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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

SANTO AGOSTINHO: As poucas coisas simples da liturgia cristã

Santo Ambrósio celebra a missa em sufrágio de São Martinho, detalhes de uma cena do mosaico da abside, Basílica de Sant'Ambrogio, Milão | 30Giorni.

Arquivo 30Dias nº 11/12 - 2002

As poucas coisas simples da liturgia cristã

Por volta da virada do século IV, Agostinho foi confrontado com algumas questões litúrgicas. Além da resolução das questões da época, duas cartas de Agostinho (cartas 54 e 55 de seu epistolário) lançaram luz sobre como o mistério cristão deve ser concebido e amado hoje.

por Lorenzo Cappelletti

A modernidade de Agostinho é sempre marcante, isto é, a correspondência de seu modo de ser cristão com as sensibilidades atuais. Tanto que, às vezes, as palavras de Agostinho bastam para despertar o interesse gratuito de pessoas que, de outra forma, permaneceriam completamente indiferentes a Cristo, apesar do entusiasmo daqueles cuja profissão é se interessar por Cristo e por eles. Isso é demonstrado, por exemplo, pelas recentes declarações surpreendentes de Gérard Dépardieu (ver 30Giorni n.º 9, setembro de 2002, p. 63). Confiando na força das palavras de Agostinho, deixemo-las ecoar mais uma vez.

Por volta da virada do século IV, um homem cujo nome apenas conhecemos, Januário, colocou questões litúrgicas a Agostinho. Muito além de resolver as questões da época, duas cartas de Agostinho (cartas 54 e 55 de seu epistolário) lançam luz sobre como o mistério cristão deve ser concebido e amado hoje.

"O que deve ser feito na quinta-feira da última semana da Quaresma [Quinta-feira Santa]?", pergunta Januário. "O sacrifício deve ser oferecido de manhã e novamente à noite, após a ceia, porque lemos 'Da mesma forma, após a ceia...', ou devemos jejuar e celebrar somente após a ceia? Ou devemos jejuar e, como costumamos fazer, cear após o sacrifício?" (Carta 54, 5, 6).

Agostinho, antes de entrar em detalhes, nega antes de tudo que o que é proposto seja um problema e estabelece o critério para toda prática cristã: «Antes de tudo, quero que tenhais por certo que Nosso Senhor Jesus Cristo, como ele mesmo diz no Evangelho, nos sujeitou ao seu suave jugo e a um leve fardo e por isso quis estabelecer, como vínculos do povo novo, sacramentos em número muito limitado, muito fáceis de praticar e de significado sublime : como o batismo, consagrado em nome da Trindade, a comunhão com seu corpo e sangue e todos os outros meios recomendados nas escrituras canônicas, abandonando aqueles ritos dos quais lemos nos cinco livros de Moisés, que serviam à escravidão do povo antigo e eram adequados às disposições de seus corações e daquele tempo profético» (Carta 54,1,1; grifo nosso). Na Carta seguinte (55,7,13), Agostinho não falará somente novamente do número limitado de sacramentos, mas também das pouquíssimas coisas simples que constituem a sua matéria: «Usamos um número muito limitado de coisas, como a água, o trigo, o vinho e o azeite».

Há, contudo, também disposições não escritas – continua Agostinho na Carta 54 – mas transmitidas pela tradição, que são observadas por toda a Igreja porque são recomendadas e estabelecidas pelos apóstolos ou pelos concílios plenários, "cuja autoridade na Igreja é tão útil" (54,1,1), como a celebração anual dos mistérios da Paixão, da Ressurreição, da Ascensão e da Descida do Espírito Santo. Mesmo nisso não pode haver discrepância.

Mas há práticas que variam de acordo com o lugar, para as quais não se pode recorrer à Escritura ou às prescrições dos apóstolos ou dos concílios plenários. Nestes casos, e este é também o caso proposto por Januário, sua observância é deixada à liberdade de cada indivíduo e, se há uma obrigação, é a de se conformar ao uso da Igreja em que se encontra, "porque tudo o que não se possa provar ser contra a fé e contra os costumes deve ser considerado indiferente e deve ser observado por respeito àqueles entre os quais se vive" (54,2,2). Agostinho recorda quando, apenas para agradar a sua mãe Mônica, escandalizada porque em Milão não se jejuava aos sábados como em Roma, pediu conselho a Ambrósio, que lhe respondeu o que fazia: em Roma jejuava e em Milão não.

Agostinho diz ter pensado nesse conselho várias vezes, considerando-o quase um oráculo. É evidente que o conselho de Ambrósio era para ele algo diferente da solução de um problema, que na época não era seu, dado que talia non curabat (54,2,3). Essa contingência foi para Agostinho um encontro com uma liberdade desconhecida e surpreendente.

O outro exemplo dado por Agostinho diz respeito à prática da comunhão diária. O importante, afirma ele, não é se alguém se aproxima ou não da Eucaristia diariamente, mas a honra que se dá ao sacramento da nossa salvação. Em última análise, tanto Zaqueu, ao acolhê-lo, quanto o centurião, ao declarar-se indigno de recebê-lo, honraram o Salvador: "Zaqueu e o centurião não brigaram entre si, nem se consideraram superiores um ao outro, porque um, cheio de alegria, recebeu o Senhor em sua casa, enquanto o outro disse: 'Não sou digno de que entres em minha casa'. Ambos honraram o Senhor de maneiras diferentes e, por assim dizer, contrárias. Ambos eram pecadores miseráveis, ambos obtiveram misericórdia" (54,3,4). Segundo Agostinho, há apenas uma coisa que deve ser evitada diante desse alimento: o desprezo, isto é – ele continua citando a primeira Carta aos Coríntios – não distingui-lo de outros alimentos pela veneração devida unicamente a ele (veneratione singulariter debita). Por um lado, aqui apreciamos plenamente a magnanimidade pastoral da disposição com a qual Pio X, já em 1910, quis condicionar a recepção da Primeira Comunhão a este único elemento: a capacidade de distinguir o alimento eucarístico do alimento comum. Por outro lado, aqui reconhecemos o chamado apostólico, que mais uma vez se tornou fortemente relevante, a saber, ter cuidado para não comer e beber a própria condenação.

Mas voltemos a Agostinho. Diante de costumes diferentes, portanto, não se trata de importar nem exportar costumes que, como tais, só poderiam ser justificados em termos subjetivos, por pura curiosidade. A consequência seria, de fato é, como ele pôde observar com grande dor, a perturbação dos fracos. Somente em vista da fé ou da moral se deve corrigir um costume contrário ao bem ou instituir outro que antes não existia. De fato, toda mudança de costumes, mesmo que ajude por ser útil, traz confusão, com sua novidade; "Por isso, uma mudança que não é útil, pelo próprio fato de produzir confusão infrutífera, é prejudicial" (54,5,6). Portanto, se um determinado costume não é atestado pela Escritura nem pela Tradição unívoca de toda a Igreja, é-se livre para observá-lo ou não, porque evidentemente não diz respeito à fé ou à vida moral.

No entanto, Agostinho nem sequer absolutiza essa sua posição, que poderíamos chamar de liberal. E parece-nos que aqui reside um aspecto de seu gênio cristão.

De fato, na subsequente Carta 55, ele se arrisca: por um lado, afirma que, em relação aos salmos e hinos cantados, embora haja grande diversidade nessa prática, não há absolutamente nada melhor, nada mais útil, nada mais santo a fazer quando os cristãos se reúnem, porque isso move a alma à devoção e inflama o coração com amor a Deus (sem mencionar que se poderiam encontrar exemplos e preceitos do Senhor e dos apóstolos que o inculcam).

Por outro lado, ele diz que há práticas que, embora não se possa demonstrar de que forma são contrárias à fé, o são pelo simples fato de multiplicarem as obrigações, a ponto de tornar-se mais tolerável a condição dos judeus que, pelo menos, obedecem à Lei Mosaica e não a invenções humanas: "Quanto a outras práticas que são introduzidas fora do costume e que são prescritas para serem observadas como se fossem sacramentos, não posso aprová-las", diz Agostinho, "embora não ouse reprovar abertamente muitas dessas coisas por medo de escandalizar pessoas santas ou turbulentas. Mas o que mais me entristece é que, enquanto muitas coisas saudavelmente prescritas nas Escrituras são negligenciadas, tudo está repleto de uma massa de invenções", que um neófito que anda descalço durante a Oitava Pascal é mais severamente repreendido do que aquele que afogou sua mente na embriaguez. Penso, portanto, que, tendo o poder, todos os costumes que não se baseiam na autoridade da Sagrada Escritura, estabelecidos pelos sínodos episcopais ou confirmados pelo uso de toda a Igreja, devem ser suprimidos sem mais delongas. Esses costumes sofrem infinitas variações de acordo com as diferentes sensibilidades de cada lugar, a ponto de ser difícil ou totalmente impossível encontrar as causas de seu estabelecimento. Pois, embora não se possa demonstrar de que maneira são contrários à fé, eles oprimem, no entanto, com laços servis a própria religião que a misericórdia de Deus quis isenta de qualquer celebração além da de alguns sacramentos muito poucos e bem definidos . Tanto assim que a condição dos judeus parece mais tolerável, os quais, embora não tenham reconhecido o tempo da liberdade, estão, no entanto, sujeitos às imposições da Lei, não às invenções humanas" (55,18,34-19,35; grifo nosso).

Mas, justamente por serem chamados a uma lei de liberdade, a paciência e a caridade têm a última palavra: "Mas a Igreja de Deus, vivendo entre muita palha e joio, tolera muitas coisas" (55,19,35).

Fonte: https://www.30giorni.it/

Papa: descobrir a presença de Deus na criação para sermos responsáveis em protegê-la

Pela nossa relação com a criação (Vatican News)

Leão XIV dedica o vídeo de intenção de oração de setembro à relação do ser humano com a criação e reza oração inédita em súplica a Deus: "ajuda-nos a descobrir a tua presença em toda criação" para que "nos sintamos e saibamos ser responsáveis por esta casa comum na qual nos convidas a cuidar, respeitar e proteger a vida em todas as formas e possibilidades". O vídeo é divulgado durante Tempo da Criação, os 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis e os 10 anos da Laudato si'.

https://youtu.be/jaDqohaD4Kc

Andressa Collet - Vatican News

“Rezemos para que, inspirados em São Francisco, experimentemos a nossa interdependência com todas as criaturas, amadas por Deus e dignas de amor e respeito.”

Essas são as primeiras palavras de Leão XIV no vídeo para o mês de setembro, produzido pela Rede Mundial de Oração do Papa e divulgado nesta terça-feira (01/09), que está inserido num duplo aniversário: o de 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis e dos 10 anos da Encíclica Laudato si’ do Papa Francisco, durante o Tempo da Criação - o período ecumênico de 1 de setembro a 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis, une cristãos de diversas denominações em oração e ação pelo cuidado da terra. As imagens que acompanham a intenção de oração dedicada à relação do ser humano com a criação foram produzidas graças ao apoio do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

A oração inédita de Leão XIV

O vídeo traz uma oração inédita do Pontífice, que pede a Deus que saibamos reconhecer a presença de Deus na criação. Uma continuidade do magistério do Papa Leão XIV ao de Francisco, autor da encíclica Laudato si' (2015), especialmente evidenciada na referência a São Francisco: 

Senhor, Tu amas tudo o que criaste,
e nada existe fora do mistério da tua ternura.
Cada criatura, por mais pequena que seja,
é fruto do teu amor e tem um lugar neste mundo.

Mesmo a vida mais simples ou mais breve é envolvida pelo teu cuidado.
Como São Francisco de Assis, hoje também queremos dizer:
"Louvado sejas, meu Senhor!".

Através da beleza da criação,
Tu revelas-te como fonte de bondade. Nós te pedimos:
abre os nossos olhos para te reconhecer,
aprendendo com o mistério da tua proximidade a toda a criação
que o mundo é infinitamente mais do que um problema a resolver.
É um mistério a ser contemplado com gratidão e esperança.

Ajuda-nos a descobrir a tua presença em toda a criação,
para que, reconhecendo-a plenamente,
nos sintamos e saibamos responsáveis por esta casa comum
na qual nos convidas a cuidar, respeitar e proteger
a vida em todas as suas formas e possibilidades.

O vídeo de setembro

A interpretação franciscana da intenção de oração do Papa é narrada através de algumas imagens do documentário São Francisco de Assis – Sinal de Contradição, cedidas à Rede Mundial de Oração do Papa pela produtora norte-americana 10th Hour Production. Já o aniversário da Laudato si' está presente através da missa celebrada em 9 de julho, por Leão XIV, na “catedral natural” – como a definiu em homilia – do Borgo Laudato si' em Castel Gandolfo; uma celebração que seguiu o formulário da Missa pro custodia creationis (Missa pelo cuidado da criação), acrescentada pelo Pontífice ao Missal Romano precisamente por ocasião do aniversário de 10 anos da Encíclica do Papa Francisco.

Todos somos responsáveis pela casa comum

Entre os concelebrantes daquela missa esteve o cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, que apoiou a realização deste Vídeo do Papa. “O Jubileu da Esperança e o aniversário de 10 anos da Encíclica Laudato si’ nos convidam a viver um tempo de gratidão, compromisso e cuidado com a nossa casa comum”, sublinha o cardeal. E acrescenta: “todas as criaturas, mesmo as mais pequenas, são expressão do amor de Deus; na oração reconhecemos o valor e a sacralidade de toda a vida. O Santo Padre nos exorta a descobrir a presença de Deus na criação. Contemplando-a, somos chamados a protegê-la, a reconciliá-la, a viver em harmonia, a defendê-la com espírito profético, a respeitar todos os seres humanos e a promover uma paz duradoura e sustentável”.

Justiça ambiental, uma necessidade urgente

Na mensagem “Sementes de paz e esperança” para a X Jornada Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação (celebrada em 1 de setembro), o Papa Leão XIV afirma que a destruição da natureza, consequência do pecado humano, afeta sobretudo os mais pobres e vulneráveis. A justiça ambiental, escreve o Pontífice, “representa uma necessidade urgente que vai além da simples proteção do meio ambiente. Na realidade, trata-se de uma questão de justiça social, econômica e antropológica”, além de uma exigência teológica. Sendo os mais frágeis aqueles que sofrem com maior intensidade os efeitos das alterações climáticas e da deterioração ambiental: “o cuidado da criação torna-se uma questão de fé e de humanidade”.

Nas pegadas de São Francisco

O diretor internacional da Rede Mundial de Oração do Papa, Pe. Cristóbal Fones, sublinha que a intenção deste mês “nos recorda a interligação deste mundo: não se pode separar o bem-estar humano do bem-estar dos outros habitantes da Terra e do “estado de saúde” do nosso planeta”. “Este mês - continua o P. Fones -, o Papa nos convida a refletir sobre como as nossas ações afetam a natureza, obra de Deus, e a procurar modos de vida que promovam a restauração do equilíbrio natural e a harmonia entre o ser humano e o meio ambiente. Num mundo tão competitivo, agitado e dominado pela dinâmica do consumo, grande parte da humanidade anseia profundamente por um modo de viver bom, mais próximo da natureza, mais respeitoso com ela; um estilo que nos permita contemplá-la num silêncio atento que nos leve ao encontro com nós mesmos, com Deus e com os outros”.

Para Pe. Fones, São Francisco pode nos inspirar neste caminho para uma vida “mais simples, menos consumista; uma vida baseada numa relação fraterna com os outros e com a natureza, e numa relação filial, de amor e gratidão a Deus”. Por fim, no contexto do Ano Santo de 2025, O Vídeo do Papa adquire uma relevância especial, pois divulga as intenções de oração que o Pontífice leva no coração. Para receber adequadamente as graças da indulgência jubilar, é necessário, precisamente, rezar pelas intenções do Papa.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Se Deus é por nós, quem será contra nós?

Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Guiame)

SE DEUS É POR NÓS, QUEM SERÁ CONTRA NÓS?

18/09/2025

Dom Leomar Brustolin
Arcebispo Santa Maria (RS)

A frase de Paulo, na Carta aos Romanos, é um desafio e uma declaração de confiança: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31). Ela ecoa as palavras antigas do profeta Isaías, que, falando de alguém perseguido e injustiçado, dizia: “O Senhor Deus é quem me ajuda; quem me condenará?” (Is 50,9). É a voz de quem confia que não está sozinho diante das dificuldades.

Paulo não escreve a partir de uma vida tranquila. Ele conheceu perseguições, ameaças, prisões e rejeição. Ainda assim, não perdeu a convicção de que nenhuma força humana ou espiritual pode anular o amor de Deus. Ele afirma que, em tudo, “somos mais que vencedores” graças àquele que nos amou. A vitória de que fala não é sobre rivais ou inimigos, mas sobre o medo, a injustiça e a desesperança.

O apóstolo lista tudo aquilo que, aparentemente, poderia afastar alguém de Deus: a morte, a vida com seus altos e baixos, as forças invisíveis, o presente, o futuro, o que está nas alturas ou nas profundezas — enfim, “qualquer outra criatura”. Nenhuma dessas realidades, por maior ou mais ameaçadora que pareça, é capaz de romper o laço de amor que Deus tem com cada pessoa.

Uma fé que gera coragem e resistência

Essa é uma mensagem que fala de coragem e resistência. Confiar em Deus não significa viver sem problemas, mas ter um fundamento sólido para enfrentá-los. É o contrário do conformismo: quem confia assim não se paralisa diante das dificuldades, mas se sente motivado a fazer o bem, a defender a justiça e a cuidar dos mais frágeis.

Essa confiança se traduz no cotidiano em atitudes concretas: perdoar em vez de guardar rancor, manter a honestidade mesmo quando seria mais fácil ceder, ajudar quem precisa sem esperar retorno. É um estilo de vida que não depende de vitórias externas, mas da certeza de que a vida tem sentido e valor, mesmo nos momentos mais duros.

Uma união que sustenta a vida

Para Paulo, viver ou morrer é sempre estar unido a Cristo. Essa união não é apenas religiosa; ela significa que a nossa existência inteira — nas alegrias e nas dores — está envolvida por um amor que não se quebra. Essa convicção permite encarar as crises sem desespero e seguir caminhando com esperança.
No fundo, “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” não é só uma frase bonita. É uma maneira de olhar a vida. É acreditar que, apesar das forças contrárias, existe uma presença que acompanha, fortalece e sustenta. E que, por causa disso, vale a pena viver com coragem, esperança e generosidade.

Esperança ativa em tempos difíceis

Vivemos um tempo em que as notícias diárias parecem pesar sobre o coração: guerras prolongadas, catástrofes ambientais, desigualdade crescente, violência urbana e incertezas econômicas. Muitos se sentem desamparados diante de problemas que parecem grandes demais para serem resolvidos.

É justamente nesse contexto que a mensagem “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” se torna ainda mais urgente. Ela nos lembra que a esperança não é ilusão, mas uma força real que nasce da confiança e se traduz em ações concretas. Mais do que esperar passivamente por dias melhores, trata-se de acreditar que, mesmo nas crises, é possível construir pontes, proteger vidas e manter viva a chama do bem.

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta Apostólica “Mulieris Dignitatem” (Parte 3/3)

Para um feminismo cristão (Crédito: Opus Dei)

Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta Apostólica “Mulieris Dignitatem”

Estudo de Jutta Burggraf, Doutora em Sagrada Teologia e em Pedagogia, publicado em “Romana”, nº 7 (1988).

14/08/2020

5. Maternidade física e maternidade espiritual

A unidade e a igualdade do homem e da mulher não anulam, no entanto, a diversidade. Tendo insistido até aqui na radical paridade dos dois sexos, o Santo Padre busca, na segunda parte da Carta Apostólica, as dimensões específicas. A especificidade não está, sem dúvida, na qualidade ou nos dotes humanos que caracterizam a um ou a outro. Com efeito, segundo dados estatísticos, a maior ou menor frequência com que os diversos talentos aparecem nos homens ou nas mulheres não nos diz nada acerca das pessoas concretas. Nenhum indivíduo é determinado somente pelo sexo: além de ser homem ou mulher, possui disposições e aptidões próprias que lhe conferem individualmente condições para a atividade artística, técnica, científica, social, etc.

A especificidade é, pois, bem mais radical e consiste na maternidade ou na paternidade (cfr. MD, 17). O Papa fala longamente sobre a maternidade como dimensão da vocação da mulher (cfr. MD, 18), que implica desde o início uma especial abertura à concepção ou ao nascimento. Dessa forma, a mulher se realiza admiravelmente mediante um “dom sincero de si” (MD, 18).

O homem, mesmo sendo pai, encontra-se necessariamente fora do processo da gestação e do nascimento. A sua contribuição para a paternidade comum é, inicialmente menos comprometida com relação à da mulher: daí as obrigações especiais que surgem para ele com relação à sua mulher. João Paulo II afirma que o marido é devedor de sua esposa e recorda que “nenhum programa de igualdade de direitos das mulheres e dos homens é válido se isto não é tido em conta de modo essencial” (MD, 18). A sensibilidade de cada um deverá prever como tais deveres serão efetivados, mas não parece fora de lugar prever uma colaboração do homem nas tarefas domésticas, como por outro lado a mulher colabora no sustento econômico da família.

A maternidade não é apenas um processo fisiológico. É sobretudo um acontecimento que envolve o ser da mulher em sua mais íntima raiz e corresponde à inteira estrutura psicofísica da feminilidade. O documento pontifício conclui por isso que o “modo único de contato com o novo homem que está se formando, cria, por sua vez uma atitude para com o homem – não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral – tal que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher” (MD, 18). A antropologia filosófica[14] e as ciências experimentais recentes confirmam, por exemplo, que a mulher oferece uma contribuição mais concretamente humana às relações interpessoais: ela possui uma capacidade toda sua de descobrir o indivíduo na massa e de promovê-lo como tal. “Deus – afirma João Paulo II – lhe confia de uma maneira especial o homem, o ser humano” (MD, 30). Subtrair o indivíduo do anonimato da sociedade massificada, salvá-lo da fria tirania das tecnologias, protegê-lo em um contexto de relações pessoais, tudo isto é missão e conquista da mulher[15].

Isto não significa, no entanto, que as mulheres criem um mundo mais humano só com a sua presença e mais do que os homens. A nossa sociedade só poderá mudar se ambos os sexos souberem acolher o convite do Papa para dar vida a uma nova cultura, marcada pela compreensão, o amor, o dom de si e aquela recíproca atitude de serviço que Deus inscreveu em cada um deles no princípio da criação e da redenção (MD, 18). Mas, em tudo isto a mulher tem muito a oferecer (cfr. MD, 3) e o homem, na medida em que está por natureza mais distante da vida, muito que aprender. O que adquire uma especial aplicação à paternidade no período pós-natal (MD, 18).

João Paulo II descreve a educação dos filhos como dimensão espiritual da paternidade, na qual os dois cônjuges são igualmente responsáveis. A mulher é, no entanto, de alguma forma, a “primeira educadora” dos filhos (MD, 19). Daí se deriva, entre outras coisas que, inclusive, as legítimas aspirações à emancipação parecem enganosas, se dirigidas unicamente no âmbito exterior à casa. Seguindo o Concílio Vaticano II[16], o Papa reivindica a necessidade de reconhecer o valor do empenho doméstico e educativo das mães (cfr. MD, 18). É a mãe, com efeito, que lança os alicerces da formação “de uma nova personalidade humana” com a assiduidade dos seus cuidados nos primeiros anos do desenvolvimento. Se a maternidade também mostra, no sentido biofísico, uma aparente passividade, é, no entanto, sumamente criativa do ponto de vista ético e psicológico: o homem não aprende de outra forma a amar, a perdoar, a ser fiel. Como mãe, portanto, a mulher “possui uma precedência específica sobre o homem” (MD, 19).

Ninguém poderá, pois, considerar fora de lugar, a chamada que se levanta de tantos lugares para que a mulher seja adequadamente protegida pelo legislador em sua mais necessária atividade específica e que seu compromisso na família receba o necessário reconhecimento econômico e sócio-político[17]. Emancipação vem então a significar para a mulher “possibilidade real de desenvolver plenamente as virtudes próprias; as que tem em sua singularidade e as que tem como mulher. A igualdade perante o direito, a igualdade de oportunidades em face da lei, não suprime, antes pressupõe e promove essa diversidade, que é riqueza para todos”[18].

Passando da dimensão natural à sobrenatural da educação, a tarefa da mulher pode ser delineada afirmando que, como ela (cada mulher) recebe o próprio filho de Deus (na medida em que a geração é sempre participação no ato criador), assim o filho (cada filho) existe em última instância para Deus. Neste sentido cada mulher participa de algum modo, na aliança definitiva estabelecida por Deus com Maria: porque cada mulher contribui para a temporalidade e a eternidade de seu filho. Assim, a maternidade “entendida à luz do Evangelho, não é só da carne e do sangue (...). Com efeito, são os nascidos de mães terrenas (...)que recebem do Filho de Deus o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12)” (MD, 19).

6. A virgindade pelo Reino dos céus

Há uma segunda dimensão constitutiva do desenvolvimento da personalidade feminina que João Paulo II analisa em Mulieris Dignitatem: o celibato, a virgindade “pelo Reino dos Céus” (MD, 17). Poucas realidades cristãs chocam como esta com os costumes de uma sociedade permissiva e consumista, na qual os comportamentos ditados pela sensualidade e o egoísmo se generalizaram. Também hoje, no entanto, na virgindade “pelo Reino dos Céus”, é que se dá, de modo insubstituível a experiência vital da plenitude do amor. Como o Papa já havia feito na sede de Cracóvia[19], dedica amplo espaço em sua própria pregação para ilustrar o sentido da virgindade na consciência cristã[20] e a Mulieris Dignitatem confirma-o com especial profundidade.

A escolha do celibato também introduz o homem e a mulher no mistério esponsal da união com Cristo e a Igreja. A Carta Apostólica sublinha que a virgindade os projeta numa entrega cheia de amor a um Tu, na qual se encontra a totalidade do dom de si que caracteriza o matrimônio, mas de modo diverso: nela cada um, separadamente, põe-se em relação direta e pessoal com Cristo vivo e presente. Homem e mulher entregam-se exclusivamente a si mesmos a quem primeiro se entregou a cada ser humano, amando-o “até o fim” (cfr. Jo 13,1). A pessoa humana amada por Deus até tal extremo “entrega-se a Ele e só a Ele”[21], e o Papa esclarece: “isto não pode ser comparado com o simples celibato porque a virgindade não se restringe ao simples ‘não’, mas contém um profundo ‘sim’ na ordem esponsal: dar-se por amor de modo total e indiviso” (MD 20).

A vocação para o celibato é profundamente pessoal, concreta, única (MD 21). Nela o homem e a mulher realizam-se plenamente como pessoas: a feminilidade e a masculinidade entram plenamente, com todas as suas qualidades e fraquezas, em relação com Cristo, e se abrem possibilidades e perspectivas novas. Na plena comunhão do eu com o Tu divino, o coração humano é cumulado pela superabundância do amor, que se dá até abraçar a humanidade inteira. A mulher que renunciou à maternidade física poderá compreender mais rapidamente às exigências da maternidade espiritual, já que também esta pertence à sua interioridade mais profunda (cfr. MD, 21). Como uma mãe ama em primeiro lugar o marido e os próprios filhos, assim a mulher que se deu inteiramente a Deus na virgindade, torna-se capaz de oferecer a própria vida por todos. O grau de tal entrega depende da profundidade vital de sua união com Cristo. E se consuma também no dirigir-se espontaneamente aos mais fracos, aos indefesos, aos inocentes, e aos culpados, abandonados por uma sociedade cada vez mais competitiva. Neste contexto, João Paulo II recorda os grandes méritos históricos das ordens femininas, que se distinguiram pela aceitação da maternidade espiritual a favor dos marginalizados (cfr. MD, 21): exemplos eloquentes de como, dando-se aos outros, por amor a Cristo, a mulher alcança uma realização frequentemente heroica da própria vocação e oferece um testemunho vivo de papel insubstituível da feminilidade. O celibato pelo Reino dos Céus põe-se assim em estreita relação com a fecundidade do matrimônio: “Existem, por conseguinte, muitas razões para ver nestes dois caminhos diversos – duas vocações diversas de vida da mulher – uma profunda complementaridade e até uma profunda união no interior do ser da pessoa” (MD, 22).

7. A Igreja, Esposa de Cristo

Mulieris Dignitatem apresenta amplamente a missão eclesial da mulher, tendo em conta que a Igreja não é uma sociedade como as outras, mas um mistério cuja mais profunda compreensão excede as possibilidades humanas.

A Igreja é termo feminino, também consolidado entre outras coisas pela célebre analogia paulina que faz dela a Esposa de Cristo (cfr. Ef 5,23-32). Como sujeito coletivo, compreende obviamente homens e mulheres de modo que o feminino surge aqui como “símbolo do humano” (MD, 25). Não é o homem com seu espírito ativista, mas a mulher com sua abertura à vida, que representa em seu próprio ser a natureza da Igreja: acolhida do homem por parte de Deus e comunhão íntima com Cristo.

E o sacerdócio? A resposta do Santo Padre não dá lugar a nenhum possível equívoco a este propósito. Pode-se deduzir então que não tem sentido fazer depender a questão da dignidade da mulher do sim ou do não a seu acesso ao sacerdócio ministerial[22]. É sabido que alguns setores da opinião pública, sensibilizados pela emancipação da mulher e pela igualdade de direitos entre os dois sexos, entenderam como uma espécie de discriminação o fato de que, na tradição católica, o sacerdócio ministerial seja reservado aos homens. João Paulo II, fazendo-se eco da declaração Inter insigniores da Congregação para a Doutrina da Fé (1976), argumenta fundamentando-se na conduta mantida a este respeito pelo próprio Cristo: mesmo tendo-se oposto radicalmente, até desafiar a prática social dominante, e seus propugnadores, a qualquer discriminação contra a mulher, ordenou sacerdotes somente os homens e o fez “com a mesma liberdade com que, em todo o seu comportamento, pôs em destaque a dignidade e a vocação da mulher, sem se conformar ao costume dominante e à tradição sancionada também pela legislação do tempo” (MD, 26). Os Apóstolos atuaram atendo-se ao exemplo do Mestre e a Igreja sempre sentiu o dever de seguir fielmente o que Cristo e a comunidade apostólica fizeram. O cristianismo, com efeito, é, em muitos sentidos, uma comunidade histórica[23]: as atuações de Cristo não representam apenas um ponto de partida, mas têm um conteúdo normativo, que define para sempre os seus traços fundamentais.

Poder-se-ia inclusive imaginar um eventual modo de atuar diferente de Cristo, e talvez isto não estivesse em contraste com o resto da economia sacramental nem com a forma global da redenção. Mas é inegável que, de fato, o plano de Deus seguiu seu caminho, muito distinto e bem determinado. Esse plano revelou-se num momento concreto da história e em circunstâncias específicas, mas o seu caráter é permanente[24]. A razão pela qual a mulher não pode receber a ordenação sacerdotal não deriva pois, da racionalidade humana, porque ascende a uma dimensão infinitamente mais profunda que só pode ser explicada e aceita pela fé.

A referência do sacerdócio ao homem acha-se enraizada no próprio centro da substância do ministério da Igreja. Quando o sacerdote exerce o ministério, não atua em nome próprio, mas in persona Christi. Em sua natureza de homem, representa Cristo, Esposo da Igreja como autor da graça (cfr. MD, 26). O que não implica que sejam proibidas à mulher funções relevantes na Igreja, como esclareceu o Concílio Vaticano II, por exemplo, no n.9 do decreto Apostolicam actuositatem: “Posto que além disso, em nossos dias as mulheres tomam parte cada vez mais ativa em toda a vida social, é de grande importância que ela participe cada vez mais amplamente nos vários campos de apostolado da Igreja”. Por outro lado, a doutrina do sacerdócio comum dos fiéis mostra que na Igreja não se dá uma discriminação da mulher com relação ao homem, mas antes uma complementaridade de funções e condições (cfr. MD, 27).

8. A dignidade da mulher e a ordem do amor

A necessidade do sacerdócio ministerial ou hierárquico e a sua excelsa dignidade estão evidentemente fora de discussão, o que não representa, no entanto, o ápice da Igreja de Deus. João Paulo II detém-se em outra hierarquia, que transcende infinitamente a primeira em importância: a hierarquia da santidade que, apesar de escondida a nossos olhos, possui uma eficácia histórica superior a qualquer avaliação (cfr. MD, 27). Neste contexto, o Santo Padre examina a dimensão mariana e apostólica – petrina -- da Igreja, explicando que o exemplo de santidade provém de Maria para todos os cristãos, antes e mais do que dos Apóstolos. Nela, Virgem e Mãe ao mesmo tempo, (MD, 17) a Igreja adquiriu já a própria plenitude. E, já que Ela é modelo também dos Apóstolos, segue-se que todos os sacerdotes devem recorrer à escola de Maria: uma mulher que não foi investida da ordem sacerdotal, mas que justamente veneramos como Mãe da Igreja (cfr. MD, 27).

Maria supera e precede todos os cristãos no caminho da santidade. É o modelo da perfeita semelhança com Deus que, na vida intratrinitária como no mistério salvífico, revelou-se como Amor que se entrega a si mesmo (cfr. MD, 29). Nela, a mulher compreende que “não pode se encontrar a si mesma senão doando amor aos outros” (MD, 30). E isto vale para qualquer criatura humana[25]. O aprofundamento de tal missão leva o Santo Padre a voltar, na conclusão do documento, ao ideal cristão de serviço. A moral ensinada por Jesus implica uma mudança completa do valor mundano do poder ao da humildade, que está, na verdade, muito mais em consonância com as exigências fundamentais da natureza humana. Só quem ama, homem ou mulher, pode notar a existência dos outros e ajudar efetivamente; só quem ama pode aliviar os sofrimentos. O amor torna sensível e forte, humilde e seguro, livre e obediente ao mesmo tempo; e faz assumir a responsabilidade para um futuro mais humano.

A visão do Apocalipse culmina com a aparição de Maria, vencedora na luta contra o mal, na qual o Santo Padre vê o cumprimento definitivo da dignidade e da vocação da mulher (cfr. MD, 30). No combate contra o pecado, que se propõe como luta pelo ser humano e pela sua realização definitiva em Deus, a mulher é chamada a construir a civilização do amor com a sua força espiritual e moral.

Jutta Burggraf


[14] Cfr. G. VON LE FORT, Die ewige Frau, 14ªed. München 1950.

[15] Já na Encíclica Redemptor Mater, n. 46, João Paulo II havia tirado da contemplação da figura de Maria estas qualidades como especificamente femininas.

[16] Cfr. CONCÍLIO VATICANO II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 52; JOÃO PAULO II, Exhort apost. Familiaris consortio, 22-XI-1981, n.23.

[17] Cfr JOÃO PAULO II, Litt. enc. Laboren exercens, 14-IX-1981, n. 19.

[18] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, cit. N. 87.

[19] Cfr. K. WOJTYLA, Liebe und Verantwortung ???.

[20] JOÃO PAULO II, Die Erlösung des Leibes. Katechesen 1981-1984, Vallendar 1985.

[21] Cfr. K WOJTYLA, Liebe und Verantwortung, cit, p. 21.

[22] J. RATZINGER, La donna, custode dell’essere umano, em “L’Osservatore Romano, 6-X-1988.

[23] Cfr. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Decl. Inter Insigniores, 15-X-1976, n. 4: AAS 69 (1976) 98 – 116.

[24] Cfr. J. RATZINGER, Das Priestertum des Mannes: ein Verstoss gegen die Rechte der Frau? Em “Die Sendung der Frau in der Kirche” Kevelaer 1978, p. 88.

[25] Cfr. CONCÍLIO VATICANO II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 24; JOÃO PAULO II, Exhort. apost. Familiaris Consortio, n.22.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/para-um-feminismo-cristao-reflexoes-sobre-a-carta-apostolica-mulieris-dignitatem/

O Papa: saiamos das polarizações, construamos pontes na Igreja e no mundo

Papa Leão XIV (Vatican News)

Publicado o livro León XIV: cidadão do mundo, missionário do século XXI com o texto integral da entrevista concedida pelo Pontífice à jornalista de Crux, Elise Ann Allen. Entre os temas abordados: o drama de Gaza, a política sobre a China, o papel das mulheres, a acolhida às pessoas LGBT+, os abusos, a situação financeira da Santa Sé, IA e fake news.

Salvatore Cernuzio – Vatican News

Como Papa, papel no qual busca "construir pontes" e "não alimentar ainda mais a polarização" no mundo e na Igreja, ele denuncia a situação "terrível" em Gaza, à qual "não podemos nos tornar insensíveis", e afirma que a Santa Sé "não considera", neste momento, que "qualquer declaração possa ser feita" sobre a definição de genocídio. Em seguida, assegura que não deseja interferir na política de seu país natal, os Estados Unidos, mas que "não tem medo" de levantar questões, mesmo com o presidente Trump, sobre questões urgentes. Em relação à China, ele assegura que dará continuidade às políticas da Santa Sé e de seus antecessores e, seguindo Francisco, espera continuar nomeando mulheres para cargos de liderança, reiterando que não tem intenção de mudar o ensinamento da Igreja sobre a ordenação feminina. O mesmo vale para pessoas LGBTQ+: acolhida a "todos, todos, todos", mas "o ensinamento da Igreja continuará como está". Ele descreve o abuso como uma verdadeira crise; pede a maior proximidade para com as vítimas, mas lembra que, por vezes, foram feitas falsas acusações. Em relação à outra "crise", a financeira, pede que não nos "choraminguemos" e, em vez disso, continuemos a desenvolver planos: "Mas não perco o sono por causa disso".

Perguntas e respostas sobre questões urgentes da atualidade para a Igreja e o mundo estão presentes na entrevista – a primeira concedida - do Papa Leão XIV para Elise Ann Allen, jornalista de Crux. Em 14 de setembro, aniversário de Robert Francis Prevost, trechos da conversa foram divulgados antecipadamente, acompanhando o volume biográfico "León XIV: ciudadano del mundo, misionero del siglo XXI", lançado esta quinta-feira, 18 de setembro, em espanhol pela Penguin Peru.

O drama de Gaza

Entre as primeiras perguntas ao Papa está a situação em Gaza. "Embora tenha havido alguma pressão" sobre Israel por parte dos Estados Unidos e apesar de algumas declarações do presidente Trump, "não houve uma resposta clara" para "aliviar o sofrimento da população", enfatizou o Papa Leão XIV. "Isso é muito preocupante", dadas as condições em que tantas pessoas, especialmente crianças, sofrem de "fome verdadeiramente". No futuro, "elas precisarão de cuidados médicos significativos, bem como de ajuda humanitária". O Papa espera que as pessoas não se tornem "insensíveis" ao que está acontecendo na Faixa de Gaza: "É terrível ver essas imagens na televisão... não se pode suportar tanta dor."

A palavra "genocídio"

Sobre o uso da palavra genocídio, que "é cada vez mais usada" em relação à tragédia em Gaza, o Papa enfatizou que "oficialmente, a Santa Sé não considera que qualquer declaração sobre o assunto possa ser feita neste momento". "Há uma definição muito técnica do que pode ser genocídio. Mas cada vez mais pessoas estão levantando a questão, incluindo dois grupos de direitos humanos em Israel que emitiram essa declaração."

Relações com a China

Ainda no âmbito da geopolítica, Leão XIV olha para o outro ator global: a China. Ele garante que dará continuidade à "política que a Santa Sé segue há alguns anos", sem pretender ser "mais sábio ou experiente" do que seus antecessores. Há muito tempo, mantém "diálogo constante com diversos chineses" e busca "obter uma compreensão mais clara de como a Igreja pode continuar sua missão, respeitando tanto a cultura quanto as questões políticas", bem como com o grupo "significativo" de católicos que "há muitos anos experimentam uma espécie de opressão ou dificuldade em viver livremente sua fé sem tomar partido". "É uma situação muito difícil", admite o Bispo de Roma.

A capa do livro "León XIV: ciudadano del mundo, misionero del siglo XXI" | Vatican News.

Política dos EUA

No geral, o primeiro Papa dos Estados Unidos não acredita que suas origens possam fazer muita diferença na dinâmica global. Ele, no entanto, espera que isso faça diferença em seu relacionamento com o episcopado estadunidense, onde houve atritos com o pontificado anterior: "O fato de eu ser estadunidense significa, entre outras coisas, que as pessoas não podem dizer, como fizeram com Francisco, 'ele não entende os Estados Unidos, simplesmente não vê o que está acontecendo'".

Leão deixa claro: "Não tenho intenção de me envolver em política partidária". E sobre seu relacionamento com Trump, ele afirma: "seria muito mais apropriado que a liderança da Igreja nos Estados Unidos se envolvesse com ele". É claro que, se houvesse temas específicos para discutir, "eu não teria problema em fazê-lo". O próprio Trump disse recentemente que não tem intenção de se encontrar com o Papa, acrescentando: "seu irmão é um bom sujeito". Trata-se de uma referência ao seu irmão mais velho, Louis, que ele recebeu no Salão Oval alguns dias após o Conclave. "Um dos meus irmãos o encontrou e ele foi muito aberto sobre suas opiniões políticas", confirma o Papa Leão. Ele também fala de Louis em outra parte da entrevista, quando, descrevendo seu relacionamento com a família (além do irmão mais velho, também há seu segundo irmão, John), comenta: "Ainda somos muito próximos, embora se esteja politicamente muito distante".

A crise dos abusos na Igreja

A entrevista dedica um espaço considerável à crise dos abusos sexuais na Igreja. Uma crise que ainda não foi resolvida, enfatiza o Pontífice, pedindo "grande respeito" pelas vítimas, muitas das quais carregam as feridas dos abusos por toda a vida. Leão XIV cita estatísticas que mostram que "mais de 90% dos que se apresentam e fazem acusações são vítimas verdadeiras". Não estão inventando nada, é claro. No entanto, há "casos comprovados de algumas acusações falsas" e alguns padres "tiveram suas vidas destruídas". As acusações "não anulam a presunção de inocência", observa o Papa Leão. "Portanto, também os padres devem ser protegidos, ou os acusados ​​devem ser protegidos, seus direitos devem ser respeitados. Mas mesmo dizer isso às vezes causa maior sofrimento para as vítimas."

De qualquer forma, explica ele, "a questão dos abusos sexuais não pode se tornar o fulcro da Igreja": "A grande maioria dos envolvidos na Igreja — padres, bispos e religiosos — nunca abusou de ninguém. Portanto, não podemos permitir que toda a Igreja se concentre exclusivamente nesta questão."

Acolhimento de pessoas LGBTQ+

Ele também menciona as questões das pessoas LGBTQ+ e das mulheres. Sobre a primeira questão, o Papa explica que não quer promover a polarização na Igreja. Ele fala da Fiducia supplicans, enfatizando que a mensagem fundamental desse documento é "certamente, podemos abençoar a todos, mas não devemos buscar uma maneira de ritualizar qualquer bênção". Leão XIV certamente abraça a mensagem de Francisco de acolher "todos, todos, todos": "Todos são convidados", não por causa de uma "identidade específica", mas porque todos são filhos de Deus. Isso não implica, no entanto, uma mudança na Doutrina: "Acho altamente improvável, certamente num futuro próximo, que a Doutrina da Igreja mude em termos do que a Igreja ensina sobre sexualidade, o que a Igreja ensina sobre o matrimônio", afirma. Ou seja, "de uma família composta por um homem e uma mulher", "abençoados no sacramento do matrimônio".

O papel das mulheres

Nem o magistério sobre a ordenação feminina mudará. O Papa afirma que "seguirá os passos de Francisco, nomeando mulheres para cargos de liderança em vários níveis da vida da Igreja". A questão "controversa" é a das chamadas diaconisas: "Por enquanto, não tenho intenção de mudar a doutrina da Igreja sobre o assunto".

A situação financeira da Santa Sé

A posição do Papa sobre a situação financeira da Santa Sé é mais "aberta". A abordagem do Papa é pragmática: "Estou começando a ter ideias claras", garante. Ele lista uma série de questões detalhadas: o resultado positivo de mais de 60 milhões de euros registrado no Balanço da APSA 2024; o fundo de pensão "que precisa ser examinado" ("Um problema universal"); a crise da Covid que afetou os Museus Vaticanos, "uma das fontes de receita mais significativas do Vaticano". "Devemos evitar o tipo de más escolhas que foram feitas nos últimos anos", afirma o Papa, mencionando o caso do prédio de Londres, no centro de um processo judicial que atraiu "grande publicidade": "Quantos milhões foram perdidos por causa disso!" O Pontífice fala então de "medidas significativas" tomadas durante o pontificado de Francisco para freios e contrapesos. No entanto, devemos ter cuidado ao "relaxar e dizer que a crise acabou". "Penso que devemos continuar trabalhando nisso, mas não perco o sono por causa disso, e acho importante comunicar uma mensagem diferente."

O Papa Leão XIV com Elise Ann Allen (CRUX)   (CRUX) | Vatican News.

Reformas na Cúria

Sobre o tema das reformas, o Papa Leão anuncia "decisões" na Cúria Romana, como "desmantelar ou transformar a forma isolada como cada Dicastério opera". Uma espécie de "mentalidade em compartimento estanque" que, por vezes, levou à falta de diálogo e comunicação. E isso, por vezes, tem sido "muito limitador e prejudicial à governança da Igreja".

A Missa em latim

O Pontífice também aborda a questão da Missa tridentina. Mais do que uma questão, “um problema”, porque alguns usaram a liturgia como “instrumento político”. Algo “muito desagradável”. Em breve, diz ele, surgirá a oportunidade de “sentar-se à mesa com um grupo de pessoas que defendem o rito tridentino” e talvez o problema possa ser resolvido “com a sinodalidade”.

Fake news e Inteligência artificial

Fora do circuito eclesial, o Papa aborda o tema das fake news, que são “destrutivas”, e se detém na Inteligência Artificial, na qual investem “pessoas extremamente ricas”, ignorando totalmente “o valor dos seres humanos”. “A Igreja deve intervir”, porque é sério o risco de que “o mundo digital siga seu caminho” e todos nos tornemos “peças”. A esse respeito, ele conta a anedota de uma pessoa que pediu autorização para criar um Papa “artificial” para permitir que qualquer pessoa tivesse uma audiência pessoal. “Eu disse: ‘Não vou autorizar’. Se há alguém que não deveria ser representado por um avatar, diria que o Papa está no topo da lista”.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Floresta Amazônica pode ter ultrapassado ponto de não retorno

Floresta amazônica  • Divulgação

Floresta Amazônica pode ter ultrapassado ponto de não retorno

Impactos vão da redução nas vazões de hidrelétricas ao risco para o abastecimento de milhões de pessoas no Sudeste.

Por Pedro Côrtes*

17/09/25 às 03:34 | Atualizado 17/09/25 às 03:34

A floresta amazônica, considerada um dos principais reguladores climáticos do planeta, pode ter ultrapassado o chamado ponto de não retorno. O conceito foi formulado pelos cientistas Thomas Lovejoy e Carlos Nobre em 2018, ao alertarem que, caso o desmatamento atingisse entre 20% e 25% da área total, a Amazônia perderia a capacidade de se autorregenerar, caminhando para um processo de savanização. Nesse processo, a floresta seria substituída por uma flora mista entre serrado e savana africana, com grande impacto na circulação de umidade na América do Sul.

Estudos recentes indicam que esse cenário não é mais uma projeção distante. Pesquisas mostram que o desmatamento acumulado em algumas áreas já chega a valores próximos de 25%. Mais grave ainda, o chamado “arco do desmatamento” — uma extensa faixa que cruza a floresta em seus limites a leste e sul — funciona como uma barreira que impede a reposição da umidade atmosférica. Esse bloqueio compromete a recirculação das chuvas, essencial para a manutenção do bioma e para a irrigação de outras regiões do Brasil e países vizinhos.

O funcionamento do ciclo amazônico é conhecido: a umidade do Atlântico precipita na floresta, infiltra-se no subsolo e retorna à atmosfera pela evapotranspiração proporcionada pelas grandes árvores. Os ventos carregam essa umidade para o oeste e, ao encontrar os Andes, parte dela se espalha em direção ao Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, além de atingir Paraguai, Uruguai e Argentina. Esse processo, conhecido como “rios voadores”, é vital para o equilíbrio hídrico do continente.

Quando a cobertura de árvores é suprimida, a floresta perde a capacidade de reciclar a água. O resultado é a redução no volume de chuvas, com reflexos diretos já perceptíveis. Pesquisa realizada na Universidade do Porto, em parceria com a USP, mostra que 11 hidrelétricas no centro do Brasil tiveram queda significativa na vazão afluente, ou seja, na quantidade de água recebida naturalmente pelos reservatórios. Exemplos de usinas como Emborcação, Furnas e Itumbiara revelam reduções médias preocupantes desde a segunda década dos anos 2000.

O problema também se manifesta no abastecimento urbano. O Sistema Alto Tietê, responsável por parte da água que atende a Região Metropolitana de São Paulo, registra volumes de chuva abaixo da média histórica, em grande parte pela diminuição da umidade transportada da Amazônia.

Floresta Amazônica • Carlamoura.amb/Wikimedia Commons

Embora a taxa de desmatamento tenha oscilado nos últimos anos, o fato é que nunca houve desmatamento zero. O processo se acumula desde a década de 1970 e já produz efeitos sobre clima, agricultura, geração elétrica e abastecimento de água.

A noção de ponto de não retorno foi essencial para mobilizar a opinião pública e pressionar governos. Mas as evidências atuais sugerem que essa barreira já foi cruzada no arco do desmatamento, transformando a região em uma trincheira contra a recirculação de umidade.

Uma taxa “menor” de desmatamento acumulado em todo o bioma pode dar a falsa impressão de que ainda temos algum tempo para reverter a situação, mas basta que uma extensa região – como o arco do desmatamento - seja suficientemente afetada para reduzir a circulação de umidade em grande parte da floresta.

As consequências vão além da Amazônia: comprometem a segurança hídrica e energética do Brasil e de países vizinhos. A inação, alertam os pesquisadores, pode agravar ainda mais um processo de ruptura ambiental de grandes proporções.

*Professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e um dos mais renomados especialistas em Clima e Meio Ambiente do país.

Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/pedro-cortes/nacional/norte/am/floresta-amazonica-pode-ter-ultrapassado-ponto-de-nao-retorno/

As raízes da violência política nos Estados Unidos

As raízes da violência política nos EUA (Vatican News)

O assassinato do ativista Charlie Kirk em 10 de setembro, durante um encontro no campus da Universidade Utah Valley, em Orem, reacendeu o debate sobre a violência política nos Estados Unidos. E não se trata de um fenômeno recente, mas faz parte da história do país. Para tentar entendê-lo, a Rádio Vaticano ouviu relatos de expoente do mundo institucional e social do país da América do Norte, além de estudantes e analistas.

Guglielmo Gallone - Città del Vaticano

Quais são as raízes culturais e sociais da violência política nos Estados Unidos? De onde nasce o medo do outro, a intolerância em relação a quem pensa diferente? E como a polarização leva ao risco de transformar a identidade estadunidense e a possibilidade de coexistência democrática?

As imagens que emergem de uma América violenta, em profunda crise de identidade, assustam e suscitam questionamentos sobre o que está acontecendo. O assassinato do ativista político conservador Charlie Kirk é apenas o mais recente de uma longa série de atos políticos agressivos perpetrados contra expoentes do pensamento republicano e democrata, revelando o cerne da crise pela qual atravessa o país: a profunda dificuldade da escuta recíproca e, consequentemente, a incapacidade de aceitar a diversidade de pensamento.

Atos extremos como o de quarta-feira, 10, — e especialmente em um lugar símbolo desse momento de inquietação, como as universidades, onde o diálogo é cada vez mais difícil — passam também, e sobretudo, pelo "fator humano": solidão, falta de confiança, sensação de abandono e a incapacidade de encontrar espaços comunitários para se conectar e se envolver. Para entender onde se alicerçam os fundamentos de uma crise que é simultaneamente política, social e cultural, recorremos a especialistas dos Estados Unidos e a jovens cidadãos do país.

A ANÁLISE DE SETH CROPSEY, FUNDADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO YORKTOWN, EX-OFICIAL DA MARINHA E VICE-SUBSECRETÁRIO DA MARINHA DOS EUA.

O assassinato político de Charlie Kirk evidenciou as divisões que caracterizam a sociedade americana atual e trouxe à tona uma das principais preocupações que atormentam os Estados Unidos desde sua fundação, há quase 250 anos. A primeira frase da Constituição dos EUA declara seu propósito: "Formar uma união mais perfeita". "Formar uma união mais perfeita" tem sido um desafio constante na política americana, desde o debate da Convenção Constitucional de 1787 sobre como contar os escravos para fins de representação no Congresso, até a Guerra Civil.

Outras divisões profundas na política americana incluem o debate sobre isolacionismo que precedeu o naufrágio do Lusitânia antes da Primeira Guerra Mundial e um debate semelhante que precedeu o ataque a Pearl Harbor, que levou os Estados Unidos a entrar na Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, o tratamento dispensado aos afro-americanos dividiu os Estados do Norte e do Sul até a aprovação, por parte do Congresso, do Civil Rights Act de 1964.

O assassinato de Kirk é o último de uma série de assassinatos políticos, cuja onda mais recente começou com as tentativas de assassinato de Gabby Giffords em 2011 e de Steve Scalise em 2017, ambos membros do Congresso. Mais recentemente, dois membros democratas da legislatura estadual de Minnesota foram baleados, um dos quais morreu. O presidente Donald Trump foi alvo de duas tentativas de assassinato no ano passado. Em abril de 2025, a casa do governador da Pensilvânia, Joshua David Shapiro, foi incendiada. Também neste ano, um jovem, aparentemente movido por ressentimento pessoal, foi acusado de assassinar um executivo de uma seguradora de saúde. Graças à internet, que serve como válvula de escape para uma variedade aparentemente infinita de patologias sociais, esse jovem se tornou uma espécie de herói popular.

O que está acontecendo nos Estados Unidos? A retórica política se tornou acalorada, refletindo a crescente divisão entre os extremos dos dois principais partidos políticos. A internet alimenta essa divisão, assim como os discursos dos políticos. A linguagem vulgar passou a fazer parte do debate público. Um dos lados acusa o outro de fascismo, que por sua vez é acusado de comunismo. As universidades de elite dos Estados Unidos, após décadas de declínio progressivo em direção à intolerância a opiniões que divergem daquelas dos docentes e em direção à tolerância ao antissemitismo, representam um elemento significativo nessa mistura tóxica que incentiva a demonização de oponentes políticos e fomenta um clima que alimenta a violência política.

O resultado é que as normas sociais e a coesão que pelo menos mantinham vivo um discurso civil, se desgastaram e podem ter perdido a capacidade de moldar comportamentos. Consequentemente, um líder político que buscava promover mudanças por meio do debate e da argumentação — as formas legítimas de persuasão — não existe mais.

A questão para a sociedade estadunidense é se é possível sair da beira deste abismo: a esperança de “aperfeiçoar a nossa união” desapareceu?

AS VOZES DE DAVID LAPP, COFUNDADOR DA BRAVER ANGELS, E AMBER LAPP, PESQUISADORA DO INSTITUTE FOR FAMILY STUDIES E COLABORADORA DO THINK TANK AMERICAN COMPASS.

Em 2010, quando começamos a entrevistar jovens adultos da classe trabalhadora em uma pequena cidade de Ohio, esperávamos saber de suas famílias, seus empregos e suas convicções. O que nos surpreendeu, no entanto, foi o quanto eles falavam continuamente sobre confiança. Durante longas conversas em cafés ou ao redor de uma fogueira, eles diziam coisas como "Tenho problemas de confiança" e "não confio em ninguém". Sinceramente, a confiança não era algo em que pensávamos muito. Crescidos em ambientes de grande confiança — Amber em uma igreja evangélica muito unida e David na comunidade Amish —, considerávamos como óbvio. Mas esses jovens adultos nos contavam que viam o mundo como um lugar onde não se podia contar com os outros. E que isso tornava extremamente difícil fazer coisas como manter um emprego ou se casar. As origens dessa desconfiança? Muitos a atribuíram à fragmentação familiar. Posteriormente, a desconfiança era agravada por locais de trabalho onde se sentiam explorados e facilmente substituíveis.

A violência política se prolifera em ambientes de baixa confiança. A confiança é a moeda das sociedades pacíficas: é o que as pessoas trocam entre si. Ela traz bem-estar e segurança. Quando existe um sólido grupo intermediário de pessoas confiantes e confiáveis, a polarização e a radicalização permanecem à margem. Mas quando as pessoas estão menos conectadas entre elas, as vozes mais destrutivas acabam parecendo representativas. E, levadas pelo medo e pela autodefesa, aqueles que estão no centro correm o risco de endurecer o coração e se inclinar para os extremos.

No último mês, organizamos um evento em nossa cidade que reunirá cidadãos comuns, igualmente divididos entre esquerda e direita, para uma discussão aberta sobre imigração. O objetivo não é mudar a opinião dos outros, mas descobrir quais pontos em comum possam porventura já existir. Após o assassinato de Charlie Kirk, alguém nos contatou para nos dizer que estava com medo de comparecer ao nosso evento, mas depois decidiu que iria assim mesmo. Outro, que antes não se interessava, inscreveu-se, em parte para homenagear Kirk, que acreditava em conversar com aqueles que pensam diferente. O que antes parecia um diálogo diário agora surge sob uma luz nova, urgente e até heroica. O que antes parecia muito "kumbaya" (pouco prático e altamente idealista) agora parece fundamental e essencial. Repetidamente, ficamos impressionados com a forma como encontros pessoais simples, e muitas vezes surpreendentes, podem reverter o processo de desconfiança. Se a crise é pessoal, faz sentido que a solução também seja pessoal.

O TESTEMUNHO DE GRACE, UMA ESTUDANTE DE DIREITO DE 23 ANOS NO TENNESSEE.

O que mais me impressionou no assassinato de Charlie Kirk foi o lugar onde aconteceu: a universidade. Cresci em Knoxville, Tennessee, em uma família onde falávamos sobre tudo: política, fé, esportes, até mesmo sobre quem fazia o melhor churrasco do bairro. Podíamos discutir, mas no final sempre havia um abraço ou um jogo de futebol para unir a todos. Nos últimos anos, especialmente quando cheguei à faculdade, percebi que algo estava mudando: muitos jovens têm medo de expressar suas opiniões. É como se não houvesse mais aquele espaço seguro onde você pode discutir as coisas sem medo de perder amigos ou ser julgado. Estamos divididos sobre tudo: da Palestina a Israel, de Trump a Harris, do beisebol ao basquete. Então, permanecemos em silêncio, reprimimos as emoções, a raiva. E aqueles que são mais frágeis, mais sozinhos, às vezes encontram na violência a única maneira de se fazerem ouvir. Isso me assusta, porque sei que pode acontecer novamente. Porque nos Estados Unidos, estamos todos muito mais frágeis do que antes, e somos todos menos capazes de dizê-lo.

O TESTEMUNHO DE TYLER, 24, UM ESTUDANTE DE COMUNICAÇÃO EM NOVA YORK.

O assassinato de Charlie Kirk me surpreendeu não tanto por quem era a vítima, mas por parecer inevitável. No meu país, a política agora é vista como uma demonstração de força: quem grita mais alto, quem aniquila o inimigo, quem atira, vence. Mesmo para nós, estudantes, está se tornando cada vez mais desconfortável falar abertamente em sala de aula. Há algum tempo, quando o professor perguntava por que muitos de nós ficávamos em silêncio durante debates ou palestras, as respostas eram sempre as mesmas: medo de dizer a coisa errada, ansiedade social, o risco de ofender alguém está constantemente presente, mesmo que o tema não seja político. E então você permanece em silêncio, pelo menos até ter 100% de certeza. Às vezes penso: estou exagerando? Talvez seja apenas ansiedade juvenil. Mas a polarização está em toda parte, nas postagens nas redes sociais, nas manchetes, nos comentários que competem para ver quem está mais indignado. E você sente esse muro invisível entre "nós" e "eles" crescendo a cada dia. Há outra coisa que me pesa: temo que, se eu disser algo impopular, isso possa acabar no TikTok ou no Instagram, circular, ser ridicularizado. É como se toda opinião se tornasse um risco. Prefiro ficar em silêncio antes que me expor. E, enquanto isso, sinto a raiva crescendo, que muitos se sentem sozinhos, excluídos e não sabemos nos confrontar. O que o assassinato de Charlie Kirk tem em comum com tantos outros massacres é a idade média dos assassinos: são todos muito jovens. E isso não é um bom presságio.

AS PALAVRAS DE JOHN WOOD JR., EMBAIXADOR NACIONAL DO MOVIMENTO BRAVER ANGELS.

Não combatemos e não nos matamos simplesmente porque somos estranhos ou porque não gostamos uns dos outros. A violência política não nasce apenas por isso. A Guerra Civil americana era o resultado de um processo histórico no qual o Norte e o Sul se distanciaram culturalmente, desenvolvendo antipatias regionais e de classe. Os sulistas eram vistos como preguiçosos, quase incivilizados; os nortistas, como agricultores industriais sujos e aproveitadores, um povo sem raízes, sem a mentalidade civilizada dos cavalheiros agrários. Mas essas diferenças culturais foram exacerbadas por conflitos de interesse relacionados à política: um governo federal cada vez mais poderoso e uma interpretação constitucional em constante expansão que via a agricultura e os estados do Sul perderem peso econômico e influência política, aos quais, mais especificamente, se somava a questão da escravidão.

Quando Abraham Lincoln se candidatou à presidência, insistiu firmemente que, embora a escravidão fosse um mal, aqueles que a apoiavam eram, em geral, pessoas boas. O conflito de interesses entre o Norte e o Sul na política era inevitável, mas Lincoln esperava restabelecer a conexão social e a familiaridade cultural entre os dois lados, observando em um discurso de campanha que tivera a sorte de se casar com uma sulista.

Essa tentativa fracassou: o processo de polarização já estava muito avançado e a escravidão era uma questão muito arraigada. No entanto, Lincoln estava certo ao acreditar que somente um forte senso de fraternidade entre os estadunidenses poderia evitar a guerra e a violência política que um dia lhe tiraria a vida.

Foi precisamente reconhecendo essa realidade que Martin Luther King Jr. liderou um movimento não violento para reafirmar a comunhão social e espiritual americana, mesmo em meio a um movimento pelos direitos civis no qual os interesses materiais e políticos do Sul branco e dos afro-americanos (e dos liberais em outras áreas do país) estavam claramente em desacordo. King também foi vítima de violência política, mas, como demonstram seu legado e o sucesso da integração, sua filosofia de reconciliação estava orientada na direção certa. "Não buscamos derrotar ou humilhar nossos adversários, mas conquistar sua amizade e compreensão", ensinou King. Isso desencadeou uma mudança cultural que perdurou até hoje. Não podemos evitar conflitos de interesse. Mas podemos fortalecer nossos laços sociais para torná-los resilientes a esses conflitos, na esperança de transcender a violência.

ANÁLISE DE FEDERICO PETRONI, DA REVISTA GEOPOLÍTICA ITALIANA "LIMES", ESPECIALISTA EM ESTADOS UNIDOS.

A violência política é uma constante na história estadunidense. Mas cada aniversário tem suas próprias características. Hoje, a violência decorre de uma genuína crise de convivência. É um aspecto de uma doença antissocial que assola os Estados Unidos. Em comparação com o passado, nos últimos trinta anos, os americanos tornaram-se mais deprimidos, solitários, viciados, têm menos famílias e menos filhos, muitas vezes criando-os sozinhos. Encontram-se menos no local de trabalho, vão menos à igreja, têm menos amigos, não se filiam mais a organizações profissionais e não participam mais de instituições cívicas. Tendem à autossegregação: falam apenas com aqueles que compartilham suas opiniões e vivem em bairros separados com base no nível de escolaridade, que determina sua orientação política.

Democratas e republicanos não se casam mais. Há uma tendência niilista: eles não acreditam mais em nada, a começar pelas instituições e pelo sonho americano, a espinha dorsal e a alma do país. Assim, a política incentiva o ódio. A tragédia dos Estados Unidos hoje é que eles veem o inimigo não de fora, mas de dentro. Não a China ou a Rússia, mas aqueles que votam no outro partido. A América necessita ser salva de si mesma, de seu lado sombrio. Obviamente, cada lado acusa o outro de encarnar essa escuridão. O que está em jogo é existencial: se seus oponentes vencerem, não haverá mais país nem democracia. Se perde, extinguirão seu modo de vida, a autêntica religião nacional.

Pesquisas confiáveis ​​relatam percepções alarmantes entre minorias significativas: aqueles que votam no outro partido são subumanos e animalescos, merecedores da morte. Seus rivais? Fascistas implacáveis ​​ou comunistas loucos. Eles querem apagar direitos ou a diferença entre homens e mulheres. Essas percepções também são difundidas na Europa. Mas na América, elas produzem a maior intensidade. Sem coesão social, é óbvio que Washington perderá o controle das guerras estrangeiras ou que recuará de forma desordenada, livrando-se dos fardos do império na tentativa de salvar a nação.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

ARTE: Em nome do apóstolo que quis ver e tocar

Abaixo, a Igreja de Carmine, em Florença. Acima, o Tríptico de San Giovenale, preservado na Abadia de San Pietro, em Cascia di Reggello, perto de Florença. | 30Giorni.

Arquivo 30Dias nº 11 - 2001

A vida e obra de Masaccio, que morreu em Roma aos 26 anos.

Em nome do apóstolo que quis ver e tocar

A vida e obra de Masaccio

por Giuseppe Frangi

Nasceu em 21 de dezembro de 1401, festa de São Tomás, em San Giovanni Valdarno, primogênito de Giovanni di Mone Cassai e Iacopa di Martinozza. Morreu repentinamente em Roma, supostamente por envenenamento, em 1428. Masaccio levou apenas 26 anos e alguns meses para desferir um golpe decisivo na história da pintura. À beira da morte de pai aos cinco anos de idade, provavelmente chegou a Florença em 1417: de fato, existem numerosos pagamentos de sua mãe a uma Monna Piera de' Bardi por uma casa alugada em Florença, na paróquia de San Niccolò, certamente para o filho, visto que ela continuou a viver com o segundo marido em Castel San Giovanni. A família de Masaccio era de artistas: seu irmão mais novo também se tornou pintor e era chamado de "lo Scheggia" (o Caco), tão magro e magro era; enquanto sua meia-irmã Caterina acabou se casando com outro pintor, Mariotto di Cristofano.

O destino de Masaccio está inextricavelmente ligado ao do Carmim em Florença. A igreja foi consagrada em 19 de abril de 1422, e o jovem pintor foi contratado para pintar um grande afresco no claustro para imortalizar a grande celebração. Nele, estavam representadas todas as famosas figuras florentinas da época, de Brunelleschi a Donatello e Masolino. Pintado em claro-escuro sobre terra verde, o afresco foi destruído durante uma reforma do claustro entre 1598 e 1600 (embora novas tentativas de encontrar vestígios dele estejam em andamento). Vasari, que havia visto o afresco antes de sua demolição, fala de muitas "figuras em cinco e seis por fileira, diminuindo conforme a visão". Isso soa como uma evidência inicial do talento de Masaccio para a construção em perspectiva.

A primeira obra conhecida e preservada do artista, o Políptico de San Giovenale, agora na Abadia de San Pietro a Cascia em Reggello, é datada de 23 de abril de 1422. No ano seguinte, Masaccio está em Roma, na companhia de Brunelleschi: a cena pintada à direita da Ressurreição de Tabita , com a Adoração de São Pedro na Cátedra, seria uma lembrança daquela jornada. A partir daquele momento, a vida de Masaccio seguiu em ritmo acelerado. Em 1424, ele subiu no andaime da Capela Brancacci, onde o velho Masolino havia começado a trabalhar para Felice Brancacci. Não podemos saber o que aconteceu naquele andaime, mas a história da arte certamente virou uma página naqueles meses. Em 1º de setembro de 1425, Masolino partiu para a Hungria, de onde retornaria apenas dois anos depois, para realizar trabalhos para o Rei Matias Corvino. Masaccio continuou os afrescos, mas, por uma razão desconhecida, não os terminou. Em 19 de fevereiro de 1426, ele estava trabalhando em outro projeto desafiador, o Políptico de Pisa, encomendado por um tabelião, Ser Giuliano di Colino degli Scarsi da San Giusto, para a igreja de Santa Maria del Carmine. Uma grande obra-prima, hoje desmembrada e preservada em pedaços em alguns dos museus mais importantes do mundo: a famosa Crucificação com Madalena vista de trás com os braços estendidos em Nápoles, a Madona central em Londres, grande parte das predelas em Berlim. Por ocasião do centenário, o políptico foi remontado pela primeira vez em uma bela exposição na National Gallery em Londres.

Antes de sua viagem final a Roma, Masaccio também teve tempo de deixar sua Trindade revolucionária nas paredes da igreja de Santa Maria Novella . Então, quando Masolino retornou da Hungria, veio a proposta de compartilhar com ele o tríptico de Santa Maria Maggiore em Roma, que deveria ser pintado em ambos os lados. Masaccio recebeu o reverso, com a Fundação da basílica e o Milagre da Neve no centro, os Santos João Evangelista e Martinho de um lado, e os Santos Jerônimo e Batista do outro. Ele concluiu apenas este último (conservado em Londres), enquanto Masolino teve que esperar pelo restante devido à morte repentina de Masaccio. Assim, resta apenas um painel, uma verdadeira obra-prima, como escreveu Longhi, enfatizando o detalhe da perna de São João Batista: "A perna temperada no ar e depois enraizada no chão enquanto ele pisoteia a grama do prado ralo, não mais as flores escolhidas do hortus conclusus."

Em 1435, Felice Brancacci foi banido e exilado por Cosimo de' Medici; a capela também foi afetada, pois mudou de nome, tornando-se Capela da Madonna del Popolo. A primeira consequência foi a instalação de um altar muito maior, com sérios danos a parte dos afrescos da parede posterior. Em seguida, a damnatio memoriae da família Brancacci foi concluída em 1481, quando Filippino Lippi foi contratado não apenas para completar as cenas finais no registro inferior, mas também para intervir na Ressurreição do Filho de Teófilo., pintado por Masaccio, para apagar todos os membros da família aqui retratados. Foi o início de uma série de intervenções, culminando em 1746 com a destruição dos afrescos da abóbada, o que nos privou da cena, que se poderia facilmente imaginar estupenda, das Lágrimas de Pedro .

Mas os infortúnios de um pintor que se tornara imediatamente um ponto de referência para todos não terminaram aí: o próprio Vasari, que, em suas Vidas , cita a longuíssima lista de artistas que fizeram peregrinações aos Brancacci, cobriu, em 1570, com uma de suas obras o afresco da Trindade em Santa Maria Novella, redescoberto quase por acaso em meados do século XIX.

Em 20 de junho de 1428, a notícia de sua morte, presumivelmente ocorrida algumas semanas antes, chegou a Florença. "Sofremos uma perda tremenda em Masaccio", comentou seu amigo de longa data, Filippo Brunelleschi. A questão permanece: o que Masaccio teria feito se tivesse tido a oportunidade de pintar por toda a vida, não apenas por aqueles seis anos documentados? Um dos críticos mais apaixonados do grande pintor, Alessandro Parronchi, respondeu a essa pergunta: "A Capela Brancacci foi um ponto de partida, e assim permaneceu. Uma força indestrutível emana daquelas paredes." Nisso, a biografia rápida e cruel de Masaccio não desmente sua grandeza: ele foi o pintor de um começo.

Fonte: https://www.30giorni.it/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF