Arquivo 30Dias nº 07/08 - 2005
Trechos de padre Luigi Giussani sobre o encontro de Jesus
com os dois primeiros discípulos
«André e João são a figura do que devemos fazer»
(L'attrattiva Gesù, Milão, Bur, 1999, p. 25)
Introdução e organização de Lorenzo Cappelletti
Introdução
“Eu errava por pensar que a fé
por meio da qual acreditamos em Deus não era dom de Deus, mas vinha, em nós, de
nós mesmos [...]. Realmente, eu não pensava que a fé fosse precedida pela graça
de Deus [...]. Certamente, pensava que não poderíamos acreditar sem antes
receber o anúncio da verdade, mas, uma vez tendo-nos sido anunciado o
Evangelho, imaginava que o consentimento fosse obra nossa e algo que possuímos
em nós mesmos. Esse meu erro se encontra em muitos dos livros que escrevi antes
de meu episcopado” (Agostinho, De praedestinatione sanctorum 3,
7).
No De praedestinatione
sanctorum, obra dos últimos anos de sua vida, Agostinho confessa esse seu
erro com simplicidade - e esse não é o último dos motivos pelos quais sentimos
Agostinho tão moderno e persuasivo -, um erro presente em livros anteriores a
sua ordenação episcopal, ocorrida trinta anos antes (395 ou 396).
O erro de Agostinho parece dominar - sem ser confessado - o cenário destas últimas décadas do catolicismo mais discursante e vistoso.
Em padre Giussani, ao
contrário, a unidade entre as palavras, o olhar, a atração de graça é sempre e
de novo proposta e descrita diante dos nossos olhos a partir do comentário que
faz do encontro de Jesus com os dois primeiros discípulos, João e André, que
pode ser sintetizado na expressão: “Olhavam-no falar”. Se nos ativermos ao
testemunho dado sobre ele pelo então cardeal Ratzinger, nos funerais do
sacerdote, veremos que isso acontece graças ao que o próprio padre Giussani
viveu em primeira pessoa: “Padre Giussani teve sempre o olhar de sua vida e de
seu coração fito em Cristo. Dessa forma, entendeu que o cristianismo é um
encontro, uma história de amor, um acontecimento”.
Afirmar que
a fé nasce de um maravilhamento como o de João e André - como se poderia
traduzir a palavra suavitas, usada pelo Concílio Ecumênico Vaticano
I, na constituição dogmática sobre a fé (citando, não por acaso, o segundo
Concílio antipelagiano de Orange, que padre Giussani gostava de recordar) - não
significa deixar de ter cuidado com a maneira de apresentar as verdades
cristãs. Significa fazer com que prevaleça a humilde fidelidade à doutrina
(“Todo aquele que se adianta e não permanece na doutrina de Cristo, não possui
a Deus. Aquele que permanece na doutrina, esse possui o Pai e o Filho”, 2Jo 9)
e a oração de cada instante Àquele único que pode tocar e atrair a mente e o
coração do homem.
De qualquer
forma, o recente Compêndio do Catecismo da Igreja Católica também
tem uma pequena frase que, repetindo com simplicidade o fato de que a graça
precede e vem antes, ilumina, como um raio de sol quando ilumina os vitrais de
uma catedral, todas as verdades contidas no Compêndio: “A oração é
sempre dom de Deus que vem ao encontro do homem” (nº 534).
Introdução e organização de
Lorenzo Cappelletti
Foi ser batizado, como
todos os outros
O que aconteceu primeiro?
Primeiro aconteceu Jesus, que nasceu em Belém, como um menino; e os pastores se
reuniram. Depois cresceu em sua casa. E depois, quando já era um pouco mais
velho, foi ser batizado, como todos os outros. E quando Jesus deixou a multidão,
assim que João Batista apontou para ele e disse: “Eis o cordeiro de Deus”, João
e André puseram-se a seguir aquele indivíduo. E estabeleceram um relacionamento
com aquele indivíduo, ficaram lá para ouvi-lo. Eu sempre digo: “Olhavam-no
falar” . 1
Esse Tu enchia o rosto e o
coração deles
E André e João - como narra o
primeiro capítulo de São João -, que seguiam a Cristo quase acanhados, no
momento em que Ele se voltou e disse: “O que buscais?”, não disseram Tu, mas
disseram a Ele: “Mestre, onde moras?”. Era uma maneira de dizer Tu. E quando
voltaram para casa e disseram: “Encontramos o Messias”, era esse Tu que enchia
o rosto e o coração deles.2
Diante de seus olhos
Para André e João, o
cristianismo, ou melhor, o cumprimento da lei, o realizar-se da
promessa antiga, de cuja espera de resposta vivia o povo judeu bom [...],
aquilo que o povo esperava, Aquele que tinha de vir, era um homem ali diante
dos seus olhos: encontraram-no diante dos seus olhos.
[...] Era um homem ali diante
dos seus olhos [...]. Era uma coisa que estava acontecendo.
[...] Não é que André e João
tenham dito: “É um acontecimento que nos aconteceu”. Evidentemente, não era
necessário que explicitassem com uma definição, já numa definição, aquilo
que lhes estava acontecendo: lhes estava acontecendo!3
Olhavam-no falar
Nós nos identificamos
facilmente com aqueles dois lá sentados, que olham para aquele homem que diz
coisas nunca ouvidas, e no entanto tão próximas, tão pertinentes, com reflexos
tão familiares.
Eram as palavras com as quais
a grande promessa bíblica se revelava ao coração de todo judeu, e de geração em
geração passava para dentro de seu sangue; as palavras que aquele homem usava
participavam daquela promessa, mas eles não entendiam, eram simplesmente
agarrados, arrastados, revolvidos por aquela maneira de falar: olhavam-no
falar.4
Correspondia mais
Se fosse um filme, a cena
inicial seria a de João e André olhando para Cristo enquanto este falava em sua
casa.
Um impacto: o impacto com uma realidade que eles sentem corresponder como nada jamais correspondeu [...].
André e João, quanto mais
olhavam para ele, mais entravam naquilo que já era uma realidade em Cristo, ou
seja, o conhecimento da verdade, o conhecimento da justiça, o conhecimento da
letícia e da alegria, “para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria
seja plena”. Correspondia mais.5
Assim nasceu a primeira certeza
sobre Cristo
O que aquele homem lhes havia
dito correspondia ao coração deles, à espera do coração deles, tão
intensamente, tão evidentemente, tão imediatamente, que era como se dissessem:
“Se não acreditarmos nesse homem, não poderemos mais acreditar nem nos nossos olhos”.
Foi assim que nasceu, que surgiu na história do mundo a primeira certeza
pública, para além da de Sua mãe e de Seu pai: a primeira certeza sobre
Cristo. [...]
Imaginem: voltaram para casa e
começaram a dizer a todos os seus irmãos, aos conhecidos e às pessoas que
participavam de sua pequena cooperativa de barcos: “Encontramos o Messias”.6
Começa a memória
João e André começaram a
seguir aquele homem, e aquele homem se voltou, e eles lhe fizeram uma pergunta,
foram à casa dele... eles ouviam - não estavam distraídos -, mas ouviam olhando
para ele.
Isso é a memória. Desde aquele
momento, começou a memória, que, partindo daqueles dois, chegou até nós.7
Imaginem, fomos movidos por
aqueles dois! Fomos movidos por aqueles dois que O olharam falar, que O olhavam
falar com simplicidade, humildade, ingenuidade de coração: aqueles dois moveram
as nossas vidas e as movem agora!8
Uma familiaridade imediata
Mas para aqueles dois, os dois
primeiros, João e André - André, muito provavelmente, era casado, tinha filhos
-, como foi possível que fossem convencidos tão imediatamente e que o
reconhecessem (não há uma outra palavra que possa ser dita diferente de reconhecê-lo)?
Direi que, se este fato
aconteceu, reconhecer aquele homem, quem era aquele homem, não quem era no
fundo e minuciosamente, mas reconhecer que aquele homem era algo de
excepcional, de incomum - era absolutamente incomum -, irredutível a qualquer
análise, reconhecer isso devia ser fácil.9
Aquela era uma casa diferente,
e aquele homem tratava as pessoas de um jeito diferente, pensava de um jeito
diferente - dava para ver nos seus olhos -; quando seus pensamentos se
exprimiam em palavras, ele falava de um jeito diferente: era uma coisa diferente.
E se estabelecia uma
familiaridade imediata com Ele; para dizer a verdade, era Ele quem estabelecia
uma familiaridade imediata com aqueles que encontrava. E, com dignidade e com
ternura, afirmava coisas que interessavam à vida daqueles que O ouviam, das
pessoas que encontrava. Como naquele caso: mudou a vida deles!10
São uma coisa só, de
tanto que estão cheios da mesma coisa
E quando voltaram, à noite, no
fim do dia - muito provavelmente percorrendo todo o caminho de volta em
silêncio, pois nunca haviam falado um com o outro como naquele grande silêncio
no qual um Outro falava, no qual Ele continuava a falar, ecoando dentro deles.11
Mas imaginem aqueles dois que
ficam a ouvi-lo durante algumas horas e que depois têm de ir para casa. Ele se
despede deles e eles voltam calados, calados porque invadidos pela impressão
que tiveram do mistério que sentiram, pressentiram, ouviram. E depois se
separam. Cada um dos dois vai para a sua casa. Não se cumprimentam, não porque
não costumem se cumprimentar, mas se cumprimentam de um outro modo,
cumprimentam-se sem se cumprimentar, porque estão repletos da mesma coisa, são
uma só coisa aqueles dois, de tanto que estão repletos da mesma coisa.12
O que é a fé
A pessoa entende o que é a fé
quando se coloca no lugar dos primeiros: de André e João, que O seguiram e Lhe
perguntaram: “Mestre, onde moras?” (Jo 1,38).
Diante daquele homem, o que
era a fé? Era reconhecer a presença divina. Eles nem ousavam pensar nisso, não
tinham clareza, mas reconheciam naquele homem a presença que libertava, que
salvava.13
João e André tinham fé, porque
tinham certeza de uma Presença experimentável: quando estavam lá, primeiro
capítulo de São João, sentados na sua casa, àquela noite, olhando-O falar, era
uma certeza de uma Presença experimentável de uma coisa excepcional, do divino
numa Presença experimentável. Depois - acrescento - foram para suas casas
dormir: André voltou para sua mulher; João, para sua mãe. Voltaram às suas
casas, comeram nas suas casas, dormiram nas suas casas, levantaram-se, foram
pescar junto aos outros companheiros.
Aquilo que tinham visto na
tarde anterior dominava a sua cabeça: sim ou não? Sim. Eles o viam? Não.14
Era ele, mas era diferente
Ela lhe perguntou: “O que
aconteceu?”. Ele a abraçou. André abraçou sua mulher e beijou seus filhos: era
ele mesmo, mas nunca a havia abraçado daquele jeito! Era como a aurora ou o
crepúsculo matinal de uma humanidade diferente, de uma humanidade nova, de uma
humanidade mais verdadeira. Quase como se dissesse: “Finalmente!”, sem
acreditar nos próprios olhos. Mas era evidente demais para que não acreditasse
em seus olhos!15
Seu marido tinha se tornado
uma outra coisa: não uma coisa pensada, imaginada, mas real, porque nunca fora
abraçada assim por seu marido. Deu-se conta disso: em primeiro lugar porque
jamais fora olhada assim por seu marido, depois porque jamais fora abraçada
assim por seu marido.
E depois, também no dia
seguinte, via como ele tratava os amigos, como falava com as crianças: tinha
acontecido alguma coisa que estava transformando o rosto concreto, carnal,
temporal da vida deles.16
Como se toda a pessoa deles
fosse um pedido
Imaginemos Simão Pedro, Felipe
e João diante de Jesus, andando atrás dele pelas trilhas dos campos, ou na
praça do templo, ou numa casa sentados à mesa para comer. Como é que eles
estão? Estão olhando para ele, ouvindo-o, querendo aprender; mas esses ainda
são termos insuficientes, incompletos: pois é como se toda a pessoa deles fosse
um pedido.17
Basta a embrionária
percepção daquilo que Ele é para fazer você pedir
A sua relação com Cristo não
precisa ser evoluída, capacitada, madura, para que a sua personalidade nasça
dela e a sua personalidade saiba criar uma companhia a partir dela. Basta -
como poderíamos dizer - a surpresa que tiveram João e André, que não entendiam
nada; basta a surpresa, basta uma ponta de devoção, basta o maravilhamento.
Mais precisamente: basta pedi-lo, basta a embrionária percepção daquilo que Ele
é para fazer você pedir, para fazer com que você o peça.18
Trechos de padre Luigi Giussan
sobre o encontro de Jesus com os dois primeiros discípulos.
____________________
1 L’attrattiva
Gesù, Milão, Bur, 1999, p. 27.
2 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae
Communionis - CL, nº 5, maio de 1991, p. 25.
3 “O
acontecimento de Cristo e a sua permanência na história”, tradução de Durval
Cordas, in: Litterae Communionis, nº 41, setembro-outubro de 1994,
p. 19.
4 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae
Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 24.
5 L’attrattiva
Gesù, op. cit., pp. 44-45.
6 “La
comunione come strada”, in: Litterae Communionis - Tracce, nº 7,
julho-agosto de 1994, p. III.
7 Affezione
e dimora, Milão, Bur, 2001, p. 215.
8 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae
Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 24.
9
“Reconhecer Cristo”, tradução de Durval Cordas, in: Litterae
Communionis, nº 43, janeiro-fevereiro de 1995, p. 20.
10 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae
Communionis - Tracce, nº 6, junho de 1995, p. 13.
11 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae
Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 25.
12
“Reconhecer Cristo”, op. cit., p. 22.
13 “Na fé,
homem e povo”, tradução de Durval Cordas, in: Litterae Communionis,
nº 66, novembro-dezembro de 1998, p. 24.
14 É
possível viver assim?, tradução de Neófita Oliveira e Francesco Tremolada,
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, pp. 256-257.
15 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae
Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 25.
16 “O
acontecimento de Cristo e a sua permanência na história”, op. cit., p. 20.
17 Exercícios
da Fraternidade de Comunhão e Libertação, Rímini, 1988, p. 25.
18 L’attrattiva
Gesù, op. cit., p. 23.
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