Arquivo 30Dias nº 09 - 2005
Francisco de Assis um homem de paz formado pela liturgia
A vida de Francisco de Assis, como acontece para todo homem,
sempre será, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede de
continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui.
Justamente nessa perspectiva é que se está reconhecendo o papel importante,
para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.
de Pietro Messa
3. O testemunho do Breviarium Sancti
Francisci
A importância da liturgia na fraternitas menorítica
e na vida de Francisco de Assis é testemunhada não apenas pela Regra dos Frades
Menores confirmada pelo papa Honório III em 1223, mas sobretudo por um códice
conservado entre as relíquias do proto-mosteiro de Santa Clara, na homônima Basílica
em Assis. Como testemunha uma escrita de próprio punho do frei Leão, ou seja,
de um dos companheiros, além de testemunha, do Santo, esse códice foi usado
pelo próprio Francesco: “O bem-aventurado Francisco recomendou esse breviário a
seus companheiros, frei Ângelo e frei Leão, uma vez que, quando tinha saúde,
quis sempre recitar o ofício, como está contido na Regra; e no tempo de sua
doença, não podendo recitá-lo, queria escutá-lo; e isso continuou a fazer
enquanto viveu”4.
O códice, denominado Breviarium sancti Francisci,
consiste fundamentalmente num breviário, no saltério e no evangeliário; a
primeira parte é a mais consistente e é constituída pelo breviário da Cúria
Romana reformado por Inocêncio III. A antiguidade desse texto, que o torna uma
testemunha privilegiada dessa reforma e portanto da história dos livros
litúrgicos em geral, é confirmada pela presença, sobretudo nas solenidades
marianas ou de santos ligados ao ministério pontifício, como Pedro, Paulo e
Gregório Magno, de leituras extraídas dos sermões do próprio Inocêncio III;
essas leituras, depois da sua morte, em 1216, serão tornadas facultativas pelo
sucessor, papa Honório III, e imediatamente desaparecerão do breviário5. De
fato, o Breviário de São Francisco é o único breviário propriamente dito que
contém essas leituras por inteiro. Esse códice foi usado por Francisco e
certamente cooperou para formar nele uma, ainda que rudimentar, cultura
teológica, que lhe permitiu expressar sua espiritualidade e seu pensamento em
alguns escritos, três dos quais estão ainda hoje ao nosso alcance em seu
formato manuscrito original6.
Considerando esse papel desenvolvido pela liturgia na
formação cultural e espiritual de Francisco, essa deve ser levada em conta
devidamente quando se procura compreender a mensagem do santo de Assis.
Portanto, sobretudo o conteúdo desse códice deve ser levado em conta todas as
vezes em que se queira aprofundar uma temática particular de seu pensamento;
assim, o papel da Virgem Maria em seu pensamento se tornará mais inteligível na
medida em que se lerem seus escritos levando em conta o Ofício da
Bem-aventurada Virgem e as quatro festas marianas contidas no citado
códice, ou seja, a Apresentação de Jesus no Templo, em 2 de fevereiro; a
Anunciação, em 25 de março; a Assunção, com sua oitava, de 15 a 22 de agosto; e
a Natividade de Maria, em 8 de setembro. Ainda que as duas primeiras festas, ou
seja, a Apresentação no Templo e a Anunciação, celebrem dois mistérios da vida
de Jesus Cristo, já há séculos haviam assumido uma forte conotação mariana,
tanto que a primeira é denominada pelo citado Breviarium como
festa da Purificação da Virgem Maria7.
A importância do Breviarium sancti Francisci foi
reconhecida e testemunhada pelo próprio frei Leão, que o deu à abadessa
Benedita do mosteiro de Santa Clara de Assis, para que o conservasse como um
testemunho privilegiado da santidade de Francisco. Todavia, antes de
entregá-lo, ele assinalou no calendário diversos dias aniversários de defuntos,
entre os quais os de Inocêncio III e o de Gregório IX. Depois ainda de alguns
anos, durante os quais foi usado como livro litúrgico, o breviário do Santo foi
definitivamente posto entre as relíquias do citado mosteiro, onde ainda hoje
pode ser admirado. Justamente em razão dessa importância, no século XVII sua
capa foi decorada com duas ornamentações de prata que representavam São
Francisco e Santa Clara.
Muitas
vezes a própria Bíblia, e portanto o Evangelho, está presente em seus escritos
mediada pela liturgia (...). O que fica claro a um estudo mais aprofundado é
que ele conheceu a Escritura mediante a liturgia, ou seja, graças à mediação da
Igreja.
4. Francisco e a Igreja
Um dos temas mais debatidos na historiografia franciscana é
a relação de Francisco com a Igreja. Houve quem falasse de Francisco como uma
espécie de revolucionário, e quem, por sua vez, não podendo contradizer as
fontes, procurasse a razão de sua obediência à hierarquia em sua escolha de
viver como frade menor; seja num sentido, seja no outro, sua postura é sempre
vista de uma maneira que podemos definir afastada, extrínseca. A consideração
da importância da liturgia na vida de Francisco pode ajudar a compreender
melhor sua relação com a Igreja: ele viveu a inserção, certamente não de
maneira passiva, numa história que o precedia e que se havia expresso também
mediante determinadas fórmulas litúrgicas. A oração e a meditação de textos
anteriores a ele, expressão da vida e da santidade da Igreja ao longo dos
séculos, tornaram-se para Francisco o lugar de comunhão com a história da
salvação. Justamente por isso, ele foi muito determinado contra aqueles que não
queriam rezar o Ofício, como é testemunhado pelo que escreve em seu testamento:
“E embora eu seja simples e enfermo quero contudo ter sempre junto de mim um
clérigo que reze comigo o ofício segundo manda a Regra. E todos os outros
irmãos estejam obrigados a obedecer de igual modo aos seus guardiães e a rezar
o ofício segundo manda a Regra. E se acaso houver quem não reze o ofício
segundo o preceito da Regra e introduzir um modo diferente ou não seja
católico, todos os irmãos, onde quer que estiverem e acharem um deles, são
obrigados sob obediência a levá-lo ao custódio mais próximo do lugar onde o
tiverem encontrado. E o custódio esteja gravemente obrigado sob obediência a
mantê-lo sob guarda severa como prisioneiro, dia e noite, de modo que não possa
escapar de suas mãos, até que o entregue pessoalmente às mãos de seu ministro.
Também o ministro esteja gravemente obrigado sob obediência a enviá-lo por tais
irmãos que o guardem dia e noite como um preso, até que o apresentem ao senhor
de Óstia, que é o senhor, protetor e corretor de toda a fraternidade”8. Essa
lista que se conclui com a entrega ao “senhor da Óstia”, ou seja, ao chamado
cardeal protetor da Ordem dos Frades Menores, foi considerada uma das “durezas”
de frei Francisco que tanto contrasta com uma certa imagem conciliadora que se
tem dele; e essa dureza se dá diante daqueles que não rezavam o breviário. Isso
é devido ao fato de que essa determinada oração, e portanto também sua recusa,
estava diretamente relacionada com a ortodoxia ou não da pessoa e da
comunidade.
O axioma lex orandi, lex credendi, lex vivendi pode
ser constatado como vivido por Francisco e também considerado por ele, ainda
que não explicitamente, uma das referências da sua experiência cristã. A forma
como Francisco rezou, e que quis que fosse também a da fraternitas menorítica,
ou seja, a oração do breviário, é expressão da sua fé, a da Igreja representada
pelo pontífice, que se exprimiu em sua vida concreta. Portanto, se quisermos
compreender plenamente a experiência do santo de Assis e de sua pregação de paz
- com o significado que assumiu ao longo da história e sobretudo graças ao
pontificado de João Paulo II -, não pode ser negligenciada a sua fé expressa
mediante a oração, sobretudo litúrgica, e a oração do breviário.
Notas
4 Frei Leão de Assis, “Nota al Breviario di san Francesco”, in: Ernesto
Caroli (org.), Fonti Francescane, Pádua, 2004, p. 2696.
5 P. Messa, “I sermoni di Innocenzo III nel Breviarium sancti Francisci”,
in: Archivum Franciscanum Historicum, 95 (2002), pp. 249-265.
6 P. Messa, Le fonti patristiche negli scritti di Francesco di
Assisi, posfácio de G. Miccoli, Assis, 1999.
7 P. Messa, “Le feste mariane nel Breviarium sancti Francisci”, in: L’Immacolata
Concezione. Il contributo dei francescani. Atas do Congresso
Mariológico Franciscano por ocasião do 150° aniversário da proclamação
dogmática (Santa Maria dos Anjos, Assis, 4-8 de dezembro de 2003), Cidade do
Vaticano, 2005.
8 Francisco de Assis, “Testamento”, 29-33, tradução de frei Edmundo
Binder, in: Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e
outros testemunhos do primeiro século franciscano, Petrópolis, Vozes, 1988,
pp. 169-170.
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