ORTODOXO
Arquivo 30Dias nº 01 - 2004
Entrevista com Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico de
Constantinopla
A raiz do cisma: o pensamento mundano na Igreja
"De todas as divergências entre as Igrejas do Oriente e
do Ocidente, a que se pode compreender mais facilmente é por que e como a
Igreja do Ocidente fundamentou sua esperança em sua força mundana."
Por Gianni Valente
Historiadores católicos observam que já existiam tensões
entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente durante o primeiro milênio,
especialmente em relação ao papel do Papa. Portanto, o primeiro milênio não
deve ser descrito como uma espécie de era de ouro. O senhor concorda com essa
avaliação?
BARTOLOMEU I: O mundo em que a Igreja, em seu contexto histórico, vive é um
campo de treinamento, não um lugar de repouso. Durante o primeiro milênio, a
Igreja enfrentou centenas de heresias e desvios ou lapsos de todos os tipos por
parte de grupos de fiéis. Portanto, ninguém que conheça os fatos pode definir o
primeiro milênio da Igreja como sua era de ouro, e as relações entre as Igrejas
do Oriente e do Ocidente durante o primeiro milênio também não foram isentas de
problemas.
No entanto, durante o primeiro milênio, o vínculo de paz e
unidade de fé foi mantido entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente, pelo menos
em questões fundamentais, porque os desvios, embora tivessem se manifestado
cedo, ainda não eram considerados incuráveis. O diálogo era ativo, mantendo um
senso de unidade e comunhão, confirmado no Corpo e Sangue de Cristo — isto
é, nos sacramentos — enquanto todos os esforços eram feitos para eliminar os
desvios.
Infelizmente, esses esforços foram infrutíferos e, no fim,
prevaleceu o movimento oposto: o acirramento das diferenças e o cisma, como já
mencionamos. Consequentemente, o primeiro milênio, embora não tenha sido uma
era de ouro para as relações entre Oriente e Ocidente, foi, no entanto, uma era
de comunhão espiritual, e isso é muito importante.
Segundo o Cardeal Kasper, as excomunhões mútuas entre o
Patriarca Cerulário e o Legado Papal Humberto da Silvacandida não foram um
cisma entre duas Igrejas, mas uma excomunhão "entre dois homens idosos e
obstinados da Igreja, ambos os quais cometeram erros e cujas ações tiveram
consequências que ultrapassaram as controvérsias de seu próprio tempo". O
senhor concorda com essa avaliação?
BARTOLOMEU I: Não exatamente. Já explicamos que os anátemas de 1054 foram
um episódio de pouca importância em si mesmos, mas resultaram de um longo
processo, a ruptura de uma inflamação purulenta de longa duração. Seus
indivíduos e seus caracteres certamente desempenharam seu papel, mas não foram
esses os fatores que determinaram o curso da história da Igreja. As forças que determinaram
esse curso foram mais profundas, mais amplas, mais espirituais e mais eficazes.
Elas diziam respeito a populações e mentalidades inteiras, não a indivíduos
isolados, mesmo aqueles influentes na hierarquia civil ou eclesiástica, e em
todo caso não se referiam às suas reações isoladas e imprevisíveis.
Se os cristãos do Oriente e do Ocidente não estivessem já
espiritualmente distantes uns dos outros, os atos de Cerulário e Humberto
teriam sido revogados por seus sucessores imediatos. O fato de terem
permanecido em vigor por um milênio atesta o espírito comum predominante que
aprovou o cisma como expressão da diversificação espiritual existente.
Além disso, esse sentimento de
diversificação espiritual entre Oriente e Ocidente, ou, em outras palavras,
entre os mundos católico romano e protestante, por um lado (já que esses dois
mundos sentem uma afinidade mais profunda entre si, apesar de suas
divergências), e o mundo ortodoxo, por outro, é reconhecido e proclamado até
mesmo pelos maiores intelectuais da era moderna.
O teólogo dominicano Yves Congar observou que, mesmo
depois de 1054 e até o Concílio de Florença em 1431, houve tantos casos de
comunhão que não se podia falar de uma ruptura total. O que tornou a separação
"provisoriamente definitiva" nos séculos que se seguiram?
BARTOLOMEU I: Uma ruptura espiritual que envolve milhões de fiéis e
continentes inteiros não ocorre da noite para o dia, nem mesmo de forma
uniforme. A doença e a consequente ruína não atacam todas as células
simultaneamente. É, portanto, bastante compreensível que elementos de comunhão
tenham sido preservados local e temporariamente. Mas isso não altera a situação
geral, que, infelizmente, continuou a piorar.
Em 1204, Constantinopla foi saqueada de forma desumana e
bárbara, como se fosse uma cidade de infiéis e não de pessoas da mesma fé
cristã. Uma hierarquia eclesiástica latina foi instalada nela e em muitas
outras cidades, como se a Igreja Ortodoxa não fosse cristã. Proclamou-se que
fora da Igreja papal não há salvação, o que significava que a Igreja Ortodoxa
não salva. Um esforço maciço dos francos para latinizar a Igreja Ortodoxa
Oriental foi iniciado e implementado sistematicamente.
Esse comportamento severo ampliou o abismo psicológico entre
o Oriente e o Ocidente, resultando na situação atual, em que muitas Igrejas
Ortodoxas, unanimemente ou em sua maioria, questionam a sinceridade das
intenções unionistas da Igreja Católica Romana em relação à Igreja Ortodoxa e
desconfiam da esperança de alcançar um resultado unionista por meio do diálogo.
Elas veem essa tentativa como uma forma de absorver e subjugar os ortodoxos ao
Papa. Nós, pessoalmente, sempre consideramos o diálogo útil e esperamos que ele
dê frutos, mesmo que amadureçam lentamente. Para além dos esforços humanos de
boa vontade, contamos com a iluminação do Espírito Santo, com a graça divina,
que sempre cura das enfermidades e supre o que falta.
Umberto da Silvacandida foi um representante dos
inovadores da Igreja Ocidental que iniciaram a reforma gregoriana. Por que esse
movimento levou a um distanciamento e a uma ruptura entre a Igreja Ocidental e
a Igreja Oriental?
BARTOLOMEU I: A reforma gregoriana provocou reações na Igreja Ortodoxa e em
seus fiéis devido ao espírito que inspirou sua implementação (um espírito de
autoritarismo, poder e ações unilaterais que subvertiam as tradições). As
reações foram contra a dominação espiritual, contra a escravidão espiritual,
contra o autoritarismo espiritual. Poderíamos dizer, em geral, que as reações
derivaram do senso de liberdade pessoal, que é familiar à civilização ortodoxa
oriental.
Continua...


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