ao ser humano, fonte só de fadiga e estresse: embora esta concepção seja frequente, assumi-la implica adotar uma perspectiva teológica e antropologicamente errônea:

“Devemos convencer-nos, portanto, de que o trabalho é uma maravilhosa realidade que se nos impõe como uma lei inexorável, e de que todos, de uma maneira ou de outra, lhe estão submetidos, ainda que alguns pretendam fugir-lhe. Aprendei-o bem: esta obrigação não surgiu como uma sequela do pecado original nem se reduz a um achado dos tempos modernos. Trata-se de um meio necessário que Deus nos confia aqui na terra, dilatando os nossos dias e fazendo-nos participar do seu poder criador, para que ganhemos o nosso sustento e simultaneamente colhamos frutos para a vida eternao homem nasce para trabalhar, como as aves para voar” (Amigos de Deus, n. 57).

O cristianismo convida-nos, portanto, a mudar de atitude diante do trabalho. Seria uma visão reducionista considerá-lo unicamente como uma necessidade inevitável da qual desejaríamos prescindir ou como um obstáculo para realização de nossos desejos e nossa personalidade. A antropologia bíblica apresenta-o, pelo contrário, como uma contribuição inteligente para o progresso da criação, um mandato criativo que Deus outorgou aos primeiros seres humanos antes do pecado de Adão:

“Desde o começo da sua criação, o homem teve que trabalhar. Não sou eu que o invento: basta abrir a Sagrada Bíblia nas primeiras páginas para ler que - antes de que o pecado e, como consequência dessa ofensa, a morte e as penalidades e misérias entrassem na humanidade - Deus formou Adão com o barro da terra e criou para ele e para a sua descendência este mundo tão belo, ut operaretur et custodiret illum (Gn 2, 15), para que o trabalhasse e o guardasse” (Amigos de Deus n. 57).

Prolongar a criação mediante o próprio trabalho não é, no entanto, um processo automático. Não se trata de inserir mecanicamente a atividade humana dentro de um ato criador divino que atravessa a história. Para participar na obra criadora mediante seu trabalho, o homem precisa ser dócil ao Espírito Santo, Espírito criador e identificar-se com Jesus Cristo, sujeito da recapitulação e da reconciliação do mundo com Deus. Para poder realmente cooperar na ação divina, quer na obra da criação, redenção ou santificação, é preciso estar em estado de graça, o que manifesta que o amor de Deus é atual no sujeito. Em poucas palavras, só sendo homens e mulheres de oração, e transformando o trabalho em oração (cfr. Sulco, n. 497; Amigos de Deus, n.os 64-67), o trabalho converte-se “no ponto de encontro de nossa vontade com a vontade salvadora de nosso Pai celestial” (Carta 6, n. 13).

Um programa de tal envergadura pode se realizar se o trabalho entra na vida de oração de quem o exerce, como tema de seu diálogo com Deus. Só assim a vontade de quem trabalha pode se identificar com a vontade de Deus: compreende-se onde e como exercitar a caridade e as outras virtudes cristãs, recebe-se luzes para examinar a própria consciência, orienta-se a própria atividade para a verdade e o bem, promove-se programas que tendem ao bem comum e à difusão do Evangelho de Jesus Cristo.

Dar a forma de Cristo ao mundo

Ao meditar sobre o trabalho e convertê-lo em objeto de oração pessoal, o cristão aprende a enxertar sua atividade na obra da criação e da salvação. Seguindo as inspirações do Espírito Santo, pode transformar o mundo dando-lhe a forma de Jesus Cristo, e converter assim o trabalho humano em opus Dei, trabalho de Deus. É este o sentido profundo da afirmação de São Josemaria de que o trabalho é o eixo em torno do qual deve girar a santidade e o apostolado daqueles que aderem à nova fundação que Deus, através dele, suscitou (cfr. Carta 31, n.os 10-11).

A centralidade do trabalho não é meramente circunstancial, já que as virtudes e o apostolado desenvolvem-se normalmente no âmbito das relações e dos lugares vinculados à atividade profissional de cada um. Trata-se, sobretudo, de uma centralidade do projeto na medida em que ordena as realidades terrenas a Deus precisamente a partir do que o cristão concebe, realiza e a que dá andamento através de seu trabalho.

Estamos num mundo em construção, em uma história aberta. É necessário, por isso, ouvir o Espírito para compreender, nas situações mutáveis da vida, como dar ao trabalho humano a forma Christi. “Ao empreender vosso trabalho, seja ele qual for, fazei, meus filhos, um exame para comprovar, na presença de Deus, se o espírito que inspira essa tarefa é, realmente, espírito cristão, tendo em conta que a mudança das circunstâncias históricas – com as modificações que ele introduz na configuração da sociedade – pode fazer que o que foi justo e bom em dado momento, deixe de sê-lo” (Carta 29, n. 18). Ainda em caminho rumo à cidade de Deus, o cristão é chamado, por sua vocação batismal, a construir a cidade dos homens (Amigos de Deus, n. 210). Deve-se, portanto, avaliar todas as dimensões que contribuem para o progresso dos homens: o saber, a técnica, a arte, a ciência (cfr. Sulco, n. 293).

A visão positiva do progresso e da pesquisa cientifica, fruto de uma compreensão do trabalho como participação no projeto de Deus para o mundo, não ignora uma legítima preocupação pelas questões éticas que o progresso cientifico e técnico pode apresentar. O espírito cristão sugere, no entanto, centrar a atenção sobretudo na formação e nas virtudes daqueles que trabalham, para que possam atuar com responsabilidade na busca da verdade e do bem. Para os cristãos isto representa alcançar uma síntese madura entre fé e razão, ética e técnica, progresso cientifico e progresso humano. Assim o inspiram tanto o otimismo cristão quanto o amor apaixonado por um mundo que, tendo saído bom das mãos de Deus, foi confiado ao cuidado e ao aperfeiçoamento pelo ser humano através de seu trabalho (cfr. Entrevistas, n.os 23, 116-117).

“Quis o Senhor que os seus filhos, os que recebemos o dom da fé, manifestemos a original visão otimista da criação, ou ‘amor ao mundo’ que palpita no cristianismo. Portanto, não deve faltar nunca entusiasmo no teu trabalho profissional nem no teu empenho por construir a cidade temporal” (Forja n. 703).

Como pai de um caminho eclesial específico e de uma nova fundação, o pensamento de São Josemaria sobre o papel do trabalho humano nos planos de Deus não só se encontra em seus numerosos ensinamentos sobre o sentido espiritual e teológico do trabalho, mas reflete-se ainda nas numerosas obras inspiradas por ele e promovidas por seus filhos e filhas em todo o mundo.

Transmitir uma visão positiva da dignidade do trabalho como a que nos é legada pelos escritos e pela pregação do fundador do Opus Dei, traz consequências muito importantes para a psicologia do homem contemporâneo, sua vida social e a organização de seu tempo. De fato, o trabalho continua sendo um âmbito de tensões e desafios, que somos chamados a discernir e a integrar e que gera conflitos na conciliação entre a profissão e a vida familiar, bem como na relação entre o esforço profissional e o necessário descanso. Viver uma ética baseada na justiça torna-se, além disso, difícil em um ambiente de relações muitas vezes marcadas pelo egoísmo, a autoafirmação e a busca desmedida do lucro.

Tudo isso permite compreender que, em uma história marcada pelo pecado do homem, cooperar na tarefa de levar ao seu fim um mundo criado in statu viae implica também reordenar o que está desordenado, curar o que o pecado feriu. Em suma, significa participar na obra redentora de Cristo (cfr. É Cristo que passa, n.os 65, 183). Tal participação em si mesma é um dom de Deus e só se torna possível quando, na própria vida, o homem rejeita o pecado e vive em graça, como filho de Deus guiado pelo Espírito. O próximo artigo abordará algumas reflexões sobre a dimensão histórica da atividade humana, situando o trabalho na intercessão entre criação e redenção.

Esta série é coordenada pelo prof. Giuseppe Tanzella-Nitti. Conta com outros colaboradores, alguns dos quais são professores e professoras da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma).

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/a-cooperacao-do-trabalho-humano-para-o-projeto-de-deus-sobre-o-mundo/

DENTRO DO VATICANO: Dicastério para a Doutrina da Fé

O prédio do Santo Ofício, sede do Dicastério para a Doutrina da fé  (Vatican News)

Sua missão é auxiliar o Papa e os Bispos "no anúncio do Evangelho em todo o mundo, promovendo e tutelando a integridade da doutrina católica sobre a fé e a moral, haurindo do depósito da fé".

Amedeo Lomonaco - Cidade do Vaticano

Hoje, a missão da Doutrina da Fé é, sobretudo, trabalhar "para fazer crescer a inteligência da fé, a fim de evitar não apenas erros, mas também algumas decisões que 'apagam' o Espírito, pois, embora formalmente corretas, podem minar a riqueza da fé".

Com estas palavras, o prefeito, cardeal Víctor Manuel Fernández, ilustra a missão do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, em sua estrutura, também inclui três secretários: monsenhor Armando Matteo, monsenhor John Joseph Kennedy e monsenhor Charles Jude Scicluna.

História

Os pastores da Igreja têm o dever de guardar intacto o depósito da fé que lhes foi confiado por Cristo. Para responder a essa tarefa, os Pontífices, ao longo da história, serviram-se de diversos instrumentos e diversos Dicastérios surgiram com o objetivo de facilitar o governo da Igreja. Neste contexto, insere-se a origem da Congregação para a Doutrina da Fé.

Seus primórdios remontam a 1542, quando Paulo III instituiu uma Comissão de seis cardeais com a tarefa de supervisionar as questões de fé. Conhecida pelo nome de "Santa Inquisição Romana e Universal", inicialmente tinha o caráter de um Tribunal exclusivamente para as causas de heresia e cisma. Paulo IV, a partir de 1555, expandiu significativamente sua esfera de ação, tornando-a competente para julgar questões morais de natureza diversa.

Ao longo dos séculos, grandes mudanças, inclusive na história da Igreja, levaram a profundas transformações. O tempo presente não é mais o tempo da Inquisição, o Índice não existe mais. Com a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, Francisco modificou a denominação e a estrutura interna da Congregação para a Doutrina da Fé, mudando seu nome para Dicastério para a Doutrina da Fé. Ao longo dos séculos, a tarefa portanto mudou, mas o ímpeto de fidelidade à doutrina dos Apóstolos permanece sempre, indelével.

Dicastério para a Doutrina da Fé - A Capela (Vatican News)

Estrutura

O Dicastério para a Doutrina da Fé compreende duas Seções, Doutrinária e Disciplinar. A Seção Doutrinária trata de questões relevantes para a promoção e proteção da doutrina da fé e da moral. O Escritório Matrimonial, instituído para examinar, tanto de direito como de fato, questões relativas ao privilegium fidei, pertence a esta Seção.

A Seção Disciplinar trata dos crimes reservados ao Dicastério e por ele julgados sob a jurisdição do Supremo Tribunal Apostólico. A Pontifícia Comissão Bíblica e a Comissão Teológica Internacional são instituídas dentro do Dicastério. Cada uma opera de acordo com suas próprias normas aprovadas.

Comissão Bíblica e Comissão Teológica Internacional

A Pontifícia Comissão Bíblica foi instituída por Leão XIII com a Carta Apostólica Vigilantiae studiique de 30 de outubro de 1902. É um órgão consultivo, colocado a serviço do Magistério. A Comissão Teológica Internacional foi criada por Paulo VI em 1969. Sua tarefa é auxiliar a Santa Sé no exame de questões doutrinais de maior importância.

Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores

A Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores também está instituída no Dicastério para a Doutrina da Fé: sua tarefa é fornecer ao Pontífice conselho e assessoria, bem como propor as iniciativas mais adequadas para a proteção de menores e pessoas vulneráveis.

Esta Pontifícia Comissão está comprometida, em particular, em desenvolver estratégias e procedimentos adequados, por meio de diretrizes, para proteger menores e pessoas vulneráveis ​​de abusos sexuais e em fornecer uma resposta adequada a tais condutas por parte do clero e dos membros dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, de acordo com as normas canônicas e levando em consideração as exigências do direito civil.

O prédio do Santo Ofício (Vatican News)

Do Vaticano para o mundo

A sede do Dicastério para a Doutrina da Fé é no Prédio do Santo Ofício, localizado entre a Basílica de São Pedro e uma das entradas da Cidade do Vaticano. Deste lugar, que parece fundir-se com o abraço da Colunata de Bernini para o mundo, renova-se também em nossos dias o serviço de promoção e salvaguarda da fé. Uma missão que, na vida do Dicastério para a Doutrina da Fé, também se articula por meio de um amplo espectro de atividades, incluindo simpósios, jornadas de estudo, documentos e encontros.

Os esforços de hoje se somam àqueles que caracterizaram as origens da Igreja. O que era chamado de "preocupação com a doutrina correta" e nasceu antes do Santo Ofício, já estava no Novo Testamento. Muitos Concílios e Sínodos testemunham isso. O Dicastério para a Doutrina da Fé, inspirando-se nessa tradição, continua e realiza sua missão: a de salvaguardar o depósito da fé.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Meio ambiente não deve servir para exercer poder e explorar os pobres, diz Leão XIV

Jardins Vaticanos em Castel Gandolfo, Itália. | Courtney Mares/EWTN

Por Kristina Millare*

3 de julho de 2025

O papa Leão XIV disse ontem (2) que a natureza não deve ser uma “moeda de troca” em sua mensagem anunciando o tema Sementes de Paz e Esperança para o 10º Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, marcado para 1º de setembro.

Inspirando-se na encíclica Laudato si', escrita pelo papa Francisco há dez anos, o papa disse que “a Bíblia não promove o domínio despótico do ser humano sobre a criação” e, portanto, não deve ser explorada.

“A própria natureza se torna, por vezes, um instrumento de troca, uma mercadoria a negociar para obter ganhos econômicos ou políticos”, disse Leão XIV. “Nessas dinâmicas, a criação transforma-se num campo de batalha pelo controle dos recursos vitais”.

O papa disse que países pobres, sociedades marginalizadas e comunidades indígenas são desestabilizadas e penalizadas como resultado de conflitos por água e recursos naturais, e pela destruição de florestas e áreas agrícolas.

“Essas várias feridas devem-se ao pecado”, disse também Leão XIV. “Não era certamente isso que Deus tinha em mente quando confiou a Terra ao homem criado à sua imagem (cf. Gn 1, 24-29)”.

Em sua mensagem divulgada ontem, o papa disse que três coisas são necessárias para uma verdadeira justiça ambiental: oração, determinação e ações concretas.

Leão XIV convidou os fiéis a considerarem em oração o significado das sementes como uma metáfora da vinda do reino de Deus nas Escrituras, dizendo: “Jesus usa com frequência a imagem da semente”.

“Assim, em Cristo, somos sementes. Não só isso, mas sementes de Paz e Esperança”, disse o papa. “Como diz o profeta Isaías, o Espírito de Deus é capaz de transformar o deserto árido e ressequido num jardim, num lugar de repouso e serenidade”.

Segundo Leão XIV, a justiça ambiental não é um “conceito abstrato” ou um “objetivo distante”. “Chegou verdadeiramente o tempo de dar seguimento às palavras com obras concretas”, disse o papa. “Trabalhando com dedicação e ternura, muitas sementes de justiça podem germinar, contribuindo para a paz e a esperança”.

Este ano, Leão XIV visitou duas vezes locais ligados aos projetos de ecologia integral da Santa Sé fora de Roma. Além de visitar o projeto Borgo Laudato si' em Castel Gandolfo em maio, ele visitou o local proposto para o projeto de energia solar da Santa Sé em Santa Maria di Galeria no mês passado.

O papa elogiou essas iniciativas, como exemplos de “como as pessoas podem viver, trabalhar e construir comunidades aplicando os princípios da encíclica Laudato si’ ”.

“Peço ao Todo-Poderoso que nos envie em abundância o seu espírito do alto (cfIs 32, 15), para que essas sementes e outras semelhantes possam dar frutos abundantes de paz e esperança”, disse Leão XIV.

*Kristina Millare é jornalista freelance com experiência profissional em comunicação no setor de ajuda humanitária e desenvolvimento, jornalismo de notícias, marketing de entretenimento, política e governo, negócios e empreendedorismo.

Fonte: https://www.acidigital.com/noticia/63469/meio-ambiente-nao-deve-servir-para-exercer-poder-e-explorar-os-pobres-diz-leao-xiv

“Um samaritano, porém, que estava viajando, chegou perto dele e, ao vê-lo, moveu-se de compaixão.” (Lc 10,33)

Palavra de Vida Julho 2025 (Revista Cidade Nova)

“Um samaritano, porém, que estava viajando, chegou perto dele e, ao vê-lo, moveu-se de compaixão.” (Lc 10,33) | Palavra de Vida Julho 2025

por Organizado Letizia Magri com a comissão da Palavra de Vida   publicado às 00:00 de 23/06/2025, modificado às 11:02 de 01/07/2025

Marinho está no metrô de uma grande cidade. Todos os passageiros estão concentrados em seus celulares: virtualmente conectados mas, na realidade, presos na armadilha do isolamento. Ele pergunta a si mesmo: “Será que não somos mais capazes de olhar nos olhos uns dos outros?”

Essa é a experiência habitual, especialmente nas sociedades que são ricas de bens materiais, mas cada vez mais pobres de relacionamentos humanos. Enquanto o Evangelho volta sempre com sua proposta original, criativa, capaz de “fazer novas todas as coisas1”.

No longo diálogo de Jesus com um doutor da Lei, este lhe pergunta o que deve fazer para herdar a vida eterna2. Jesus responde com a conhecida parábola do Bom Samaritano: um sacerdote e um levita, figuras importantes para a sociedade da época, veem na beira da estrada um homem que tinha sido atacado por assaltantes, mas passam direto.

“Um samaritano, porém, que estava viajando,  chegou perto dele e, ao vê-lo, moveu-se de compaixão.”

Ao doutor da Lei, que conhece bem o mandamento divino do amor ao próximo3, Jesus propõe como modelo um estrangeiro, considerado cismático e inimigo: também esse vê o homem ferido, mas é movido pela compaixão – um sentimento que vem de dentro, do mais profundo do coração humano –; por isso, interrompe sua viagem, se aproxima do ferido e cuida dele.

Jesus sabe que todos os seres humanos são feridos pelo pecado, e que a sua missão é precisamente esta: curar os corações com a misericórdia e o perdão gratuitos de Deus, para que eles, por sua vez, sejam capazes de mostrar proximidade e partilha.

“[…] Para aprendermos a ser misericordiosos como o Pai, perfeitos como Ele, devemos olhar para Jesus, que é a plena revelação do amor do Pai. […] O amor é o valor absoluto que dá sentido a todo o resto, […] que encontra sua expressão mais alta na misericórdia. Misericórdia que ajuda a ver sempre novas as pessoas com as quais vivemos a cada dia, na família, na escola, no trabalho, sem nos lembrarmos mais dos seus defeitos, dos seus erros; que nos leva a não julgar, mas a perdoar as injustiças sofridas. Mais ainda: a esquecê-las4”. 

“Um samaritano, porém, que estava viajando,  chegou perto dele e, ao vê-lo, moveu-se de compaixão.”

A resposta final e decisiva de Jesus é expressa com um convite claro: “Vai e faze o mesmo5”. É isto que Ele repete a todo aquele que acolhe a sua Palavra: fazer-se próximo, tomando a iniciativa de “tocar” as feridas das pessoas que encontra todos os dias nos caminhos da vida.

Para viver a proximidade mostrada pelo Evangelho, peçamos a Jesus, inicialmente, que nos cure da cegueira dos preconceitos e da indiferença que nos impede de vermos para lá de nós mesmos.

Além disso, aprendamos com o samaritano a abertura à compaixão, que o leva a arriscar a própria vida. Imitemos a sua prontidão de dar o primeiro passo em direção ao outro e a disponibilidade para escutá-lo, para assumir como nossa a sua dor, livres de julgamentos e da ansiedade de estar “perdendo tempo”.

Foi esse o testemunho de uma jovem coreana: “Procurei ajudar uma adolescente que não era da minha cultura e que eu não conhecia bem. Mesmo sem saber direito o que ou como deveria fazer, criei coragem e tentei. E fiquei surpresa ao perceber que, ao oferecer essa ajuda, eu mesma me vi ‘curada’ das minhas feridas interiores.”

Esta Palavra de Vida nos oferece a chave de ouro para realizar o humanismo cristão: ela nos torna conscientes da humanidade que temos em comum, na qual se reflete a imagem de Deus; ela nos ensina a superar com coragem os esquemas da “proximidade” física e cultural. De acordo com essa perspectiva, é possível expandir os limites do “nós” até o horizonte do “todos” e descobrir os próprios fundamentos da vida em sociedade.

Organizado por Letizia Magri com a comissão da Palavra de Vida 

1) Cf. Ap 21,5.

2) Cf. Lc 10,25-37.

3) Dt 6,5; Lv 19,18.

4) LUBICH, Chiara, Amor que é misericórdia, Palavra de Vida, junho de 2002. 

5) Lc 10,37. 

Fonte: https://www.cidadenova.org.br/editorial/inspira/4062-um_samaritano_porem_que_estava_viajando

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo (Parte 1/2)

Identidade e Missão (Opus Dei)

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo

Quarto artigo da série “A caminho do centenário”. Este artigo apresenta a visão de São Josemaria sobre o trabalho como participação na obra criadora de Deus, em continuidade com a tradição bíblica e o Magistério. Longe de ser uma tarefa meramente instrumental e extrínseca, o trabalho é uma colaboração ativa no aperfeiçoamento do mundo criado.

01/06/2025

A partir da metade do século XIX, o tema do trabalho e de suas dinâmicas ganhou profundidade na reflexão teológica. É a época da revolução industrial e das grandes mudanças socioculturais. Surgem tensões entre classes sociais. A vida familiar e comunitária experimenta novas formas de organização. Com a publicação da encíclica Rerum novarum (1891) de Leão XIII, primeira de uma longa tradição de encíclicas sociais, a Doutrina Social da Igreja se desenvolveu gradualmente. Nas primeiras décadas do século XX nasce a teologia das realidades terrenas, que em breve se verá relacionada com uma incipiente teologia do laicato. Nesses anos, antes e durante o Concílio Vaticano II, se experimentam novas formas de ação pastoral, destinadas a difundir o Evangelho nas novas situações sociais e trabalhistas.

A questão do valor do trabalho e o papel das atividades humanas na edificação do Reino de Deus começam a fazer parte dos estudos do Concílio e são objeto de um novo e profundo desenvolvimento na constituição Gaudium et spes, especialmente os números 33-39. Os Padres conciliares não têm medo de fazer perguntas exigentes:

“O homem sempre procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida; hoje, porém, sobretudo graças à ciência e à técnica, estendeu o seu domínio à natureza inteira , e continuamente o aumenta [...]. Muitas são as questões que se levantam entre os homens, perante este imenso empreendimento, que já atingiu o inteiro gênero humano. Qual o sentido e valor desta atividade? Como se devem usar estes bens? Para que fim tendem os esforços dos indivíduos e das sociedades??” (Gaudium et spes, n. 33).

Em meados do século XX surgem diversas obras teológicas que abordam essas questões. Ao refletir sobre o sentido do trabalho humano, vários autores tentam esclarecer o que a perspectiva cristã, iluminada pelo mistério pascal de Jesus Cristo, traz para o dinamismo do progresso social, técnico e científico. Onde deve situar-se a esperança cristã: na construção do Reino de Cristo já presente na história, em seu cumprimento futuro no final dos tempos ou em algum ponto intermediário? De onde emana a luz que orienta o sentido das atividades humanas: do mistério da Encarnação ou de sua orientação escatológica rumo à Jerusalém celeste?

Muitos teólogos trouxeram suas próprias reflexões a este debate. Entre eles destacam-se Gustave Thils, com Théologie des réalités terrestres [Teologia das realidades terrenas] (1946); Marie-Dominique Chenu, Pour une théologie du travail [Para uma teologia do trabalho] (1955); Alfons Auer, Christsein im Beruf [Ser cristão no trabalho] (1966); Johann Baptist Metz, Zur Theologie der Welt [Sobre a teologia do mundo] (1968); e Juan Alfaro, Hacia una teología del progreso humano [Em direção a uma teologia do progresso humano] (1969). Todos coincidem em ressaltar que a atividade humana no mundo tem uma dimensão espiritual e que, tendo sido criados à imagem e semelhança de Deus, o homem e a mulher cooperam ativa e livremente em seu plano sobre a criação.

Nas obras filosóficas e poéticas de Karol Wojtyla, como depois no magistério pontifício de São João Paulo II, o trabalho humano ocupa um lugar central. O professor de Ética de Lublin desenvolve a dimensão imanente do trabalho no sujeito, ou seja, o que traz dignidade à pessoa e à formação de sua identidade. Em sua obra poética, Wojtyla enfatiza que a fadiga inerente ao trabalho se traduz em generosidade e afeto para aqueles que dele se beneficiam, revelando assim um compromisso de amor. A grandeza do trabalho material, não está, portanto, no produto final e sim no sujeito que o realiza. O mistério do Verbo encarnado fundamenta tanto a dignidade da pessoa que trabalha, quanto a dignidade da matéria que o trabalho transforma. Muitos elementos da “teologia do trabalho” de Karol Wojtyla confluirão posteriormente na encíclica Laborem exercens (1981), o documento magisterial mais extenso e profundo até agora sobre o significado humano e cristão do trabalho.

Ao longo do tempo, o magistério da Igreja acompanhou e continua acompanhando as questões que surgem do progresso social e técnico pois a sociedade humana e as dinâmicas do trabalho evoluem com rapidez. O extraordinário progresso do homem, tanto no conhecimento da realidade como em sua capacidade de transformá-la, traz novas perspectivas, mas também novos desafios que requerem uma orientação moral.

Uma dignidade ancorada na Escritura

Diversos autores analisaram os ensinamentos de São Josemaria sobre o trabalho, contextualizando-os no contexto teológico e social de sua época[1]. Seus escritos não entraram em debate com a teologia do seu tempo, nem a proposta era desenvolver o magistério do Concílio Vaticano II. No entanto, o fundador do Opus Dei transmitiu uma visão específica do trabalho que merece ser estudada com atenção. A luz fundacional que recebeu de Deus levou-o a uma compreensão renovada da mensagem bíblica sobre a atividade humana no mundo e proporcionou-lhe uma compreensão nova e mais profunda da lógica da Encarnação.

O fundador do Opus Dei comentou extensamente a presença do trabalho humano na Sagrada Escritura, especialmente no livro do Gênesis no contexto da criação do homem e da mulher e em referência ao mandato recebido de Deus de cultivar e povoar a terra (cfr. Amigos de Deus n. 57; É Cristo que passa, n. 47). O mundo, a terra e a matéria são realidades boas porque saíram das mãos de Deus e o ser humano é chamado a atuar de acordo com os fins dos planos divinos (cfr. É Cristo que passa, n. 112; Entrevistas, n. 114). Da mesma forma, São Josemaria recorreu frequentemente aos livros sapienciais especialmente os que louvam as virtudes humanas, o trabalho bem feito e a sábia administração do mundo recebido de Deus.

Na economia do Novo Testamente, caracterizada pela radical novidade da Encarnação do Verbo, São Josemaria ressaltou muitas vezes que Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, ao assumir a natureza humana, assumiu também o trabalho, exercendo o ofício de tektón, de artesão, que aprendeu na oficina de José (cfr. É Cristo que passa, n. 55). Para explicar o sentido cristão do trabalho como caminho de santificação no meio do mundo, costumava propor o exemplo dos primeiros cristãos: seguindo os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, realizavam todos os tipos de atividades honestas e santificáveis, transformando com a caridade de Cristo a sociedade na qual viviam e tornando-a mais humana (cfr. Entrevistas, n. 24; Sulco n.os 320, 490).

Enquanto o período medieval não elaborou uma “espiritualidade do trabalho” propriamente dita, a modernidade tende a apresentar o homem em oposição a Deus, exaltando sua razão e sua capacidade técnica como fundamentos de uma dignidade e autonomia contrapostas à autoridade do Criador. Nenhuma destas etapas históricas, com poucas exceções, ofereceu uma estrutura teológica ou espiritual que enfatizasse o ser humano como colaborador do poder criador de Deus; alguém que, com seu trabalho, participa em seu projeto para o mundo. São Josemaria está, no entanto, persuadido de que a nova fundação que Deus lhe pede para promover na Igreja implica precisamente a difusão desta nova visão do trabalho; ou melhor, a recuperação de uma perspectiva que a passagem dos séculos tinha feito cair no esquecimento.

“O trabalho é participação na obra criadora, é vinculo de união com os outros homens e meio para contribuir com o progresso de toda a humanidade, é fonte de recursos para sustentar a própria família, é ocasião de aperfeiçoamento pessoal, é – importa muito dizê-lo claramente – meio e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora” (Carta 14, n.4).

A dignidade do trabalho está ancorada no mandato dado por Deus a nossos primeiros pais e, na economia do Novo Testamento, no trabalho assumido pelo Verbo encarnado no contexto da vida cotidiana da Sagrada Família de Nazaré. Voltar a ressaltar esta perspectiva faz parte integrante da missão que São Josemaria atribui à nova fundação:

“O Senhor suscitou o Opus Dei em 1928 para ajudar a recordar aos cristãos que, como conta o livro do Gênesis, Deus criou o homem para trabalhar. Viemos chamar de novo a atenção para o exemplo de Jesus que, durante trinta anos, permaneceu em Nazaré trabalhando, desempenhando um ofício. Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho de salvação” (Entrevistas, n. 55).


[1] J.L. Illanes, La Santificación del trabajo, (1980); “Trabajo” (2013) em Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer; Ante Dios y en el mundo. Apuntes para una teología del trabajo (1997); P. Rodríguez Vocación, trabajo, contemplación (1986); E. Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, vol III, cap. 7 (2013); G. Faro, Il lavoro nell’insegnamento del Beato Josemaría Escrivá (2000); A. Aranda, Identidad cristiana y configuración del mundo. La fuerza configuradora de la secularidad y del trabajo santificado” (2002), emLa grandeza della vita quotidiana, vol. 1.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/a-cooperacao-do-trabalho-humano-para-o-projeto-de-deus-sobre-o-mundo/

O cristianismo: uma história simples (Parte 4/4)

Caravaggio, A vocação de Pedro e André, Royal Gallery Collection, Hampton Court Palace, Londres  30Giorni

RECORDANDO PADRE GIACOMO...

Arquivo 30Dias nº 05 - 2012

O cristianismo: uma história simples

Encontro com padre Giacomo Tantardini no Centro Cultural Fabio Locatelli, de Bérgamo 15 de dezembro de 2000.

pelo Padre Giacomo Tantardini

Queria dizer uma última coisa. O que pede ao homem essa graça sem a qual o homem nada faz? “Que a Tua graça sempre nos preceda e acompanhe”, diz uma das orações da Igreja. Lex orandi legem statuat credendi, dizia a antiga fórmula que Pio XII citou, mas, talvez prevendo o que aconteceria, trocou depois por Lex credendi legem statuat orandi, ou seja, que a lei da fé estabeleça a lei da oração. Porém, a antiga fórmula dizia que é a lei da oração que estabelece a lei da fé. Santo Agostinho, para responder aos pelagianos, usa normalmente este argumento: vocês dizem que a fé não é graça, então por que a Igreja roga que um não crente se converta? Ou essas orações são por modo de dizer ou é Deus que converte o coração. Vocês dizem que permanecer na fé não é graça, mas então por que pedimos na oração do Senhor que não nos deixe cair em tentação? Se fosse capacidade nossa vencer a tentação, não rezaríamos pedindo não cair em tentação. Portanto, isso significa que não deixar-se vencer pela tentação é graça. Ou a Igreja diz as suas orações por modo de dizer ou vocês têm de aceitar, diz Agostinho aos hereges pelagianos, que cada passo da vida cristã é graça; do contrário, teriam de eliminar as orações da Igreja. “Que a Tua graça sempre nos preceda e acompanhe, ó Senhor”. Então, que cabe ao homem neste caminho em que a iniciativa é Sua? “Se não tomas a iniciativa, eu nada faço”, dizia na véspera da sua morte inesperada o papa Luciani. Na quinta-feira à noite morreu e na quarta-feira tinha feito o gesto que toda quarta-feira o papa faz, falando da caridade. Gesto todo centrado nesta coisa: se Tu não tomas a iniciativa, eu nada faço. E dizia: que significa tomar a iniciativa (e citava Santo Agostinho, uma das frases mais fantásticas de Agostinho)? Não significa apenas que atrai a minha liberdade, mas significa também que me concede estar contente por ser atraído. Não só me atrai, mas me dá o prazer (Agostinho diz realmente voluptas, prazer) de ser atraído. Se não me dá o prazer de aderir, se não me dá o prazer de ir atrás dEle, não posso ir atrás dEle. Não só atrai a vontade, mas doa o prazer de ser atraído. É uma das páginas mais bonitas do magistério ordinário da Igreja, esse discurso sobre a caridade do papa Luciani há vinte e dois anos.

Mas então o que é possível ao homem? Digo-o com as palavras de Dom Giussani num artigo sobre o Santo Rosário publicado em 30 de abril no jornal Avvenire (na minha opinião, uma das coisas absolutamente mais belas, não apenas de Dom Giussani, mas de toda a Igreja nestas décadas): “A resposta a essa graça está toda na oração de que somos capazes”. A resposta a essa graça (que não é só o início, mas está em cada passo) está toda na oração de que somos capazes. A nossa resposta é uma oração, é um pedido. A nossa resposta é a surpresa de um pedido, um pedido como o de João e André: “Onde ficas?” Diante de uma coisa tão bela, a nossa resposta é: “Fica!”. Diante de uma doçura tão grande, a nossa resposta é: “Não nos abandones, fica!”. Toda a nossa resposta é essa, e é toda a resposta da criança quando o pai e a mãe lhe querem bem. “A nossa resposta é uma oração. Não é uma capacidade particular, é apenas o ímpeto da oração”. Pode ser o choro da criança que pede ao pai e à mãe que lhe queiram bem. O choro. Na antiga liturgia havia uma missa para pedir o dom das lágrimas. Pedimos muito mais com as lágrimas que com as palavras. O ímpeto, o ímpeto de um pedido. Habet et laetitia lacrimas suas. Santo Ambrósio diz isso. Quando a pessoa está contente com essa doçura, essa letícia também tem suas lágrimas. No fundo a alegria se exprime somente chorando. Assim diz Giussani naquele artigo: “A nossa resposta é uma oração, não é uma capacidade particular, é apenas o ímpeto da oração”. Depois acrescenta Giussani (quero ler esta coisa porque retoma Péguy, com quem iniciamos): “Entramos no mês de maio [agora estamos na novena de Natal]. O povo cristão há séculos foi abençoado [o início é Seu: abençoado] e confirmado no seu estar protendido para a salvação [confirmado: porque, se Ele não confirma, mesmo que O tenhamos encontrado, não permanecemos no encontro. É isso que diz a simplicidade da Tradição. Por exemplo, um dogma do Concílio de Trento diz: “Se alguém está em estado de graça, não pode permanecer em estado de graça sem uma ajuda especial da graça”. Vocês entendem como toda a vida cristã é sustentada pela iniciativa dEle? Se alguém está em estado de graça, não pode pedir sem uma especial ajuda da graça; sem uma atração que se renova, não permanece nessa atração. Não é possível viver de um amor passado, não é possível viver da atração de ontem, nem da atração de um instante atrás. Não é possível. Só vivemos do presente. Portanto, se alguém está em estado de graça, para permanecer em estado de graça é preciso a renovação dessa ajuda especial]. O povo cristão por séculos foi abençoado e confirmado no seu estar protendido para a salvação, eu creio, especialmente por uma coisa: o Santo Rosário”. É simples a vida cristã, é simples. Depois de décadas de tantas palavras, de tantas lutas, de tantos desafios... Havia um ângelus do papa Luciani que dizia: “Menos batalhas e mais orações”. O povo cristão foi abençoado e confirmado, eu creio, por uma coisa: a oração do Santo Rosário.

E termino lendo alguns versos da poesia de Péguy com que comecei. Descreve a permanência dessa graça. “Eis o lugar do mundo onde tudo se torna fácil”. Fácil também o pecado, também a traição, como em Pedro. Fácil também a tentação de correr atrás da luxúria, da usura e do poder. Mas fácil ser reabraçados. E chorar de gratidão. Mais fácil. A diferença é que quem não faz experiência disso não sabe dessa coisa mais fácil. Sabe de todas as outras coisas, mas não sabe dessa coisa mais fácil. Mais fácil, mais bela, mais simples. Tudo se torna fácil. “O arrependimento, a partida e também o acontecimento.” Até o reacontecer dessa surpresa é fácil: no Paraíso será perene, aqui é fácil, aqui é fácil que reaconteça, não perene. E diz ainda Santo Agostinho: o Senhor também aos Seus eleitos, aos Seus santos pode não dar em alguns momentos a atração fascinante a Si, para que assim, experimentando serem pecadores, ponham nEle a esperança e não neles mesmos. “E o adeus temporário, a separação, / O único canto da terra em que tudo se faz dócil. [...] O que por toda parte requer um exame / Aqui nada mais é que o efeito de uma indefesa juventude”. O que por toda parte requer um exame, pelo qual você deve demonstrar que é bom... Até em casa é assim, muitas vezes. Você tem de demonstrar que é bom. E não pode ser um pobre pecador. Tem de demonstrar que é bom. Assim, ao fato de ser pecador como todos, acrescenta também a hipocrisia, que é pecado mais grave, o dos fariseus. “O que por toda parte requer um exame / Aqui nada mais é que o efeito de uma indefesa juventude. / O que por toda parte pede um adiamento / Aqui nada mais é que uma presente fragilidade. // O que por toda parte requer um atestado / Aqui nada mais é que o fruto de uma pobre ternura. / O que por toda parte pede um toque de destreza/ Aqui nada mais é que o fruto de uma humilde incapacidade[...]. O que por toda parte é obrigação de regra / Aqui nada mais é que um ímpeto e um abandono”. Como diz Giussani. Só o ímpeto da oração, só o ímpeto do pedido. Como a criança que durante o dia pode quebrar muitos copos. Quebrasse ela mil copos e mil vezes diria “mamãe, ajude-me a não quebrá-lo”; esse é o homem cristão. “Mamãe, ajuda-me a não quebrá-lo.” E é mais fácil, mais fácil para a criança dizer nos braços da mãe: “Mamãe, ajuda-me a não quebrá-lo”, que quebrar o copo. “O que por toda parte é obrigação de regra / Aqui nada mais é que um ímpeto e um abandono; / O que por toda parte é uma dura pena / Aqui nada mais é que uma fraqueza que é soerguida. [...] O que por toda parte seria um duro esforço / Aqui nada mais é que simplicidade e paz; / O que por toda parte é a casca rugosa / Aqui nada mais é que a seiva e as lágrimas da trepadeira. [...] O que por toda parte é um bem perecível / Aqui nada mais é que paz e veloz desimpedimento; / O que por toda parte é um empertigar-se / Aqui nada mais é que uma rosa e uma pegada na areia. [...] Disseram-nos tanta coisa, ó Rainha dos Apóstolos/ Perdemos o gosto pelos discursos / Já não temos altares, a não ser os vossos / Nada mais sabemos senão uma oração simples”. Bom Natal.

Caim mata Abel, Catedral de Monreale, Palermo | 30Giorni
A oferta de Abel e Caim, Capela Palatina, Palermo [© Franco Cosimo] | 30Giorni
Caravaggio, A vocação de Mateus, igreja de São Luís dos Franceses, Roma | 30Giorni

Fonte: https://www.30giorni.it/

Entre as “carreteras” de Lima, a recordação do missionário vindo de Chicago

Entre as "carreteras" de Lima (Vatican News)

A reportagem sobre os locais de missão de Robert Francis Prevost no Peru. Uma parada na capital do país sul-americano entre os agostinianos que lembram o confrade que agora se tornou Papa: “um homem próximo da Eucaristia, nas orações, na preparação da pizza, porque gostava de cozinhar. Um homem fraterno, mas ao mesmo tempo firme quando era necessário”.

Salvatore Cernuzio - enviado ao Peru

No barulho contínuo de buzinas e motores nas “carreteras” de Lima e sob o cinza geral do céu, que os habitantes chamam de “panza de burro” em referência ao cinza esbranquiçado da barriga de um burro, o convento de Santo Agostinho, no centro histórico, parece um oásis de cores, silêncio e recolhimento. Uma antiga estrutura de arquitetura rococó, a poucos passos da Plaza de Armas, embelezada por afrescos e efígies sagradas, entre as quais Nuestra Señora de Gracia, padroeira do Peru, venerada em 8 de maio. A data, ou seja, de eleição de Robert Francis Prevost.

A Igreja de Santo Agostinho no centro de Lima (Vatican News)

O então missionário agostiniano raramente visitava esta capital que imediatamente envolve e perturba os cinco sentidos, entre a umidade que gruda nas roupas, o cheiro que varia de borracha queimada a banana-da-terra assada, o zumbido dos mototáxis (muitos) e combis (uma espécie de ônibus com uma dezena de assentos) que parecem competir entre si mais do que dirigir. De seus territórios no norte – vilarejos, cidades, bairros – o agostiniano de Chicago mudou-se para a capital apenas para as assembleias gerais de sua ordem religiosa. Os confrades, porém, lembram-se bem dele, desde quando, com pouco mais de 30 anos, em meados dos anos 80, começou a missão em Chulucanas e depois em Trujillo, sua residência por 11 anos, e finalmente em Chiclayo como bispo.

«Ehhh, o nosso Roberto!», suspira o Pe. Gioberty Calle, cruzando os braços sob a batina preta com cinto de couro. «Lembro-me dele muito próximo de nós na Eucaristia, nas orações, na preparação da pizza, porque gostava de cozinhar... Lembro-me dele fraterno, mas ao mesmo tempo firme quando era necessário».

O “padre” fala com voz de barítono, passeando pelo pátio do convento, decorado com azulejos hispano-mouriscos, enquanto o canto dos periquitos se mistura ao barulho externo. A atmosfera permanece, no entanto, abafada, suspensa no tempo. Não era assim aqui em San Agustín na noite de 8 de maio, quando o cardeal protodiácono anunciou o Habemus Papam. Sinos, gritos de alegria e aplausos ressoaram por todo o convento. O Pe. Gioberty estava comemorando o aniversário de um amigo sacerdote de outra comunidade. Era hora do almoço e ele correu imediatamente para a casa que divide com outros três irmãos para se sentar em frente à TV e assistir à fumaça branca. “Sentamos e ligamos rapidamente a TV. Estávamos esperando. A pergunta era: será que é o nosso irmão Roberto?”.

E foi o “padre Roberto” que apareceu no Balcão das Bênçãos, saudando o seu Peru e proclamando-se “filho de Santo Agostinho”. Uma passagem que o Pe. Calle lembra colocando a mão na cabeça, em sinal de emoção. “Foi realmente uma surpresa. Eu olhava como se não fosse verdade... Ele é um homem de fé, é um agostiniano. Agradeço-lhe por ter dito isso livremente”. O religioso aproveita os meios de comunicação do Vaticano para enviar uma mensagem ao seu “velho amigo”: “Você é um agostiniano. Você sabe bem, Roberto, que isso te envolve e te compromete. Te compromete com sua vocação, com sua fé, com seu seguimento de Deus. Não tenha medo, nós te acompanhamos em oração. Aqui você tem seus irmãos e o Peru te ama. Conte conosco e volte ao Peru, estamos esperando por você”.

O Pe. Gioberty Calle (Vatican News)

Todos dizem “volte ao Peru” a este Papa que, apesar de suas raízes americanas, é considerado “peruano” em todos os aspectos. Por outro lado, o Peru é um país que, apesar de suas contradições e limitações, abre uma brecha na alma e lá se sedimenta. Irmã Margaret Walsh, missionária marista, australiana, mas agora naturalizada peruana, sabe bem disso. Baixa estatura, olhos azuis vivos, um espanhol irresistível com os “R” e os “O” com um acento anglo-saxão marcado, ela também guarda lembranças pessoais do Padre Prevost, especialmente dos primeiros tempos de sua missão. “Quando ele chegou, era tão jovem... mas desde o início foi muito aberto, muito atencioso e com uma grande capacidade de falar com as pessoas, sensível às diferenças, sem nunca cair na crítica de uma cultura tão diferente”.

A Irmã Margaret, que está no Peru há cerca de 30 anos, após várias viagens pelo mundo (incluindo a Itália), compartilha suas memórias da capela da casa de dois andares, na zona de Callao, nos arredores de Lima, onde ela e suas irmãs vivem, cantam e rezam todos os dias. As outras missionárias preparam café e um bolo de cenoura, ela arruma um vaso de flores ao lado de uma foto do Papa Leão. Ela ri ao lembrar-se da noite de 8 de maio: “¿Quién será? ¿Quién será? Todos nós aqui em Callao nos perguntávamos. Talvez o Padre Robert...”.

A freira sorri novamente ao pensar que o homem vestido de branco hoje é o mesmo que, anos atrás, ela viu montado em uma mula. “Era até perigoso, sabe? Porque a mula tende a andar perto das margens”. Na estação das chuvas, porém, era a única alternativa para se deslocar a pé para zonas altas, distantes e frias, e Prevost “era uma pessoa com o desejo de chegar aos outros”. Sobre ele, a Irmã Margaret lembra também o grande respeito que demonstrava pelo papel das mulheres na Igreja. Ela conta as muitas conversas com sua superiora e também a estima demonstrada pelas outras religiosas com quem conversava durante os almoços e jantares. A uma “mulher”, a Irmã Walsh confia o pontificado de Leão XIV, a Nossa Senhora Mãe do Bom Conselho: “espero que continue na sua presença. Rezo para que a Mãe o acompanhe em seu caminho, especialmente nos momentos difíceis”.

A "Plaza de Armas" na cidade de Lima, no Peru (Vatican News)
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

quarta-feira, 2 de julho de 2025

O olhar de pesquisador italiano sobre a Arte Sacra nas Missões Jesuíticas

Nossa Senhora da Conceição (Vatican News)

Na entrevista ao VN, o pesquisador Luca Ruggieri recorda que a arte é um instrumento necessário para a evangelização, algo que foi desafiador para os jesuítas no contexto dos índios guaranis, onde não existia uma “cultura visiva como no contexto europeu, mas uma cultura visiva diferente”. Com o passar do tempo, os próprios guaranis passaram a imprimir as próprias características nas esculturas sacras, um patrimônio com uma “riqueza polifônica pela sua diversidade na expressão”.

Jackson Erpen - Cidade do Vaticano

Quando se fala de Missões e Reduções Jesuítico-Guaranis, recorda-se o grupo das trinta cidades fundadas pela Companhia de Jesus a partir do século XVII, entre os indígenas guaranis, na chamada Província de Paraguaia, jurisdição localizada no Vice-Reino do Peru e que abrangia regiões onde hoje é o Paraguai, Argentina, Uruguai e partes da Bolívia, Brasil e Chile.

Em 18 de maio último, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul deu início às celebrações oficiais pelos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis, marco histórico que será comemorado em 2026.

Luca Ruggieri fala aos microfones da Rádio Vaticano (Vatican News)

As Missões testemunharam, entre outros, o nascimento da primeira fundição de aço da América, o que levou a região a ser chamada por Montesquieu de “o primeiro Estado industrial da América”. Mas não só. A pecuária, o desenvolvimento do comércio da erva-mate, da carne, do couro, da lã, foram elementos fundamentais que moldaram a cultura gaúcha. E paralelamente ao desenvolvimento econômico, surgiram as escolas, a música, a arte sacra.

E precisamente a “Arte produzida nas Missões Jesuíticas” é o tema do Mestrado em História da Arte na Universidade Roma Tre de Luca Ruggieri (cujo orientador da dissertação é o Prof. Mauro Vincenzo Fontana), que em visita ao Brasil, Argentina e Paraguai, pode ter um contato mais direto com algumas das Reduções, como São Miguel, Santo Inácio, Loreto, Corpus, um patrimônio não só da América do Sul, mas de toda a humanidade, como fez questão de ressaltar na entrevista ao Vatican News.

A história dessa região, não obstante tenha sido enaltecida no passado por escritores, historiadores e filósofos de renome, voltou a despertar interesse com o filme "The Mission", de Roland Joffé. No entanto, "poucas pessoas na Europa conhecem a história da arte, da produção artística nas Reduções Jesuíticas", observa o jovem pesquisador.

Igreja de São Miguel das Missões (Foto: Luca Ruggieri)

Mas, o que levou um jovem italiano da região das Marcas a se interessar pela arte de uma região tão distante da Itália, berço do Renascimento? Quem o introduziu nesse "mundo das Missões, dos jesuítas", durante seu período da Graduação na Universidade de Macerata, de fato, foi a Prof. Sabiana Pavone, importante pesquisadora deste tema. A partir daí, ele passou a focar seus estudos nas Missões Jesuíticas do Paraguai:

Nossa Senhora de Loreto e a evangelização do Novo Mundo

Mas há uma outra razão que o aproximou deste tema: Loreto. No conhecido Santuário mariano, localizado a poucos quilômetros de sua cidade natal, Mogliano, ele colaborou com o Museu Pontifício. E precisamente de suas leituras e pesquisas na biblioteca brotou a compreensão de que "Loreto foi uma academia espiritual dos jesuítas. De lá, por exemplo, partiu o jesuíta Giuseppe Cataldini, responsável pela Redução de Loreto, no Paraguai."

Luca explica, ademais, que Nossa Senhora de Loreto foi a iconografia que os jesuítas utilizaram para evangelizar o mundo. "Eles tinham consciência de que a Virgem de Loreto não havia sido utilizada por outras Ordens religiosas no Novo Mundo", e por isso decidiram "levar a Virgem de Loreto a todos os lugares da América do Sul e Central.

Estátua de São Luiz Gonzaga (Vatican News)

O jovem pesquisador italiano recorda que a arte foi e é um instrumento necessário para a evangelização. Isso, no entanto, "foi mais difícil para os jesuítas, pois chegaram em um contexto, como o dos guaranis, onde não havia uma cultura visiva como no contexto europeu, mas uma cultura visiva diferente, definida por um pesquisador como “cultura visiva antimimética”. E essa combinação desses dois aspectos diferentes - espanhol (europeu) e o aspecto indígena -, acabou por despertar o interesse de Luca na condução de seus estudos.

Para um historiador de arte - observa ele - a coisa mais importante "é estudar a obra de arte, compreendê-la bem, e na sua linguagem visual". Um dos mais importantes historiadores da arte das reduções na Argentina, fala de “evolução diacrônica entre a produção artística missioneira. Evolução da cultura castelhana que caracterizava as peças de arte".

E com seu olhar atento de pesquisador, Ruggeri destaca na entrevista o momento em que os guaranis passaram a imprimir nas estátuas, características suas.

Quando guaranis se tornaram hábeis na construção das obras, "foi o momento onde a peculiaridade deles chegou". Tem muitas estátuas que tem uma peculiaridade particular na realização dos olhos. Uma característica tipicamente da cultura guarani, mas também a qualidade do rosto. E isso facilita para datar as peças, que seriam mais perto do século XVIII, pois neste século já se sabia que muitos guaranis trabalhavam em conhecido atelier.

Para ilustrar, ele cita a estátua de São Lorenço, nos Museus das Missões, onde há a presença da flor do maracujá, "uma flor muito importante na cultura figurativa indígena guarani".

Vista do Parque Arqueológico, em São Miguel das Missões (Vatican News)

A "riqueza polifônica desse patrimônio" e sua valorização

A bibliografia é fundamental em uma pesquisa ou trabalho científico. Nesse sentido, Luca fala da dificuldade em encontrar bibliografia sobre este tema na Europa, o que é natural, carência esta superada pelo material existente e disponibilizado, por exemplo, em Museus e Bibliotecas na América do Sul, incluindo o Pátio do Colégio, em São Paulo, o Museu Júlio de Castilhos em Porto Alegre.

Nessa revisão bibliográfica, o jovem italiano constata a existência de uma falta de comunicação entre a crítica do mundo hispânico (Argentina e Paraguai), que usa uma modalidade mais europeia, e a produção bibliográfica lusófona. "Existe uma impostação muito diferente entre elas em relação ao assunto da arte, o que gera considerações extremamente diferentes".

De qualquer forma, Luca faz questão de destacar que "a riqueza desse patrimônio é uma riqueza polifônica, pela sua diversidade na expressão. E para bem compreender essa riqueza, é preciso estudá-la, principalmente a estátua. É a coisa mais importante, que “não fala”; depois, todas as outras fontes e arquivos, fontes documentais que podem ajudar na leitura das obras. Por isso também um trabalho “polifônico” de pesquisadores pode ajudar na valorização das peças. Um trabalho polifônico que é um trabalho dos historiadores da arte, europeus, mas majoritariamente na América do sul.".

Luca Ruggieri lamenta que o Museu de São Miguel das Missões, que é tão importante, ainda está fechado. "Não é possível! Pois não é só o patrimônio do Brasil, é um Patrimônio da Humanidade São Miguel das Missões, onde estão as peça artísticas e se pode admirar a sua qualidade".

Neste sentido, ele recorda a importância do trabalho de valorização deste patrimônio também no campo político: "As pessoas que trabalham na política precisam compreender que o patrimônio  artístico das Missões não é só um patrimônio a ser admirado, mas é um patrimônio que também pode gerar dinheiro, com o turismo, e por isso tem uma qualidade que não é num breve período, mais num longo prazo".

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF