O poder das chaves
Por Pe. Assis Pereira Soares
Atualizado em 22/08/20
Quem tem as chaves de uma casa tem o poder sobre ela. Com as
chaves se fecha e se abre, entra, sai, faz e desfaz. Em um oráculo do profeta
Isaías (cf. Is 22,19-23) usando o simbolismo das chaves quer mostrar a atuação
de Deus. Sobna, administrador do palácio do rei Ezequias (716-687 a.C), homem
rico e ambicioso, se aproveita em benefício próprio de sua situação
privilegiada como encarregado do palácio real e estava construindo um mausoléu
que escandaliza o profeta, frente à situação que vive o povo. Isaías diz que
Deus vai intervir restituindo a ordem, destituindo este administrador: “Eu
farei levar aos ombros a chave da casa de Davi; ele abrirá, e ninguém poderá
fechar; ele fechará e ninguém poderá abrir”.
O oráculo diz tudo: um pai para o povo e em suas mãos
estarão as chaves do reino de Davi; Eliacim era o homem de confiança que
necessitava o rei Ezequias naquele momento. Será um administrador justo para um
povo destroçado, onde os pobres são mais pobres e os ricos mais ricos. Essa é a
situação que deve mudar. Quem tem as chaves, deve saber que é o administrador
de Deus. E que não tem direito a impedir liberdades nem permitir misérias.
A chave é sinal, mais que de poder, de uma responsabilidade
muito maior que tem que cumprir com autêntica fidelidade. Os Santos Padres
viram no texto profético um sentido messiânico enlaçando-o com o Evangelho (cf.
Mt 16,13-20), onde Jesus concede a Pedro uma grande responsabilidade: “Eu te
darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado
nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus”(v. 19).
Ter as chaves não é um privilégio mas sim uma
responsabilidade de serviço que Pedro terá que ir aprendendo e que o levará a
entregar a vida como seu Mestre e Senhor, o “Messias, o Filho do Deus vivo”. O
poder refletido nas chaves, conferido por Jesus à sua Igreja na pessoa de
Pedro, “pedra”, é o de abrir, “dar acesso”, ao caminho e ao projeto do Reino de
Deus, assim como “fechá-lo” a todo aquele que se comporta mal ou luta
ousadamente contra este projeto de vida nova que Deus nos oferece.
Conta-nos o evangelho de hoje que "pelos lados de
Cesaréia de Filipe", ostentação do poder romano, região pagã do antigo
território da Palestina; a localização da cena não é um dado insignificante
para ver o alcance do que se nos narra o texto. Jesus perguntou aos seus
discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13) para chegar à
uma outra que a Ele interessa mais: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15)
O povo tinha uma opinião formada sobre Jesus: Ele é João
Batista ressuscitado, Elias, que precede à chegada do Messias, ou um profeta.
Estas opiniões apontam para a singularidade da pessoa de Jesus, é alguém
especial, mas e para os discípulos? Pedro se adianta e responde que Jesus é o
Messias, o Filho de Deus. Trata-se de uma resposta “inspirada”. Pedro não sabe
na realidade seu significado mais profundo. Entre a concepção que os discípulos
e o povo em geral têm do messianismo de Jesus e a verdade de Jesus-Messias, há
uma distância muito grande. O estilo de Messias que Jesus encarna choca-se
fortemente com as expectativas dos sumos sacerdotes e mestres de Israel, que
esperavam um messianismo glorioso, de poder político. Jesus, no entanto, é um
Messias pobre e servidor, sem linhagem sacerdotal, isso para a tradição judaica
era algo incompreensível.
A partir da resposta de Pedro Jesus vai confirmá-lo em uma
missão que para levá-la adiante, ele necessitará saber o verdadeiro significado
da mesma e não o que ele imagina. Seguindo a Jesus, dia a dia, irá compreender
a responsabilidade de sua missão de ser “pedra” da Igreja de Jesus. Entendendo
pouco a pouco o messianismo de Jesus estará preparado para desempenhar seu
serviço e sua própria entrega.
Pedro não estará isento de erros e quedas: pelo
contrário, como veremos depois, de rocha sólida ele se tornará “pedra de
tropeço” e por causa dos seus sentimentos mundanos será até chamado por Jesus
de “satanás” (cf. Mt 16,23). Mas isso não deve nos escandalizar, nem nos
induzir a diminuir a autoridade de Pedro. Pelo contrário, devemos nos encantar
com a extraordinária condescendência com que Jesus confiou a ele,
homem frágil, o ministério decisivo para a comunhão e a unidade da Igreja; e,
ao mesmo tempo, recordar que, na comunidade cristã, a autoridade só pode ser
exercida conformando-se ao sentimento de Cristo, a única verdadeira Rocha
sobre a qual se funda a Igreja (cf. 1Cor 3,11; 1Pd 2, 4-8)!
Diante da pergunta de Jesus o evangelho realça a resposta de
Pedro e a missão que Jesus lhe confere. Assim o Apóstolo é instigado a entrar
no caminho do poder-serviço, amor-serviço do Mestre; e isso não pode
ser confundido com “transferência de poder”. Pior ainda é quando confundimos
o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave
tem o poder.
Todo “poder” corrompe, é o que se diz, ou ainda, quer
conhecer alguém dê-lhe poder! Nenhum exercício do poder é evangélico;
muito menos o “poder religioso”. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus
que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro, ele não “toma
posse”; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum
ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de
pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos
vós sois irmãos” (cf. Mt 23, 8-12). A única autoridade que Jesus admite é
o serviço.
O Messias despojou-se, despiu-se de todo poder, não
exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a
libertação do ser humano, seja poder político, religioso, ou qualquer outra
expressão de poder. Jesus tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e
não como os escribas” (Mt 7,29). Sua autoridade é caminho para o
serviço e a promoção da vida. Por isso a autoridade de Jesus não tem
nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se
impõe, às vezes autoritariamente pela força.
Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no
outro; Ele veio para servir. Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em
si mesmo, no seu ego autoritário; por isso é que toda expressão de poder é
violenta, exclui, impõe-se ao outro, decide por ele... O poder alimenta
dependência e submissão. Precisamos repensar nossas relações de poder na Igreja
e na comunidade cristã.
Também hoje, Jesus dirige a cada um de nós a mesma pergunta
feita aos seus discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Ele não nos
pergunta para saber nossa resposta teológica sobre a identidade d’Ele, mas para
que revisemos nossa relação com Ele. Somos seus seguidores, da pessoa de Jesus
ou de uma religião, doutrina, normas, leis? Conhecemos cada vez melhor a Jesus,
ou o fechamos em nossos velhos esquemas doutrinários? Somos comunidades vivas,
formadas por servidores que colocam Jesus no centro de nossas vidas e de nossas
atividades, ou vivemos estancados na rotina e na mediocridade?
Padre Assis Pereira Soares Pároco da Paróquia do Sagrado
Coração de Jesus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário