Translate

terça-feira, 22 de julho de 2025

«André e João são a figura do que devemos fazer»


Apóstolos João e André (Wikipedia)

Arquivo 30Dias nº 07/08 - 2005

Trechos de padre Luigi Giussani sobre o encontro de Jesus com os dois primeiros discípulos

«André e João são a figura do que devemos fazer»

(L'attrattiva Gesù, Milão, Bur, 1999, p. 25)

Introdução e organização de Lorenzo Cappelletti

Introdução

“Eu errava por pensar que a fé por meio da qual acreditamos em Deus não era dom de Deus, mas vinha, em nós, de nós mesmos [...]. Realmente, eu não pensava que a fé fosse precedida pela graça de Deus [...]. Certamente, pensava que não poderíamos acreditar sem antes receber o anúncio da verdade, mas, uma vez tendo-nos sido anunciado o Evangelho, imaginava que o consentimento fosse obra nossa e algo que possuímos em nós mesmos. Esse meu erro se encontra em muitos dos livros que escrevi antes de meu episcopado” (Agostinho, De praedestinatione sanctorum 3, 7).

No De praedestinatione sanctorum, obra dos últimos anos de sua vida, Agostinho confessa esse seu erro com simplicidade - e esse não é o último dos motivos pelos quais sentimos Agostinho tão moderno e persuasivo -, um erro presente em livros anteriores a sua ordenação episcopal, ocorrida trinta anos antes (395 ou 396).

O erro de Agostinho parece dominar - sem ser confessado - o cenário destas últimas décadas do catolicismo mais discursante e vistoso.

Em padre Giussani, ao contrário, a unidade entre as palavras, o olhar, a atração de graça é sempre e de novo proposta e descrita diante dos nossos olhos a partir do comentário que faz do encontro de Jesus com os dois primeiros discípulos, João e André, que pode ser sintetizado na expressão: “Olhavam-no falar”. Se nos ativermos ao testemunho dado sobre ele pelo então cardeal Ratzinger, nos funerais do sacerdote, veremos que isso acontece graças ao que o próprio padre Giussani viveu em primeira pessoa: “Padre Giussani teve sempre o olhar de sua vida e de seu coração fito em Cristo. Dessa forma, entendeu que o cristianismo é um encontro, uma história de amor, um acontecimento”.

Afirmar que a fé nasce de um maravilhamento como o de João e André - como se poderia traduzir a palavra suavitas, usada pelo Concílio Ecumênico Vaticano I, na constituição dogmática sobre a fé (citando, não por acaso, o segundo Concílio antipelagiano de Orange, que padre Giussani gostava de recordar) - não significa deixar de ter cuidado com a maneira de apresentar as verdades cristãs. Significa fazer com que prevaleça a humilde fidelidade à doutrina (“Todo aquele que se adianta e não permanece na doutrina de Cristo, não possui a Deus. Aquele que permanece na doutrina, esse possui o Pai e o Filho”, 2Jo 9) e a oração de cada instante Àquele único que pode tocar e atrair a mente e o coração do homem.

De qualquer forma, o recente Compêndio do Catecismo da Igreja Católica também tem uma pequena frase que, repetindo com simplicidade o fato de que a graça precede e vem antes, ilumina, como um raio de sol quando ilumina os vitrais de uma catedral, todas as verdades contidas no Compêndio: “A oração é sempre dom de Deus que vem ao encontro do homem” (nº 534).

Introdução e organização de Lorenzo Cappelletti

Foi ser batizado, como todos os outros

O que aconteceu primeiro? Primeiro aconteceu Jesus, que nasceu em Belém, como um menino; e os pastores se reuniram. Depois cresceu em sua casa. E depois, quando já era um pouco mais velho, foi ser batizado, como todos os outros. E quando Jesus deixou a multidão, assim que João Batista apontou para ele e disse: “Eis o cordeiro de Deus”, João e André puseram-se a seguir aquele indivíduo. E estabeleceram um relacionamento com aquele indivíduo, ficaram lá para ouvi-lo. Eu sempre digo: “Olhavam-no falar” . 1

Esse Tu enchia o rosto e o coração deles

E André e João - como narra o primeiro capítulo de São João -, que seguiam a Cristo quase acanhados, no momento em que Ele se voltou e disse: “O que buscais?”, não disseram Tu, mas disseram a Ele: “Mestre, onde moras?”. Era uma maneira de dizer Tu. E quando voltaram para casa e disseram: “Encontramos o Messias”, era esse Tu que enchia o rosto e o coração deles.2

Diante de seus olhos

Para André e João, o cristianismo, ou melhor, o cumprimento da lei, o realizar-se da promessa antiga, de cuja espera de resposta vivia o povo judeu bom [...], aquilo que o povo esperava, Aquele que tinha de vir, era um homem ali diante dos seus olhos: encontraram-no diante dos seus olhos.

[...] Era um homem ali diante dos seus olhos [...]. Era uma coisa que estava acontecendo.
[...] Não é que André e João tenham dito: “É um acontecimento que nos aconteceu”. Evidentemente, não era necessário que explicitassem com uma definição, já numa definição, aquilo que lhes estava acontecendo: lhes estava acontecendo!3

Olhavam-no falar

Nós nos identificamos facilmente com aqueles dois lá sentados, que olham para aquele homem que diz coisas nunca ouvidas, e no entanto tão próximas, tão pertinentes, com reflexos tão familiares.

Eram as palavras com as quais a grande promessa bíblica se revelava ao coração de todo judeu, e de geração em geração passava para dentro de seu sangue; as palavras que aquele homem usava participavam daquela promessa, mas eles não entendiam, eram simplesmente agarrados, arrastados, revolvidos por aquela maneira de falar: olhavam-no falar.4

Correspondia mais

Se fosse um filme, a cena inicial seria a de João e André olhando para Cristo enquanto este falava em sua casa.

Um impacto: o impacto com uma realidade que eles sentem corresponder como nada jamais correspondeu [...].

André e João, quanto mais olhavam para ele, mais entravam naquilo que já era uma realidade em Cristo, ou seja, o conhecimento da verdade, o conhecimento da justiça, o conhecimento da letícia e da alegria, “para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena”. Correspondia mais.5

Assim nasceu a primeira certeza sobre Cristo

O que aquele homem lhes havia dito correspondia ao coração deles, à espera do coração deles, tão intensamente, tão evidentemente, tão imediatamente, que era como se dissessem: “Se não acreditarmos nesse homem, não poderemos mais acreditar nem nos nossos olhos”. Foi assim que nasceu, que surgiu na história do mundo a primeira certeza pública, para além da de Sua mãe e de Seu pai: a primeira certeza sobre Cristo. [...]

Imaginem: voltaram para casa e começaram a dizer a todos os seus irmãos, aos conhecidos e às pessoas que participavam de sua pequena cooperativa de barcos: “Encontramos o Messias”.6

Começa a memória

João e André começaram a seguir aquele homem, e aquele homem se voltou, e eles lhe fizeram uma pergunta, foram à casa dele... eles ouviam - não estavam distraídos -, mas ouviam olhando para ele.

Isso é a memória. Desde aquele momento, começou a memória, que, partindo daqueles dois, chegou até nós.7

Imaginem, fomos movidos por aqueles dois! Fomos movidos por aqueles dois que O olharam falar, que O olhavam falar com simplicidade, humildade, ingenuidade de coração: aqueles dois moveram as nossas vidas e as movem agora!8

Uma familiaridade imediata

Mas para aqueles dois, os dois primeiros, João e André - André, muito provavelmente, era casado, tinha filhos -, como foi possível que fossem convencidos tão imediatamente e que o reconhecessem (não há uma outra palavra que possa ser dita diferente de reconhecê-lo)?
Direi que, se este fato aconteceu, reconhecer aquele homem, quem era aquele homem, não quem era no fundo e minuciosamente, mas reconhecer que aquele homem era algo de excepcional, de incomum - era absolutamente incomum -, irredutível a qualquer análise, reconhecer isso devia ser fácil.9

Aquela era uma casa diferente, e aquele homem tratava as pessoas de um jeito diferente, pensava de um jeito diferente - dava para ver nos seus olhos -; quando seus pensamentos se exprimiam em palavras, ele falava de um jeito diferente: era uma coisa diferente.
E se estabelecia uma familiaridade imediata com Ele; para dizer a verdade, era Ele quem estabelecia uma familiaridade imediata com aqueles que encontrava. E, com dignidade e com ternura, afirmava coisas que interessavam à vida daqueles que O ouviam, das pessoas que encontrava. Como naquele caso: mudou a vida deles!10

São uma coisa só, de tanto que estão cheios da mesma coisa

E quando voltaram, à noite, no fim do dia - muito provavelmente percorrendo todo o caminho de volta em silêncio, pois nunca haviam falado um com o outro como naquele grande silêncio no qual um Outro falava, no qual Ele continuava a falar, ecoando dentro deles.11

Mas imaginem aqueles dois que ficam a ouvi-lo durante algumas horas e que depois têm de ir para casa. Ele se despede deles e eles voltam calados, calados porque invadidos pela impressão que tiveram do mistério que sentiram, pressentiram, ouviram. E depois se separam. Cada um dos dois vai para a sua casa. Não se cumprimentam, não porque não costumem se cumprimentar, mas se cumprimentam de um outro modo, cumprimentam-se sem se cumprimentar, porque estão repletos da mesma coisa, são uma só coisa aqueles dois, de tanto que estão repletos da mesma coisa.12

O que é a fé

A pessoa entende o que é a fé quando se coloca no lugar dos primeiros: de André e João, que O seguiram e Lhe perguntaram: “Mestre, onde moras?” (Jo 1,38).
Diante daquele homem, o que era a fé? Era reconhecer a presença divina. Eles nem ousavam pensar nisso, não tinham clareza, mas reconheciam naquele homem a presença que libertava, que salvava.13

João e André tinham fé, porque tinham certeza de uma Presença experimentável: quando estavam lá, primeiro capítulo de São João, sentados na sua casa, àquela noite, olhando-O falar, era uma certeza de uma Presença experimentável de uma coisa excepcional, do divino numa Presença experimentável. Depois - acrescento - foram para suas casas dormir: André voltou para sua mulher; João, para sua mãe. Voltaram às suas casas, comeram nas suas casas, dormiram nas suas casas, levantaram-se, foram pescar junto aos outros companheiros.
Aquilo que tinham visto na tarde anterior dominava a sua cabeça: sim ou não? Sim. Eles o viam? Não.14

Era ele, mas era diferente

Ela lhe perguntou: “O que aconteceu?”. Ele a abraçou. André abraçou sua mulher e beijou seus filhos: era ele mesmo, mas nunca a havia abraçado daquele jeito! Era como a aurora ou o crepúsculo matinal de uma humanidade diferente, de uma humanidade nova, de uma humanidade mais verdadeira. Quase como se dissesse: “Finalmente!”, sem acreditar nos próprios olhos. Mas era evidente demais para que não acreditasse em seus olhos!15

Seu marido tinha se tornado uma outra coisa: não uma coisa pensada, imaginada, mas real, porque nunca fora abraçada assim por seu marido. Deu-se conta disso: em primeiro lugar porque jamais fora olhada assim por seu marido, depois porque jamais fora abraçada assim por seu marido.

E depois, também no dia seguinte, via como ele tratava os amigos, como falava com as crianças: tinha acontecido alguma coisa que estava transformando o rosto concreto, carnal, temporal da vida deles.16

Como se toda a pessoa deles fosse um pedido

Imaginemos Simão Pedro, Felipe e João diante de Jesus, andando atrás dele pelas trilhas dos campos, ou na praça do templo, ou numa casa sentados à mesa para comer. Como é que eles estão? Estão olhando para ele, ouvindo-o, querendo aprender; mas esses ainda são termos insuficientes, incompletos: pois é como se toda a pessoa deles fosse um pedido.17

Basta a embrionária percepção daquilo que Ele é para fazer você pedir

A sua relação com Cristo não precisa ser evoluída, capacitada, madura, para que a sua personalidade nasça dela e a sua personalidade saiba criar uma companhia a partir dela. Basta - como poderíamos dizer - a surpresa que tiveram João e André, que não entendiam nada; basta a surpresa, basta uma ponta de devoção, basta o maravilhamento. Mais precisamente: basta pedi-lo, basta a embrionária percepção daquilo que Ele é para fazer você pedir, para fazer com que você o peça.18

Trechos de padre Luigi Giussan sobre o encontro de Jesus com os dois primeiros discípulos.

____________________

L’attrattiva Gesù, Milão, Bur, 1999, p. 27.

Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae Communionis - CL, nº 5, maio de 1991, p. 25.

3 “O acontecimento de Cristo e a sua permanência na história”, tradução de Durval Cordas, in: Litterae Communionis, nº 41, setembro-outubro de 1994, p. 19.

Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 24.

L’attrattiva Gesù, op. cit., pp. 44-45.

6 “La comunione come strada”, in: Litterae Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. III.

Affezione e dimora, Milão, Bur, 2001, p. 215.

Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 24.

9 “Reconhecer Cristo”, tradução de Durval Cordas, in: Litterae Communionis, nº 43, janeiro-fevereiro de 1995, p. 20.

10 Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae Communionis - Tracce, nº 6, junho de 1995, p. 13.

11 Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 25.

12 “Reconhecer Cristo”, op. cit., p. 22.

13 “Na fé, homem e povo”, tradução de Durval Cordas, in: Litterae Communionis, nº 66, novembro-dezembro de 1998, p. 24.

14 É possível viver assim?, tradução de Neófita Oliveira e Francesco Tremolada, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, pp. 256-257.

15 Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, suplemento da revista Litterae Communionis - Tracce, nº 7, julho-agosto de 1994, p. 25.

16 “O acontecimento de Cristo e a sua permanência na história”, op. cit., p. 20.

17 Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, Rímini, 1988, p. 25.

18 L’attrattiva Gesù, op. cit., p. 23.

Fonte: https://www.30giorni.it/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF