A CONVERSÃO DO OLHAR SOBRE O
POBRE NA DILEXI TE
06/11/2025
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
No primeiro capítulo da Dilexi te, o Papa
Leão XIV propõe um desafio à Igreja e à sociedade: associar ao compromisso
concreto com os pobres uma “mudança de mentalidades que tenha incidências
culturais” (n. 11). Não se trata apenas de promover a assistência social, mas
de transformar o modo como olhamos para os pobres e organizamos a vida
coletiva. Essa mudança constitui uma conversão cultural inseparável da
conversão espiritual, pois o modo como vemos os pobres revela o modo como
compreendemos Deus.
O Papa denuncia a ilusão de uma felicidade fundada na
acumulação e no sucesso pessoal, alimentada por uma cultura que “descarta os
outros sem sequer se aperceber, tolerando com indiferença que milhões morram de
fome” (n. 11). Essa mentalidade enraíza-se em ideologias meritocráticas e
individualistas, que reduzem a dignidade humana à produtividade e fazem crer
que a pobreza é culpa pessoal. O resultado é uma cegueira ética, na qual os
pobres se tornam invisíveis ou incômodos, e a desigualdade passa a ser aceita
como preço inevitável do progresso.
A mudança de mentalidade desejada por Leão XIV tem,
portanto, amplas incidências culturais. Implica reconstruir as bases da
convivência, substituindo a lógica da competição pela cultura da solidariedade.
O Papa fala de uma “renovação cultural” que não se limita a políticas públicas,
mas exige um novo ethos social e uma espiritualidade do
cuidado e da partilha. Trata-se de educar o olhar e o coração para reconhecer o
outro como “sacramento da presença de Cristo”. Essa é a grande revolução
cultural do Evangelho, em que o pobre deixa de ser problema e se torna
lugar teológico, rosto visível do Senhor.
Os preconceitos que ainda resistem à conversão são
denunciados com vigor: a meritocracia que glorifica os vencedores, o
economicismo que mede o valor das pessoas pelo que produzem e o
assistencialismo que infantiliza ou reduz os pobres à condição de objetos,
negando-lhes protagonismo. A Dilexi te afirma que
“os pobres não existem por acaso nem por destino amargo” (n. 14), mas são
vítimas de estruturas injustas e de mentalidades que perpetuam a exclusão.
Romper com esses preconceitos significa redescobrir a centralidade do Evangelho
e da fraternidade humana.
Na perspectiva bíblica e eclesial, os pobres não são
destinatários passivos, mas sujeitos da evangelização. Leão XIV retoma o
ensinamento de que Deus “escolhe os pobres” (Tg 2,5) e faz deles o coração
da Igreja. A opção preferencial pelos pobres, nascida da compaixão divina, é
expressão da própria lógica da encarnação. Cristo se fez pobre para nos
enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9). Amar os pobres é, portanto, amar o
próprio Cristo, não por filantropia, mas por fé.
A cultura da solidariedade encontra raízes profundas na
Tradição patrística. São João Crisóstomo ensina: “Queres honrar o Corpo de
Cristo? Não o desprezes nos pobres”. Afirmando que a Eucaristia sem caridade é
culto vazio. Santo Agostinho e São Basílio Magno lembram que partilhar com os
pobres não é ato opcional, mas exigência de justiça: “Não é de tua propriedade
o que dás ao pobre; é dele”. Esses testemunhos mostram que a fé cristã sempre
formou cultura quando se encarnou em gestos de comunhão.
A conversão de mentalidade é, antes de tudo, uma conversão
do coração. A Dilexi te convida a Igreja e a sociedade a
reencontrarem, na compaixão, a verdadeira cultura da vida. O amor aos pobres —
longe de ser ideologia — é critério de autenticidade do Evangelho. Numa
civilização que produz descartados, Leão XIV repropõe a “cultura do encontro”,
inspirada no Papa Francisco, em que cada pessoa é reconhecida como irmã.
A nova cultura começa quando deixamos de perguntar “quem é o meu próximo?”
e passamos a ser, nós mesmos, próximos de todos.

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