Foto/Crédito: Opus Dei
Para iluminar, ter o fogo aceso: Matrimônio e celibato
apostólico (2)
Viver como Cristo, tanto no matrimônio como no celibato,
leva a acolher um estilo de vida novo que o Espírito Santo nos oferece: um amor
fecundo, um coração limpo e uma opção pelas riquezas de Deus e pelo cuidado dos
mais necessitados, no estilo do Evangelho.
30/06/2025
Uma limpeza necessária do coração
Jesus, durante os delicados momentos da Última Ceia, diz aos
apóstolos: “Vós estais limpos”; embora acrescente a seguir: mas “nem todos”,
referindo-se a Judas (cfr Jo 13, 10). Há aqui outra pista sobre esta nova vida
à qual Ele convida os apóstolos: um estilo de vida “limpo”. Quer dizer,
coerente e em sintonia com Ele, e que encontra no coração de Jesus a melhor
maneira de amar os outros. E esta chamada é para todos, em qualquer estado em
que a pessoa esteja. São Josemaria compreendeu-o bem, e por isso escreveu:
“Prometo-vos um livro – se Deus me ajudar – que poderá ter este título:
‘Celibato, Matrimônio e Pureza’”[14].
A limpeza de coração é fonte de fecundidade para uns e outros. Embora o
fundador do Opus Dei não tenha chegado a escrever esse livro, desejava
dizer que todos podem ser igualmente abençoados com a fecundidade quando
encontram a fonte de sua vida no amor de Deus e no amor aos outros, nesse “novo
mandamento”. Aos casados dizia: “Vejo o leito conjugal como um altar”[15].
E aos celibatários: “Ânsia de filhos? ... Filhos, muitos filhos, e um rasto
indelével de luz[16]”.
Talvez possamos compreender melhor essa “limpeza” da qual
fala o Senhor ao olhar com um pouco mais de perspectiva a história de Judas. Os
grandes planos e ambições que ele albergava estavam misturados com um
mundanismo ao qual não quis renunciar. No final, sem sentir-se abençoado nem
sequer com as trinta moedas de prata que ele mesmo negociou, acabou detestando
tudo o que possuía: esse dinheiro, ser contado entre os apóstolos, e até sua
própria vida. Tudo o que se afasta dessa limpeza de coração termina por
revelar-se como um vil engano que nos defrauda, que nos distancia de nossa
verdadeira felicidade. Neste sentido, as tentações de Jesus no deserto são bem
eloquentes: mostram como o diabo, prometendo um pouco de pão, de glória e de
honra, na verdade está interessado em que Jesus se desvie e deixe de realizar
os planos divinos. O demônio é capaz de seduzir uma pessoa com alguma coisa boa
desde que a desvie da missão que dá sentido à sua própria vida. A tentação não
está tanto no “apropriar-se” de alguns bens, pequenos ou grandes, mas em que
esses bens nos segurem e nos impeçam de dedicar as melhores energias ao serviço
de Deus e dos outros.
Essa “limpeza de coração”, embora se forje no fundo da alma,
manifesta-se também exteriormente, muitas vezes em pequenos gestos. Na vida
matrimonial, pode ser vital uma maneira detalhista de relacionar-se, lembrar de
aniversários, surpreendendo o outro adivinhando seus gostos etc. Do casal
Alvira[17],
por exemplo, aprendemos como “ao comprar a própria roupa, Paquita escolhia
quase sempre as cores que agradavam a seu marido”. E, por sua vez, Tomás,
“quando iam ao cinema, planejava para ir ver – muito feliz - os filmes... que
ele sabia que agradavam mais a ela”[18].
A pessoa celibatária também comunica, com palavras e atitudes, que é chamada a
dar vida sobrenatural e que o amor de sua vida tem um nome. Aprende a ser
compreensiva com todos, sensível às necessidades dos outros, aprende ainda a
deixar claro, sem equívocos, o compromisso de sua vida e de sua intimidade. “O
celibato apostólico – afirma o Prelado do Opus Dei – pelo fato de
comportar um compromisso de coração indiviso para Deus, deve ser visível num
teor de vida entregue, análogo ao de uma pessoa casada, que não se comporta
como se não tivesse nenhum compromisso”[19].
Cristo é a verdadeira riqueza
Essa “limpeza” da qual Jesus fala na Última Ceia oferece-nos
ainda outro ensinamento. Sabemos que o fato de que Judas não estivesse limpo
deve-se, pelo menos em parte, a que ele tenha deixado crescer no seu interior
um afã desordenado pelas riquezas (cfr Jo 12, 6). Não se sabe de que quantidade
de dinheiro o grupo dos doze dispunha. Não seria muito, mas tinham o suficiente
para valer-se por si mesmos e para atender os mais necessitados. Quando Jesus
disse a Judas “o que tens que fazer, faze-o logo”, os outros pensaram que, como
ele era quem guardava o dinheiro, Jesus lhe estava pedindo que comprasse o
necessário para a festa ou que desse alguma coisa aos pobres (cfr Jo 13,
27-29).
Essa “limpeza” à qual o Senhor convida seus apóstolos inclui
também a ordem em nossas relações com as coisas materiais; recorda
eloquentemente como é decisivo confiar em Deus e, portanto, ter a convicção de
que a finalidade dos bens materiais está em impulsionar nossa missão
espiritual. Quando Jesus envia setenta e dois discípulos para anunciar o Reino,
e em muitos outros momentos, insiste em que não levem coisas supérfluas, não
atesourem sem sentido e não se preocupem de modo desordenado pelos bens da terra.
Porque é fácil que nosso coração se afeiçoe, se apegue a essas seguranças e que
deixe de brilhar nele a tênue luz do Espírito Santo para dar lugar ao falso
resplendor da avareza. Por isso não é estranho ver, nos inícios da Igreja, os
apóstolos distribuindo bens aos mais necessitados com magnanimidade (cfr At
4,34; 24, 17; 1Cor 16, 1-4; Gal 2,10; e outros) e sempre, possuindo ou não
riquezas, mostrando qual era a fonte essencial de sua missão: “Não tenho ouro
nem prata – disse São Pedro a um paralítico – mas o que tenho te dou: Em nome
de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda!”(At 3,6).
O cristão aprende a amar “na prosperidade e na adversidade,
na saúde e na doença”: ou chegando ao fim do mês fazendo malabarismos com as
contas, ou procurando com criatividade como pôr os bens a serviço dos outros. O
casal Alvira conta que conseguiu um verdadeiro “milagre econômico”[20] ao
permitir a seus filhos terminarem os estudos. Toni Zweifel[21],
numerário suíço do Opus Dei, por seu lado também é recordado como alguém
que “levou uma vida generosa e sóbria”[22].
Isso, porém, era o fruto maduro de um caminho que ele começou ainda quando era
um jovem engenheiro. Conta-se que antes de descobrir sua vocação como numerário
possuía um luxuoso carro esportivo, presente de seu pai como prêmio a seus
êxitos de estudante de engenharia[23].
Quando se decidiu pelo celibato apostólico, “deu logo a entender a seu pai que
precisava de um modelo de carro mais adequado a suas condições de vida, e
conseguiu que ele o trocasse por outro mais útil para a residência: um Saab de
sete lugares”[24] que
foi essencial para a vida de todos. Em definitivo, aprendeu a utilizar os bens
de modo que contribuíssem para reforçar sua missão de apóstolo.
Se é preciso preferir, prefere os mais fracos
Existe uma característica peculiar do estilo de vida de um
apóstolo, consequência do que ficou dito. Saber-se apóstolo, aprender a amar
sempre e a todos como Cristo, viver com um coração limpo e ancorado nos bens de
Deus, permite que se sinta predileção – como Cristo – pelos mais fracos e
necessitados. Jesus, com efeito, cura os enfermos, louva os simples de coração,
preocupa-se pelas crianças, compadece-se dos pecadores. Poderíamos dizer que,
se é preciso preferir, Jesus prefere os mais fracos e necessitados, os que se
sentem perdidos, em desvantagem, desprotegidos. Quando os discípulos de João
Batista querem saber se ele é o Messias, manda-lhes dizer: “Anunciai a todos o
que estais vendo e ouvindo: os cegos veem, os paralíticos andam, os leprosos
ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia o
Evangelho. E bem-aventurado quem não se escandalizar de mim” (Mt 11, 4-5)
Por que Jesus nos adverte sobre a possibilidade de
escandalizar-nos dele? Talvez porque costumamos ter outras prioridades. O
coração humano já foi descrito como uma “máquina de preferir e desdenhar”[25],
e em boa medida é verdade, pois tendemos a querer o que nos agrada e a rejeitar
o que nos incomoda. Talvez seja espontâneo aproximar-nos daqueles que nos
beneficiam e afastar-nos dos que nos incomodam; queremos os primeiros lugares e
estamos dispostos a atropelar os outros para conseguir algum bem. Os discípulos
do Senhor, pelo contrário, são chamados a ser aqueles que, tendo purificado o
coração, os afetos e os sentidos, priorizam as pessoas e os âmbitos que mais
têm sede da vida de Cristo; deixam-se impressionar pelo que
representa um tesouro para o Senhor.
Pedro Ballester[26],
por exemplo, percebeu “que havia um menino de oito anos na vizinhança que não
tinha com quem brincar. Embora fosse vários anos mais velho, Pedro convidou-lhe
para brincar em sua casa. Desde então, aquela criança batia à porta dos
Ballester com muita frequência”[27].
Também nós podemos perceber, entre os que estão perto de nós, os mais pobres de
amor de Deus, quer dizer, os tristes, cansados, inoportunos ou descartados, por
idade ou doença. “Criança. – Doente. – Ao escrever estas palavras – pergunta
São Josemaria – não sentis a tentação de escrevê-las com maiúsculas? É que,
para uma alma enamorada, as crianças e os doentes são Ele”[28].
Na Obra, São Josemaria também quis que se cuidasse de modo
especial os mais necessitados. Ensinou, por isso, a formar a juventude
atendendo aos pobres, dando catequese às crianças, impulsionando iniciativas
sociais em ambientes muito diversos. E com sensibilidade paterna pediu a todos
os membros do Opus Dei que rezassem todo dia a Nossa Senhora a
oração Lembrai-vos de São Bernardo pedindo pela pessoa da Obra que
mais necessitasse de oração. Isidoro Zorzano, um dos primeiros membros da Obra,
mostra como essa realidade já era vivida durante a guerra civil espanhola. Ele,
que tinha liberdade de movimentos por sua nacionalidade argentina, podia
visitar os membros do Opus Dei que estavam escondidos em Madri. Entre
todos, não ocultava que tinha um que mais gostava de visitar: Vicente Rodríguez
Casado. Isidoro dizia com simplicidade: “Eu vou vê-lo com frequência pois é o
que está mais sozinho”[29].
***
“O que ilumina deve aceitar aquilo que queima”[30],
diz um poeta contemporâneo. Com efeito, o fogo interior da vocação cristã é
aquilo que precisamos conservar e alimentar para ser, como dizia São Paulo aos
de Corinto, “uma carta de Cristo” que foi “escrita não com tinta, mas com o
espírito de Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas que são corações
de carne” (2 Cor 3, 3). Esse fogo, tanto em solteiros como em casados, e
naqueles que receberam o dom do celibato, acende-se no amor de Cristo,
propaga-se em outros fogos, purifica o coração e procura dar calor a quem mais
necessita.
[14] São
Josemaria, Caminho, n. 120.
[15] São
Josemaria, Anotações de uma reunião familiar (1967), em José Luis Illanes
(coord.), Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer, Monte
Carmelo, Burgos 2013, 490.
[16] São
Josemaria, Caminho, n. 28
[17] O
casal formado por Tomás Alvira (1906-1992) e Paquita Domínguez (1912-1994) foi
um exemplo de vida cristã no matrimônio e na família. Membros da Obra, viveram
sua fé com alegria, simplicidade e espírito de serviço, procurando transmitir a
fé a seus filhos e a quem os rodeavam. Seu processo de beatificação está em
curso.
[18] Hilario
Mendo. El secreto de los Alvira. Un ejemplo de amor matrimonial, Palabra,
Madri 2023, 29.
[19] Mons.
Fernando Ocáriz, Carta pastoral de 28 de outubro de 2020, n. 22.
[20] Hilario
Mendo. El secreto de los Alvira. Un ejemplo de amor matrimonial, Palabra,
Madri 2023,116.
[21] Toni
Zweifel (1938-1989) era engenheiro suíço, conhecido por seu trabalho na
Fundação Limmat, Dedicada a promover projetos de desenvolvimento e educação em
todo mundo. Destacou-se por sua profunda vida de fé, espírito de serviço e
confiança em Deus, inclusive durante sua doença. Seu processo de beatificação
está em curso.
[22] Agustín
López Kindler, Toni Zweifel. Huellas de una historia de
amor, Rialp, Madri 2016, 140.
[23] Cfr. Ibidem 33
[24] Ibidem,
51.
[25] José
Ortega y Gasset, La elección en amor [Revelación de la cuenca, latente]
em Estudios sobre el amor, Revista de Occidente, 8ª edição, Madri
1952, 92-99.
[26] Pedro
Ballester (1994-2018) era um jovem britânico, conhecido por sua fé profunda e
alegria em meio à doença. Era numerário do Opus Dei. Diagnosticado com
câncer aos 17 anos, enfrentou seu sofrimento com fortaleza e confiança em Deus,
dando o exemplo àqueles que o conheceram. Seu processo de beatificação está em
curso.
[27] Jorge
Boronat, Pedro Ballester. ¡Nunca he sido más feliz!, Cobel, Murcia 2022,
19.
[28] São
Josemaria, Caminho, n. 419
[29] José
Miguel Pero-Sanz, Isidoro Zorzano, Palabra, Madri 1996, 203.
[30] Anton
Wildgans, em Wenceslao Vial, Psicología y celibato, em Juan Luis
Caballero (ed), El celibato cristiano, Palabra, Madri 2019, 183.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/para-iluminar-ter-o-fogo-aceso-matrimonio-e-celibato-apostolico-2/