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segunda-feira, 28 de julho de 2025

HISTÓRIA DA IGREJA: Francisco de Assis um homem de paz formado pela liturgia (Parte 2/2)

Francisco dirige-se à Porciúncula | 30Giorni

Arquivo 30Dias nº 09 - 2005

Francisco de Assis um homem de paz formado pela liturgia

A vida de Francisco de Assis, como acontece para todo homem, sempre será, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede de continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui. Justamente nessa perspectiva é que se está reconhecendo o papel importante, para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.

de Pietro Messa

3. O testemunho do Breviarium Sancti Francisci

A importância da liturgia na fraternitas menorítica e na vida de Francisco de Assis é testemunhada não apenas pela Regra dos Frades Menores confirmada pelo papa Honório III em 1223, mas sobretudo por um códice conservado entre as relíquias do proto-mosteiro de Santa Clara, na homônima Basílica em Assis. Como testemunha uma escrita de próprio pu­nho do frei Leão, ou seja, de um dos companheiros, além de testemunha, do Santo, esse códice foi usado pelo próprio Francesco: “O bem-aventurado Francisco recomendou esse breviário a seus companheiros, frei Ângelo e frei Leão, uma vez que, quando tinha saúde, quis sempre recitar o ofício, como está contido na Regra; e no tempo de sua doença, não podendo recitá-lo, queria escutá-lo; e isso continuou a fazer enquanto viveu”4.

O códice, denominado Breviarium sancti Francisci, consiste fundamentalmente num breviário, no saltério e no evangeliário; a primeira parte é a mais consistente e é constituída pelo breviário da Cúria Romana reformado por Inocêncio III. A antiguidade desse texto, que o torna uma testemunha privilegiada dessa reforma e portanto da história dos livros litúrgicos em geral, é confirmada pela presença, sobretudo nas solenidades marianas ou de santos ligados ao ministério pontifício, como Pedro, Paulo e Gregório Magno, de leituras extraídas dos sermões do próprio Ino­cêncio III; essas leituras, depois da sua morte, em 1216, serão tornadas facultativas pelo sucessor, papa Honório III, e imediatamente desaparecerão do breviário5. De fato, o Breviário de São Francisco é o único breviário propriamente dito que contém essas leituras por inteiro. Esse códice foi usado por Francisco e certamente cooperou para formar nele uma, ainda que rudimentar, cultura teológica, que lhe permitiu expressar sua espiritualidade e seu pensamento em alguns escritos, três dos quais estão ainda hoje ao nosso alcance em seu formato manuscrito original6.

Considerando esse papel desenvolvido pela liturgia na formação cultural e espiritual de Francisco, essa deve ser levada em conta devidamente quando se procura compreender a mensagem do santo de Assis. Portanto, sobretudo o conteúdo desse códice deve ser levado em conta todas as vezes em que se queira aprofundar uma temática particular de seu pensamento; assim, o papel da Virgem Maria em seu pensamento se tornará mais inteligível na medida em que se lerem seus escritos levando em conta o Ofício da Bem-aventurada Virgem e as quatro festas marianas contidas no citado códice, ou seja, a Apresentação de Jesus no Templo, em 2 de fevereiro; a Anunciação, em 25 de março; a Assunção, com sua oitava, de 15 a 22 de agosto; e a Natividade de Maria, em 8 de setembro. Ainda que as duas primeiras festas, ou seja, a Apresentação no Templo e a Anunciação, celebrem dois mistérios da vida de Jesus Cristo, já há séculos haviam assumido uma forte conotação mariana, tanto que a primeira é denominada pelo citado Breviarium como festa da Purificação da Virgem Maria7.

A importância do Breviarium sancti Francisci foi reconhecida e testemunhada pelo próprio frei Leão, que o deu à abadessa Benedita do mosteiro de Santa Clara de Assis, para que o conservasse como um testemunho privilegiado da santidade de Francisco. Todavia, antes de entregá-lo, ele assinalou no calendário diversos dias aniversários de defuntos, entre os quais os de Inocêncio III e o de Gregório IX. Depois ainda de alguns anos, durante os quais foi usado como livro litúrgico, o breviário do Santo foi definitivamente posto entre as relíquias do citado mosteiro, onde ainda hoje pode ser admirado. Justamente em razão dessa importância, no século XVII sua capa foi decorada com duas ornamentações de prata que representavam São Francisco e Santa Clara.

Muitas vezes a própria Bíblia, e portanto o Evangelho, está presente em seus escritos mediada pela liturgia (...). O que fica claro a um estudo mais aprofundado é que ele conheceu a Escritura mediante a liturgia, ou seja, graças à mediação da Igreja.

4. Francisco e a Igreja

Um dos temas mais debatidos na historiografia franciscana é a relação de Francisco com a Igreja. Houve quem falasse de Francisco como uma espécie de revolucionário, e quem, por sua vez, não podendo contradizer as fontes, procurasse a razão de sua obediência à hierarquia em sua escolha de viver como frade menor; seja num sentido, seja no outro, sua postura é sempre vista de uma maneira que podemos definir afastada, extrínseca. A consideração da importância da liturgia na vida de Francisco pode ajudar a compreender melhor sua relação com a Igreja: ele viveu a inserção, certamente não de maneira passiva, numa história que o precedia e que se havia expresso também mediante determinadas fórmulas litúrgicas. A oração e a meditação de textos anteriores a ele, expressão da vida e da santidade da Igreja ao longo dos séculos, tornaram-se para Francisco o lugar de comunhão com a história da salvação. Justamente por isso, ele foi muito determinado contra aqueles que não queriam rezar o Ofício, como é testemunhado pelo que escreve em seu testamento: “E embora eu seja simples e enfermo quero contudo ter sempre junto de mim um clérigo que reze comigo o ofício segundo manda a Regra. E todos os outros irmãos estejam obrigados a obedecer de igual modo aos seus guardiães e a rezar o ofício segundo manda a Regra. E se acaso houver quem não reze o ofício segundo o preceito da Regra e introduzir um modo diferente ou não seja católico, todos os irmãos, onde quer que estiverem e acharem um deles, são obrigados sob obediência a levá-lo ao custódio mais próximo do lugar onde o tiverem encontrado. E o custódio esteja gravemente obrigado sob obediência a mantê-lo sob guarda severa como prisioneiro, dia e noite, de modo que não possa escapar de suas mãos, até que o entregue pessoalmente às mãos de seu ministro. Também o ministro esteja gravemente obrigado sob obediência a enviá-lo por tais irmãos que o guardem dia e noite como um preso, até que o apresentem ao senhor de Óstia, que é o senhor, protetor e corretor de toda a fraternidade”8. Essa lista que se conclui com a entrega ao “senhor da Óstia”, ou seja, ao chamado cardeal protetor da Ordem dos Frades Menores, foi considerada uma das “durezas” de frei Francisco que tanto contrasta com uma certa imagem conciliadora que se tem dele; e essa dureza se dá diante daqueles que não rezavam o breviário. Isso é devido ao fato de que essa determinada oração, e portanto também sua recusa, estava diretamente relacionada com a ortodoxia ou não da pessoa e da comunidade.

O axioma lex orandi, lex credendi, lex vivendi pode ser constatado como vivido por Francisco e também considerado por ele, ainda que não explicitamente, uma das referências da sua experiência cristã. A forma como Francisco rezou, e que quis que fosse também a da fraternitas menorítica, ou seja, a oração do breviário, é expressão da sua fé, a da Igreja representada pelo pontífice, que se exprimiu em sua vida concreta. Portanto, se quisermos compreender plenamente a experiência do santo de Assis e de sua pregação de paz - com o significado que assumiu ao longo da história e sobretudo graças ao pontificado de João Paulo II -, não pode ser negligenciada a sua fé expressa mediante a oração, sobretudo litúrgica, e a oração do breviário.

Notas

4 Frei Leão de Assis, “Nota al Breviario di san Francesco”, in: Ernesto Caroli (org.), Fonti Francescane, Pádua, 2004, p. 2696.
5 P. Messa, “I sermoni di Innocenzo III nel Breviarium sancti Francisci”, in: Archivum Franciscanum Historicum, 95 (2002), pp. 249-265.
6 P. Messa, Le fonti patristiche negli scritti di Francesco di Assisi, posfácio de G. Miccoli, Assis, 1999.
7 P. Messa, “Le feste mariane nel Breviarium sancti Francisci”, in: L’Immacolata Concezione. Il contributo dei francescani. Atas do Congresso Mariológico Franciscano por ocasião do 150° aniversário da proclamação dogmática (Santa Maria dos Anjos, Assis, 4-8 de dezembro de 2003), Cidade do Vaticano, 2005.
8 Francisco de Assis, “Testamento”, 29-33, tradução de frei Edmundo Binder, in: Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano, Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 169-170.

Fonte: https://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF